Mladen Dolar: “Somos todos ventríloquos”

Por Mladen Dolar, via Metropolism, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Mladen Dolar é um filósofo que, junto de Slavoj Zizek e Alenka Zupancic, compõe a Escola Lacaniana de Liubliana, responsável pelo desenvolvimento de inovadoras ligações entre a filosofia, a política e a psicanálise de Jacques Lacan. Nesta entrevista datada de 18 de Junho de 2000, Dollar fala sobre seu livro intitulado “Uma voz e nada mais”, em que discorre sobre o lugar privilegiado que a voz possui na estrutura psicanalítica, e as possíveis repercussões disto nas relações e angústias sociais. 


Aaron Schuster: Um dos temas que perpassam A voice and Nothing More (Uma voz e nada mais) – talvez o tema principal – é que, do ponto de vista psicanalítico, a voz não é uma forma de auto-afecção ou de auto-presença, mas precisamente um obstáculo para a identidade do sujeito: ela é o correlato objetal do que Lacan chama de sujeito dividido. Uma das dificuldades em apreender a voz reside em sua topologia peculiar, que você descreve como uma fronteira precária entre o dentro e o fora: embora a voz emane de dentro do corpo, ela é também uma parte do mundo, um incontrolável lado de fora, um “projétil” com sua própria trajetória. Minha voz nunca é simplesmente minha, mas existe sempre, como você nota, um “mínimo de ventriloquismo”: não é tanto eu quem fala, mas antes eu sou falado, a voz fala em e através de mim. Quão forte você vê essa noção ligada com as psicopatalogias? A alucinação auditiva não é o caso paradigmático da voz na psicanálise, um exemplo extremo no qual a voz aparece como uma forma de alteridade ou hetero-afecção?

Mladen Dolar: No que concerne ao argumento geral do meu livro, sua questão indica-o muito bem, eu mesmo não poderia colocá-lo melhor. Você também apontou para algo que eu mesmo vejo como uma certa deficiência do meu livro, isto é a questão do estatuto da voz na psicose. Esta é de fato, enquanto se considera a prática analítica, um dos mais freqüentes e espetaculares sinais denunciadores da psicose, apresentando provavelmente o exemplo mais convincente da voz como um intruso, o cerne alienígena que imediatamente se impõe como real. Ele aponta para a pura impossibilidade de separar o interno e o externo, pois a voz ouvida é experimentada como mais íntima que a interna e mais atraente do que qualquer voz exterior. Nesse sentido, existe algo psicótico em toda voz, e a psicose somente amplifica, ou melhor destila algo que usualmente é mantida à distância – a dificuldade de distinguir o interior e o exterior e a persistente ambiguidade dessa divisão. Um razão simples para essa lacuna em meu livro é que, não tendo expertise clínica ou conhecimento técnico, me falta competência para elaborar isso, além de bordar aquilo que clínicos ilustres já disseram. Esta voz persuasiva além do poder do indivíduo teve uma longa história como um sinal divino, antes de se tornar uma questão de psicopatologia. Considere a paradigmática figura de Sócrates, um homem cujo “ouvir vozes” está intimamente ligado com a própria fundação da filosofia (eu tratei dele muito brevemente em meu livro e eu tentei remediar isso desde então). Lacan diz em algum lugar do psicográfico[1] do século 19, que tomou Sócrates como um caso de loucura (como Lélut colocou, mais ou menos assim, “Se um filósofo reivindicasse hoje estar em comunicação direta com a divindade e escutar suas vozes – nós iríamos lhe designar uma cadeira na Universidade ou uma cela em Charenton?” De fato).

A história de ouvir vozes estava entrelaçada, até os tempos modernos, com a história dos sinais divinos, a autoridade das questões, a autoridade dos grandiosos e a grandeza da autoridade, que poderia ter a ressonância de Joana D’Arc, ou as visões místicas (e Lacan tinha uma predileção especial pelo discurso dos místicos). Hegel diz em algum lugar que o socrático “demônio fica na metade entre a exterioridade do oráculo e a pura interioridade do espírito.”[2] Isso coloca a questão em termos “ontológicos” e estruturais mais do que em termos de psicopatologia, e o ponto da psicanálise não é tanto explicar a psicopatologia, mas antes restaurar seu valor “ontológico”, por assim dizer. A interioridade espiritual moderna não permite vozes divinas e relega-as para os loucos, e não há dúvidas que Schreber, esse grande “ouvidor de vozes” (um juiz que em torno de 1900 tomou notas de sua doença mental, mais tarde interpretadas por Freud – nota editor) pode servir como um supremo caso de loucura, dotado do valor de um prenúncio, um símbolo da modernidade, um sinal muito preocupante de uma transformação da autoridade, investidura, a função do pai. Seu “escutar vozes” tem um valor emblemático – isso também é retomado por Deleuze, e eu vou somente pontuar o livro “definitivo” de Eric Santner sobre isso, My own Private Germany, Daniel Paul Schreber’s Secret History of Modernity.[3] Então para responder sua questão apropriadamente eu teria de escrever outro capítulo sobre a história de escutar vozes de Sócrates a Schreber, e se Sócrates apresenta o momento fundante da filosofia, então devemos ter em mente a proximidade de Schreber do momento fundante da psicanálise.

Aaron Schuster: Uma das principais ideias exploradas em seu livro é essa ambivalência da voz, de uma só vez aterradora e pacificadora, canções de sereia e o chamado da consciência, veículo da lei e de sua transgressão. Pode-se concluir que o significado ético-político da voz é estritamente “indecidível”. Entretanto, além dessa ambivalência parece existir também uma “boa” voz, que você qualifica como “mera voz”, “pura enunciação”, ou a voz silenciosa da pulsão. Essa voz nos compele a assumir responsabilidades, mas – crucial – sem ditar qual a forma que nosso engajamento deveria tomar. Isso parece como uma mistura da autenticidade heideggeriana e fidelidade badiouniana, embora aqui o que se deve assumir é a responsabilidade pelo inconsciente.

Mladen Dolar: O “objeto” voz está no limite, na passagem. Não é a voz do Outro, nem a própria voz do sujeito, mas emerge como um laço estranho entre os dois. Ela não é ilocalizável, embora se tenha de atribuí-la um lugar e assumir ele. Falando esquematicamente, existe um caminho que a transforma no ponto que sustenta o Outro – daí a figura do superego, ou várias figuras da autoridade política; e existe outro caminho que a transforma na garantia da própria presença e autenticidade do indivíduo, “encontrar a própria voz”, como a frase diz. Os dois podem ir juntos, ou mesmo estruturalmente suportarem-se reciprocamente, como o conceito de interpelação de Althusser tenta mostrar: encontrar o próprio ego “autêntico” através da submissão ao chamado do Outro, assumindo a postura de seu endereçamento. Mas a subjetividade que está em causa aqui é algo muito diferente do ego e ela emerge ao enfrentar o limite e o ponto de passagem.

Então como alguém pode mostrar fidelidade com algo que não é nem o sujeito nem o Outro? Ou manter a autenticidade da experiência da “inautenticidade”, por assim dizer, um despojamento ou um deslocamento? Ambos Heidegger e Badiou lidam com isso em certa forma, mas formas muito diferentes – vamos dizer com um “cerne alien” no centro da “subjetividade”, embora nenhum deles ficaria feliz com essa formulação – e eu estou ciente das armadilhas que podem estar no caminho. Se você diz “a voz nos compele a assumir responsabilidades”, isso pode ser entendido como uma resposta ao enigmático chamado do Outro que nos excede, em relação ao qual sempre se é responsável e também sempre se é deficiente. Esta é a lógica da ética levinasiana, e embora ela mantenha a alteridade do Outro com uma abertura infinita e enigmática, ela estranhamente reproduz, de um modo indireto, a lógica do que a psicanálise chamou de superego. O Outro é um enigma e põe uma demanda – demanda enquanto tal, não alguma injunção positiva – e tem de ser respondido, embora nunca se possa corresponder a ele. A responsabilidade é infinita e ela cresce com seu cumprimento. “Quanto melhor eu cumpro meu dever, menos direitos eu tenho; quanto mais eu sou justo mais eu sou culpado”.[4] Então o sujeito responde, mas nunca o suficiente, nunca adequadamente, e o Outro excede infinitamente a resposta do indivíduo, sua permanente responsabilidade, reproduz sua culpa permanente. A psicanálise se diferencia disso, ela não sustenta o enigma do Outro como uma demanda infinita, mas antes trabalha em despojar o Outro desse enigma. Pode-se dizer que o objeto é o limite do Outro, não algo perpetuando sua infinidade, e que o objeto não pertence ao Outro mais do que pertence ao sujeito. Ele é sua ligação, mas esse limite é uma prática, uma constante renegociação do limite. A voz pode não ser minha, mas ela tem o poder de operar no Outro, para deslocar seu enigma e sua demanda, antes do que mantê-lo como o abismo infinito de alteridade e transcendência. Resposta e responsabilidade não é o bastante para entender o que está em causa na voz.

Para ilustrar melhor isso, pode-se pensar na prática da comédia, que se articula em constantes renegociações do objeto entre o sujeito e o Outro (algo oposto à completa falta de comédia de Heidegger, para dizer o mínimo), e que está mais próximo ao cerne psicanalítico do que a visão usual da perda trágica e da culpa. Essa linha é magistralmente desenvolvida por minha amiga Alenka Zupancic em seu livro The Odd One In (MIT, 2007)

Aaron Schuster: Você adverte algumas vezes contra a estetização da voz, e mesmo dá a impressão que a arte, como oposta, por exemplo, a filosofia, não permite o acesso à voz em sua dimensão mais radical. De outro lado, você se volta para a literatura, Kafka em particular, a fim de obter uma introspecção da voz – porém mesmo aqui, na história de Josephine the Singer, ou The Mouse Folk você encontra um tipo de parábola do fracasso da arte. Minha questão é então, sem rodeios, pode haver uma “arte da voz”, e se sim, você vê algum exemplo disso na arte contemporânea?

Mladen Dolar: Eu não inclui um capítulo separado em meu livro sobre a estética da voz, junto com a ética, metafísica, física, políticas e em retrospecto eu lamento um pouco isso,e  para certas formulações, prevenir contra o fetichismo inerente da voz na música, deu origem a críticas de vários setores e mesma e até mesmo levantou uma suspeita sobre minha hostilidade com a arte. Contudo, eu fui co-autor de um livro chamado Opera’’s Second Death (com Slavoj Zizek)[5], onde eu lido longamente com o problema da propriedade estética da voz, de pôr em cena a voz, da voz operística como o apoio das fantasias sociais e sua capacidade de provocar e registrar a transformação social. E sim, eu sou um grande amante da ópera, bem como um seguidor de várias práticas de artistas contemporâneos que lidam com a voz. Nos últimos meses, eu participei de uma estranha exibição no Manifesta e me envolvi com o trabalho de VALIE EXPORT, Smadar Dreyfus e Katarina Zdjelar, entre outros. Eu não estou listando esses nomes como modelos exemplares, o trabalho deles é extremamente diferente, estou somente indicando que eu alegremente me envolvo, teoricamente e praticamente, com pessoas que trabalham na voz de várias maneiras.

A arte está condenada? Absolutamente não, e a parábola da cantora Josephine está lá como um aviso contra uma certa armadilha: o confinamento da arte para um lugar particular glorificado dentro do social, transformada em um bem cultural. Pode-se mesmo de maneira grosseria dizer, apesar de isso ser um pouco rápido, que a cultura basicamente funciona como uma domesticação da arte, dotando-a de um sentido, um significado mais elevado, e atribuindo a ela um lugar socialmente reconhecido e codificado. Cultuar a arte dessa maneira é condená-la. Ela somente existe como um constante ponto de interrogação deslocando suas próprias fronteiras (“uma antítese social para a sociedade”, para novamente citar Adorno) e portanto necessariamente transpassando o político.

Aaron Schuster: O capítulo final de seu livro, Kafka’s Voice, termina com uma instigante sugestão sobre como nós podemos repensar a liberdade de uma perspectiva psicanalítica. Como você observa, a liberdade não é uma palavra muito presente no universo de Kafka, ela existe na conclusão de Investigations of a Dog – você mesmo vai ao ponto para chamá-la de palavra final de Kafka, o termo chave que em sua própria ausência ressoa ao longo de seus escritos. O mesmo pode ser dito de Freud e Lacan. Ambos raramente falam de liberdade, e quando o fazem, é normalmente de um jeito desdenhoso; Freud denuncia a vontade livre como uma fantasia narcísica, e a famosa afirmação de Lacan (inadequada, eu poderia dizer) “Eu nunca falei da liberdade”, deixando entender que ele considerava tal conversa ideologia humanista ingênua, um desconhecimento da radical dependência que o sujeito tem do Outro. Porém pode-se argumentar que toda a aposta da psicanálise é precisamente criar uma relação “mais livre” a esses desejos e fantasias que movem o indivíduo tão inexoravelmente. Eu pergunto se você poderia elaborar aqui um pouco da conclusão do seu livro: qual é a nova concepção de liberdade que você vê no rastro de Kafka e Freud?

Mladen Dolar: Lacan era notoriamente um homem de um estilo extremamente difícil, mas esse lado árduo era como que contrabalanceado pelo seu grande talento em produzir alguns slogans curtos e chocantes (como “A Mulher não existe” ou “Não há relação sexual”). E um desses slogans é Il n’y a de cause que de ce qui cloche: “Existe causa somente naquilo que não funciona”[6], ou “Existe causa somente naquilo que manca”. Esta frase é paradoxal e eu suponho contra-intuitiva. Pois parece que a causalidade é o que funciona em uma rede de causas e efeitos constituindo as bases da regularidade e da lei, e então aquilo que não funciona ou não encaixa poderia parece ser uma violação da causalidade, um quebra na cadeia causal. Porém é no lugar dessa quebra, dessa falha, que Lacan coloca a questão da causa. Isso é realmente algo que tem a ver com a própria origem da psicanálise, desde que o primeiro fenômeno com o qual ela se relaciona foram pequenas coisas como lapsos da fala, ou sonhos como ligeiros deslizes da vida consciente, algo aparecendo na quebra da causalidade normal, um emperramento momentâneo, que sugere outro tipo de causa, irredutível a ambos a causalidade da natureza ou a causalidade intencional da consciência.

Todavia, Freud insistiu na determinação estrita da vida psíquica, então até mesmo tais pequenos fenômenos precisam ter uma explicação determinista, e por isso poderia aparecer que não há espaço para a liberdade. Ainda, o que determina um lapso? É o inconsciente o nome de outra causalidade determinando-nos por trás de nossas costas? Se nós olharmos para ele mais de perto, nós podemos ver que o problema básico é que não existe tal causalidade substantiva, objetiva, independente como um conteúdo latente ou uma causa latente que seja simplesmente desenterrada por trás do manifesto. Pelo contrário, a explicitação de um conteúdo latente torna o paradoxo da causa ainda maior: ela mostra que a forma distorcida das formações inconscientes não podem ser explicadas sem o conteúdo latente, então a própria forma é dotada de um excedente de distorção que testemunha uma falha, uma quebra contingente dentro da regularidade das leis e regras.

Aí é onde o objeto aparece, precisamente o objeto como causa, “objeto-causa do desejo”, como Lacan insistiria, e o objeto voz é um dos caminhos para chegar até ele. Portanto o objeto aparece como causa no ponto da causa ausente, e há subjetividade apenas na medida em que há um elo que falta, uma falha na cadeia ininterrupta. E esse é o problema com a conversa sobre a liberdade na psicanálise: ela não deve ser colocada nos termos de liberdade da vontade ou como um abandono do determinismo – basear-se na pura força de vontade ou glorificar a decisão pode facilmente levar à apologia da repressão e à auto-ilusão do ego. É somente trabalhando através, repetindo, se engajando com o objeto que é possível trabalhar em direção ao ponto onde necessidade e contingência se sobrepõem, e onde se é mais livre do que se pode imaginar, ou mais do que é suposto pelas teorias usuais da liberdade subjetiva. É aqui que Kafka tem um valor especial, pois parece que seu universo é o epítome da não-liberdade, do fechamento total e aprisionamento, mas ele trabalha todo o tempo no sentido de uma abertura em meio ao próprio encerramento. Pode-se dizer que aquilo que ambos Kafka e Freud possuem em comum é o seguinte: olhar muito atentamente para as formas de aprisionamento, e através disto trabalhar no sentido onde a aparente causalidade objetiva que nos esmaga envolve em si mesma contingência e subjetividade, e a maneira que nós estamos inscritos nisso nos dá mais poder do que jamais poderíamos esperar.

[1] Lacan, Jacques, The four fundamental Concepts, London: Penguin, 1979, p. 258.

[2] TWA 18, p. 495.

[3] Santner, Eric, My Own Private Germany. Daniel Paul Schreber’s Secret History of Modernity, Princeton University Press, 1996.

[4] Levinas, Emmanuel, Totalité et infini, Paris: Le livre de poche, 1987, p. 274.

[5] Dolar, Mladen, and Slavoj Žižek, Opera’s Second Death, New York: Routledge, 2002.

6 Lacan, op. cit., p. 22.

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