Como vencer uma guerra impossível?

Por Gabriel Landi Fazzio

Vo Nguyen Giap é considerado um dos maiores estrategistas militares da história. Filho de camponeses, Giap nunca teve formação militar acadêmica. Mesmo assim, comandou as forças vietnamitas nas vitórias sobre a França e os EUA. Morreu aos 102 anos, em 4 de outubro de 2013, deixando a lição de que, na luta pela emancipação, as forças populares têm “a energia criativa para alcançar coisas que seus adversários nunca poderiam esperar ou imaginar”.

Até hoje o exército dos EUA estuda as táticas de guerrilha de Giap a fim de esmagar insurreições. Por outro lado, uma grande parte da militância de esquerda o desconhece. Não é à toa. Esse desconhecimento ajuda a sustentar uma das falsas premissas mais importantes do reformismo dominante: a tese derrotista da impossibilidade técnica da revolução.

O raciocínio é o seguinte: “a rebelião de velho estilo” “tornou-se consideravelmente antiquada”, pois os “exércitos aumentaram”, e a desigualdade de forças entre organizações revolucionárias e exércitos estatais (com suas tecnologias sofisticadas) torna impossível a insurreição armada. Qualquer iniciativa de uma força social de se opor militarmente ao exército será dizimada, em decorrência da superioridade de contingente e força. Tais argumentos causam o impacto de um míssil, e implodem o debate no medo da morte. Como poderia o povo vencer diante da existência contemporânea dos drones, dos tanques de guerra, da bomba atômica? Disso se conclui que, sendo impossível se contrapor ao aparato militar estatal, deve-se esforçar em “conquistá-lo” eleitoralmente.

Não se debate apenas as condições de apoio popular à insurreição: ela é descartada prontamente como materialmente impossível.

Esse tipo de raciocínio já existia antes dos aviões e armas teleguiadas. A primeira manifestação mais nítida desse argumento pode ser encontrada na introdução de Engels à obra de Marx Luta de Classes na França. São dele as aspas que abrem o raciocínio acima. No texto, ele dizia acreditar que, com os avanços das técnicas militares, a insurreição armada passava a ter uma importância secundária em relação à disputa eleitoral do estado. “Por toda a parte se imitou o exemplo alemão do emprego do direito de voto, da conquista de todos os lugares que nos são acessíveis, por toda a parte passou para segundo plano o ataque sem preparação.” Embora não descarte totalmente a “rebelião” [1], o texto de Engels não explica como se daria a passagem da luta eleitoral para a insurreição em uma correlação de forças favorável à classe trabalhadora.

22 anos depois de tais afirmações, a social-democracia apoiava a 1ª Guerra Mundial e a Revolução Russa ocorria, pondo em cheque tanto o otimismo quanto à tática eleitoral, quanto o pessimismo quanto à tática insurrecional. Isso não impediu que, ao longo do século XX, muitas vezes se repetisse o mantra da impossibilidade da insurreição – e, por outro lado, se repetissem insurreições. Mesmo hoje, enquanto se desenrola a guerra civil na Ucrânia, muitas pessoas insistem na sua impossibilidade, e profetizam sua inevitável derrota ou cooptação pela Rússia. Mas ignoram a lição inequívoca aqui: a superioridade técnica dos exércitos oficiais não impede em absoluto a vitória popular no terreno militar. Não pode o opressor desintegrar a bombas todo um povo em revoltas – ainda que possa derrotá-lo e trucidá-lo. A guerra civil não é apenas possível, mas em certas circunstâncias necessária e inevitável. Aqui, saímos do terreno pacifista (dos pacifistas que assistem o genocídio popular pedindo paciência) e nos pomos a questão de, então, em que circunstâncias um povo pode se rebelar e vencer?

É verdade que o Brasil que hoje vivemos não é a Indochina na qual lutou Giap. É preciso afirmar isso sem sombra de dúvida, para que a frase não retorne como se não o soubéssemos. É verdade que só um debate mais detido pode extrair as implicações da experiência vietnamita para o Brasil, e possíveis conclusões. De todo modo, a exposição a seguir se detém em entender em que medida a experiência militar de Giap desmente a tese de que é impossível a vitória a insurreição popular – ou seja, expor como os vietnamitas foram capazes de derrotar sucessivamente franceses e estadunidenses, a despeito de sua incomparável inferioridade tecnológica em matéria militar.

A Batalha de Dien Bien Phu

Com o Partido Comunista da Indochina posto na ilegalidade, Ho Chi Minh, Giap e outros fundam, em 1941, a Liga Vietnamita para a Independência. Giap organiza o início da guerra de guerrilha nas montanhas do interior do país. Combinando treino militar e formação política, consegue organizar um exército de cerca de 10.000 camponeses já em 1945. Dirigindo tais forças para Hanói, participa da proclamação da independência do Vietnã. Após a expulsão dos japoneses que ocupavam parte do país, se inicia uma etapa da guerra com ofensivas mais acirradas contra o colonialismo francês.

A vitória decisiva se deu na chama Batalha de Dien Bien Phu, em um vale a 300 quilômetros de Hanói. Antes ocupada pelo exército vietnamita, a região foi conquistada por parte dos efetivos do exército francês devido a sua importância estratégica, uma vez que era bastante fértil e possuía uma pista de pouso construída pelos japoneses. Percebendo a importância da região, Giap decidiu cercar as forças francesas.

Os franceses acreditavam estar protegidos pelas montanhas íngremes que cercavam o vale. Giap, por sua vez, organizou cerca de 250 mil populares no transporte, peça a peça, da artilharia, amarrada às costas dos camponeses que as levavam pela selva. Durante os 55 dias do cerco, jangadas e bicicletas se esgueiravam pela selva para levar alimentos e munições aos comunistas.

Em 7 de maio de 1954, após seis meses de cerco e bombardeamento, os 80 mil vietnamitas lançaram o assalto final e venceram a resistência dos 15.094 mil soldados franceses, com seus sofisticados aviões, artilharia pesada, paraquedistas, blindados e cavalaria. Apenas 73 franceses conseguiram escapar, e 10 mil foram capturados vivos. 25 mil vietnamitas morreram na batalha. A batalha foi tida como a mais longa e mortífera do pós-2ª Guerra Mundial.giap 2

Podemos observar que a vitória, por mais que tenha a influência do gênio logístico e tático de Giap, só foi possível por conta dos profundos laços entre o exército popular e as massas, amplamente mobilizadas nos assaltos e nas manobras militares. Apenas assim foi possível por em prática a logística militar necessária à vitória do exército de libertação nacional.

A Ofensiva do Tet e a derrota dos EUA

Após a retirada das tropas francesas, o Vietnã foi dividido ao meio. O chamado Vietnã do Norte, tendo Giap como ministro da defesa, passou a apoiar a guerra popular de libertação dos guerrilheiros vietcongs do sul contra os invasores estadunidenses que ocupavam metade do país. Como nos lembra Max Altman [2]: “Os primeiros soldados norte-americanos a morrerem resultaram do ataque a uma base militar Bien Hoa, a noroeste de Saigon, realizado pelo Vietcong em 8 de Julho de 1961. Nesse ano foram abatidos pelos guerrilheiros mais de mil soldados dos EUA”.

Em resposta, os EUA aumentavam seus efetivos na guerra, que prosseguiu duramente. Na batalha de La Drang, em 1965, os vietnamitas colocaram seus efetivos tão próximos das linhas estadunidenses que os aviões dos invasores largavam bombas em suas próprias fileiras. Sob as condições desiguais de forças, Giap buscava usar a seu favor a força do inimigo.

Em 31 de janeiro de 1968, Giap organizou a Ofensiva do Tet (assim chamada por ocorrer no primeiro dia do ano do calendário lunar tradicional vietnamita). Organizaram-se ataques em 36 cidades do sul. Na capital, Saigon, 15 combatentes invadiram a embaixadas dos EUA.

Após uma semana, quase todos os combates haviam terminado. Entre os comunistas, mais de 79 mil foram mortos, feridos ou presos. Por outro lado, os mortos entre o estadunidenses foram cerca de 1 mil, e 3 mil entre os sul-vietnamitas. Em Hué, onde os combates duraram um mês, morreram 5 mil vietcongs. A adesão da população oprimida do sul do país foi menos massiva do que se esperava, motivo de comemoração pelos neo-colonizadores.

No entanto, se o resultado militar parece frustrante à primeira vista, o impacto causado por tal morticínio na opinião pública estadunidense foi enorme. Em resposta, a população organizou uma ampla campanha pelo fim da Guerra do Vietnã. Diante disso, Giap, que já considerava retrair suas tropas, preparou uma nova e mais audaciosa ofensiva. Os EUA foram forçados a buscar uma “retirada honrosa”. Sob uma derrota militar, Giap destroçava o que chamava de o “mito da insuperável potência das tropas norte-americanas”.

Quatro presidentes norte-americanos sucessivos mantiveram a agressão contra o Vietnã, deixando o rastro de 57.690 soldados norte-americanos mortos, enquanto do lado vietnamita caíram 600 mil combatentes, considerados nos entre 1,1 milhão de morte vietnamitas contabilizadas oficialmente. Mais de 2,5 milhões de americanos serviram na guerra; em 1968 havia 536 mil deles combatendo. Em 1973, quando os EUA aceitaram um cessar-fogo, as forças do Vietnã do Sul eram de cerca de 700 mil combatentes, enquanto as do Vietnã do Norte somavam cerca de 1 milhão de combatentes.

Temos aqui um quadro muito diferente do primeiro: uma disparidade técnica ainda maior entre os comunistas e os EUA; uma superioridade quantitativa menor dos vietnamitas; e uma adesão menos massiva da população sulista à guerra civil do que houvera no norte. Ainda assim, Giap balizou sua tática em assaltos e retiradas constantes e na resistência prolongada,giap samora demandados pelo tempo de resposta política do próprio povo estadunidense contra a guerra.

Após tais vitórias, Giap se consagraria como uma referência inescapável para os povos em luta contra a opressão imperialista.

Guerra popular prolongada

Giap desenvolveu prática e teoricamente, ao lado de Mao Tsé-Tung, os fundamentos da chamada guerra popular prolongada, em um esforço de síntese da estratégia revolucionária asiática. Evidentemente, entender o significado de tal conceito é esforço maior do que a exposição a seguir. De toda forma, podemos entender como principal a ideia de um exército popular firmemente apoiado nas massas oprimidas, que não pretende vencer a guerra subitamente, mas através de um processo de resistência e ofensivas prolongado. No caso vietnamita, por exemplo, os comunistas se fizeram respeitados nos vilarejos por sua dedicação e humildade, que constatava com a postura dos exércitos inimigos. Assim, puderam contar com o apoio popular em sua resistência prolongada. Idêntica é a experiência cubana, neste sentido, bem como a brasileira, no Araguaia.

Em 1961, Giap escreveu “Guerra popular, exército popular”, onde afirma que os três fundamentos básicos de que necessita um exército popular são direção, organização e estratégia. Entende a guerra popular como “uma guerra de combate para o povo e pelo povo, enquanto a guerra de guerrilha é apenas um método de combate. A guerra popular corresponde a uma concepção mais geral. É uma concepção de síntese. É uma guerra simultaneamente militar, econômica e política”.

Desenvolve, com base em sua prática, elaborações sobre as três fases da guerra revolucionária: a defesa estratégica, o equilíbrio estratégico e a ofensiva estratégica.

Como bem apontam diversos companheiros, as experiências da guerra popular prolongada não devem ser contrapostas às experiências da tomada do poder insurrecionais. O próprio Giap estudou a experiência das insurreições urbanas detidamente em suas formulações. Sabia, de tais experiências e de sua própria prática, que o sucesso, quando existe uma desproporção de forças muito grande, se baseia na iniciativa, na surpresa e na audácia.

Dois anos após a morte de Giap, o que buscamos extrair de seu exemplo é, como já dissemos ao começo, que povo mobilizado pode alcançar coisas inimagináveis. Que a ausência do inspirador general anti-imperialista não nos permita esquecer, como já dizia Danton, e Marx, e Lenin: que no mais das vezes, o que nos falta para a vitória é “audácia, audácia e, mais uma vez, audácia”.

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[1] “Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. Por conseguinte, uma futura luta de ruas só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros fatores. Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo com maiores forças. Estas, porém, hão de preferir a luta aberta à táctica passiva da barricada como aconteceu em toda a grande Revolução Francesa.”

[2] Seu texto em memória a Giap foi importante ponto de partida para essa pesquisa.

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