Por Roland Boer, via Crisis and Critique, traduzido por Daniel Fabre
O senso comum é de que Mao Zedong inegavelmente negligenciou Confúcio como um ideólogo feudal que desenvolveu uma posição que protegeu a classe dominante. Entretanto, um estudo cuidadoso dos textos de Mao sobre Confúcio revela uma imagem muito mais complexa. Esse estudo fornece uma prolegômeno para um estudo mais completo sobre “religião” e o marxismo chinês. Começa com uma breve recapitulação das avaliações negativas de Confúcio, seguida de alguns exemplos de uma apreciação positiva. De forma que estas duas facetas do engajamento de Mao façam sentido, defendo uma apropriação dialética, tomando meu ponto das próprias observações de Mao. Isso nos leva a uma exegese mais detalhada de seus esforços para reler Confúcio sob um enquadramento materialista dialético, com foco na Doutrina da Média, ética, e o próprio idealismo. O resultado é nada menos que um esforço para colocar Confúcio a “seus próprios pés”.
“Então, Confúcio ainda é útil algumas vezes no fim das contas.(risos)” Mao, 1957
As atividades do estadista Mao sobre Confúcio parecem razoavelmente bem conhecidas: Para Mao, ele era a corporificação do superado pensamento feudal, o “porta-voz de uma decadente aristocracia escravista.”
O contraste com a atualidade não poderia ser mais agudo, quando o estudo do confucionismo é promovido pelo governo – simbolizado pela celebração de 10 anos dos Institutos Confúcio ao redor do mundo em 2014. Ainda, a relação entre Mao Zedong e Confúcio é muito mais complexa do que essa oposição simplista sugere. Já que este é um estudo preliminar e já que minha grande paixão é o trabalho textual, prefiro focar em textos do próprio Mao Zedong do que fazer comparações generalizadas e infundadas.
Deixe-me ser claro, meu argumento não é que Mao e Confúcio são diametralmente opostos, nem que uma profunda harmonia possa ser fundada entre seus trabalhos. Ao contrário, argumento que Mao continuou lutando com Confúcio durante toda sua vida. Algumas vezes, ele condena Confúcio, ou ao que o nome “Confúcio” serviu, e outras vezes ele busca entender Confúcio e seu papel na China moderna. De forma a compreender como isso funciona, começo com as observações negativas de Mao Zedong e depois me volto para os comentários positivos. Encerro, focando naqueles que são ambivalentes e de fato dialéticos. Se é dialético, então há profundas implicações para a atualidade. Já que não posso lidar com todos os muitos textos sobre Confúcio aqui, focarei nos mais significativos em cada um dos passos do meu argumento.
Ideólogo Feudal
“Besteira” – é como Mao descreve, descuidadamente, o pensamento de Confúcio. De forma mais completa:
“Não há fim do aprendizado vindo da experiência… As pessoas cometem erros quando são jovens, mas é verdade que as pessoas mais velhas podem evitar cometer erros? Confúcio disse que tudo o que fez se conformou às leis objetivas quando ele tinha setenta anos. Eu justamente não creio nisso, isso é besteira.”
Isso resume bem a avaliação negativa de Mao sobre Confúcio. Esse discurso foi proferido em 1957, mas encontramos avaliações similares em outros trabalhos. Não tão abruptas talvez, mas ainda assim com o ponto de que Confúcio personifica a velha China, feudal. Ele fala da perspectiva da velha classe dominante, dos proprietários de terra e exploradores, tudo com o objetivo de assegurar que o antigo sistema hierárquico continua a funcionar tranquilamente.
Mas, isso foi um desenvolvimento tardio no pensamento de Mao? Um estudo cuidadoso de seus escritos indica que ele já estava lendo literatura anti-confucionista em sua juventude, tal como Tan Sitong, especialmente seus ataques sistemáticos aos tradicionais costumes e instituições confucionistas. Na mesma época, ele observa: “penso que os ares burocráticos do velho Confúcio precisam ser de alguma forma atenuados depois de todos esses anos.” O contexto era, é claro, o imenso debate sobre os “novos estudos” de fora da China. Tão forte pareceu essa direção que Mao observa que qualquer esforço de estocar Confúcio e resistir ao novo aprendizado era equivalente a fazer o Chang Jiang (Rio Yangzi) mudar de curso em direção às montanhas Kunlun, tanto que o povo da China poderia “ir à Europa apenas tomando um barco da cadeia de montanhas Kunlun”.
Sob este foco, nós podemos entender seus primeiros ataques aos velhos métodos de educação, o incentivo às novas escolas em Hunan, seu profundo criticismo dos velhos costumes de casamento, e mesmo o uso de Confúcio para justificar a subserviência à ocupação japonesa. Em resumo, esse era “O problema de Confúcio”. Ele se tornaria gradualmente e mais abertamente crítico de Confúcio, advogando alternativas à tradição confucionista, tal como Lu Xun, ou o materialismo dialético de Marx, Engels e Lenin. Já em 1927, ele pronunciou sua famosa declaração: “uma revolução não é como convidar pessoas para o jantar, ou escrever um ensaio, ou pintar um quadro, ou fazer bordado; ela não pode ser tão refinada, tão prazerosa e gentil, tão benigna, correta, cortês, moderada e complacente”. As qualidades refinadas e gentis são precisamente aquelas que dizem que Confúcio usou quando viu informações sobre os governos dos países que visitou.
Talvez a declaração mais clara sobre o assunto apareça alguns anos depois no importante texto “Sobre a Nova Democracia”:
“A China também tem uma cultura semi-feudal que reflete sua economia e política semi-feudal, estes expoentes incluem todos aqueles que advogam o valor de Confúcio, o estudo do cânon confucionista, o velho código de ética e as velhas ideias em oposição à nova cultura e às novas ideias… Esse tipo de cultura reacionária serve aos imperialistas e à classe feudal e precisa ser varrida do país. Ao menos que seja varrida, nenhuma nova cultura de nenhum tipo pode ser construída. Não há construção sem destruição, não há fluxo sem represamento, e nenhum movimento sem descanso; ambos estão fechados em uma luta de vida ou morte.”
Não desejo dizer mais aqui sobre a imagem negativa de Confúcio nos escritos de Mao Zedong, já que esta imagem é razoavelmente bem conhecida. Mas deixe-me encerrar essa discussão com outra formulação aguçada de 1957: “O Imperador Shihuang da Dinastia Qin veio ao seu fim precoce porque ele enterrou apenas 460 estudiosos do confucionismo”. Faz referência ao infame fen shu kang ru (livro que queimou e enterrou vivo os estudiosos” escrito sob o reinado do primeiro imperador chinês Shihuang (259-210 AC), que buscou promover a escola Legalista às custas da escola confucionista.
As boas declarações de Confúcio
Em meio as ondas de avaliação negativa de Confúcio e da tradição confucionista, Mao também incluiu amplos sinais de apreciação. Em um de seus primeiros textos, ele escreve:
“Os escritos dos estudiosos do confucionismo são diferentes daqueles dos homens letrados. O antigo era translucido e puro, mas o último, incontido e argumentativo.”
Ao contrário da impressão geral, mesmo na China, essa visão positiva de Confúcio não é restrita aos seus primeiros escritos. Descobri que isso foi levado ao longo do tempo até seus últimos escritos. Ou melhor, sua apreciação atravessa períodos diferentes, com ondas de muito interesse, depois de relativa negligencia e por fim um retorno ao interesse. A onda inicial de engajamento extensivo com Confúcio aparece em seu primeiro texto, simplesmente chamado “Notas de sala” (de 1913), seguido de perto de seu influente texto sobre educação física e algumas correspondências desse tempo. Como qualquer estudante diligente e indócil, Mao Zedong conhecia Confúcio profundamente bem. Esse interesse e conhecimento permaneceria com ele pelo resto de sua vida. Deixe-me dar três exemplos.
O primeiro diz respeito ao discípulo favorito de Confúcio, Yan Hui. Mao menciona Yan Hui diversas vezes, particularmente com referência a simplicidade de sua vida: “Com um único prato de bambo de arroz, um único copo de cabaça, e vivendo em seu meio com uma pequena margem de manobra, ele não permitia que sua alegria fosse afetada por isso.” Ou, de forma mais ampla:
“Confúcio prestigiava o Mestre Yan, dizendo que, com um único prato de bambo de arroz e um único copo de cabaça, enquanto outros não teriam suportado a aflição, não permitia que sua alegria fosse afetada por isso. Hui tinha o sábio como seu modelo, uma concha cheia de comida e um copo de cabaça para manter-se vivo. Não seria mais fácil para ele não estar triste, mas feliz?”
Selecionei esse exemplo por uma razão óbvia: o conselho de vida simples, se não o for esteticamente, se tornaria uma característica padrão de campanhas de retificação e anticorrupção. O que vem mais a mente é o alerta que Mao Zedong deu ao partido depois do fim bem-sucedido da revolução de 1949. Neste ele alerta aos militantes para que não se deixem levar pelo exercício do poder, mas para lembrarem a necessidade de uma vida simples e honesta, que eles puderam experimentar anteriormente durante a longa luta revolucionaria.
Um segundo exemplo dessa profunda apreciação de Confúcio se encontra no ensaio de juventude chamado “Um estudo da educação física”. Aqui Mao demonstra sua famosa rotina diária de exercícios, com alguns intrigantes e difíceis que devem ser praticados nu. “Muita roupa impede o movimento”, ele diz. “O exercício deve ser selvagem e bruto”. Nesta condição, se pode tomar os exercícios da forma que segue:
“Faça flexões e mantenha os braços estendidos a sua frente. Estenda uma perna para o lado e dobre a outra para frente. A perna estendida pode ser mexida, enquanto você se apoia nos dedos da perna dobrada, com os calcanhares tocando as nádegas. Esquerda e direita sucessivamente, três vezes.”
Aparte desta intrigante imagem de Mao pelado dedicado a tais rotinas de exercícios vigorosos e complexos, estou interessado na justificação teórica para tais buscas energéticas. Isso vem de nada mais que textos confucianos, referencias a isso aparecem ao longo do ensaio. “Saber o que vem primeiro e o que vem depois nos levará para perto do caminho”, ele diz. E depois, “desejo ser virtuoso e toda virtude está ao alcance das mãos.” Mao aponta que essa compreensão é ainda mais verdadeira para a educação física. Tudo bem escolher citar frases, mas e sobre Confúcio? O uso da mente por alguém significa que ele é deficiente em saúde física, e um corpo robusto significa que este é deficiente em capacidades mentais? Não mesmo, pois “Confúcio morreu com setenta e dois anos, e nunca ouvi dizer que seu corpo não era saudável”.
O terceiro exemplo relata os slogans da campanha de retificação, que usualmente aparece nos clássicos confucionistas. Encontramos então em 1957: “proponho uma revisão geral para realizarmos o trabalho de eliminar os contrarrevolucionários este ano ou no próximo para que tenhamos a experiência, promovamos justiça, e expurguemos as tendências malignas”. Aqui “justiça” (zhengqi) invoca o espírito de retidão e justiça que no ensinamento confucionista (especialmente em Mencius) é o espírito fundamental do céu e da terra. Ou melhor:
“O criticismo positivo e construtivo sempre será necessário nas causas do povo. A campanha de retificação do Partido Comunista da China é precisamente uma campanha sistemática de criticismo e autocrítica. Encorajar a crítica e desbaratar as preocupações daqueles a que se oferece a crítica, a diretiva do Partido na campanha de retificação aponta que precisamos implementar princípios resolutos como “dizer tudo que se sabe; dizer tudo que deseja falar; aqueles que falam nunca devem ser incriminados; aqueles que escutam (às críticas) deveriam sempre aprender uma lição; se há erros, correções devem ser feitas; se não há, deve haver encorajamento”… Cada membro do Partido Comunista deveria se comprometer firmemente a ouvir os adágios da antiga China que dizem “remédio bom é mais amargo ao paladar, mas é bom para curar a doença; uma palavra honesta entorta o ouvido para o lado errado mas é um verdadeiro guia para o bom comportamento.”
Onde isso mais aparece é no texto “Sobre o materialismo dialético”, onde Mao escreve: “Quando um exame interno não descobre nada de errado, porque ficar ansioso, porque ficar com medo? Isso é um dito correto de Confúcio”. As implicações disso para a presente “linha de massa” ou campanha anticorrupção que está sendo perseguida pelo presidente Xi Jingping deveriam ser óbvias.
Eu poderia citar mais exemplos de uma avaliação positiva de Confúcio por Mao, tais como: a necessidade de se concentrar na verdadeira natureza das coisas para atingir metas; ou a necessidade de “perguntar sobre tudo” (Analectos, III, XV); ou a necessidade de evitar ser preguiçoso e estudar duro; ou o ideal de moralidade no qual todas as coisas são nutridas juntas sem que uma atinja a outras; ou o ideal de uma grande paz e harmonia (taiping e datong); ou a necessidade de contra-atacar se preciso; ou a necessidade de unidade através da luta; ou de trazer consequências para a organização como um resultado de causar conflitos; ou a necessidade de desprezar o imperialismo como deve-se desprezar o termo “homem superior” (da ren); ou a conexão sacrificial entre Sócrates, Confúcio e Jesus Cristo; ou mesmo na sua poesia. Mas, escolhi esses três exemplos – sobre viver com simplicidade, a disciplina dos exercícios físicos e a necessidade de autocrítica e retificação – já que eles se aprofundariam ao longo do tempo e se tornariam ensinamentos e praticas futuras.
Em direção a uma visão dialética
O que podemos compreender desse quadro complexo? Um modo de ver isso é assumir – seguindo os próprios comentários de Mao – que ele estudou Confúcio na juventude, mas que tal estudo não teve muito uso. Outro é sugerir que Mao foi amplamente hostil a Confúcio e que os comentários ocasionais e as referências são só a aparência de uma antipatia mais profunda a este alentador de valores “feudais”. Nenhuma delas é correta, ao que me consta. Ao contrário, os próprios textos de Mao Zedong indicam uma imagem muito mais complexa. Neste caso, um engajamento negativamente resoluto é encontrado lado a lado com avaliações positivas e sustentáveis do legado de Confúcio. Esses engajamentos não são, entretanto, uniformes ao longo de seus textos. Confùcio surge e escorre através dos escritos de Mao. Então, encontramos uma absorção inicial e de vez em quando uma crítica de Confúcio na década de 1910, depois há uma pausa de mais de uma década com apenas algumas referências. Entretanto, pelo fim dos anos 30 ele volta à Confúcio. Neste ponto se pode encontrar muitas referências, com algumas peças importantes onde ele sente a necessidade de reduzir a termo sua relação com Confúcio. Esse engajamento alimentaria suas últimas observações sobre Confúcio.
Mas gostaria de ver mais de perto a situação da China hoje e sua relação com Confúcio e o estadista Mao. Fazendo isso, sugiro que o engajamento complexo de Mao a respeito de Confúcio pode ser compreendido da melhor maneira não em termos de uma contradição não resolvida, mas como uma dialética. O texto, “Sobre o novo estágio” (1938), faz este ponto muito claro:
“Outra de nossas tarefas é estudar nossa herança histórica e usar o método marxista para rever isso criticamente. A história dessa nossa grande nação remonta há alguns milhares de anos. Ela tem suas próprias leis de desenvolvimento, suas próprias características nacionais, e muitos tesouros preciosos… De Confúcio a Sun Yatsen, nos precisamos rever criticamente e precisamos constituir nós mesmos em herdeiros desse precioso legado. Reciprocamente, a assimilação deste legado se torna um método que auxilia consideravelmente a guiar o presente grande movimento. Um comunista é um marxista internacionalista, mas o marxismo precisa tomar uma forma nacional antes que possa ser posto em prática. Não há marxismo em abstrato, mas apenas marxismo concreto. O que chamamos de marxismo concreto é o marxismo que assumiu uma forma nacional, que é, o marxismo aplicado a luta concreta nas condições concretas que prevalecem na China, e não um marxismo abstratamente usado. Se um comunista chinês, que é parte do grande povo chinês, ligado a seu povo por sua própria carne e sangue, fala sobre marxismo aparte das peculiaridades chinesas, esse marxismo é meramente uma abstração vazia. Consequentemente, o significado de marxismo – isso é dizer, estar certo de que em todas suas manifestações ele está imbuído das características chinesas, e de usá-lo de acordo com as peculiaridades chinesas – se torna um problema que precisa ser entendido e resolvido por todo o Partido sem demora… Nossa atitude sobre nós mesmos deveria ser “aprender sem saciar”, e em direção aos outros “para instruir sem se cansar”.”
Confúcio está no inicio desse precioso legado, o que construiu as características específicas da China. Tudo isso deve ser revisto criticamente, pesado e acessado, à luz do marxismo.
Como isso tem que ser feito? Mao nos provê um exemplo intrigante como meio de avaliação do significado político de algumas doutrinas de Confúcio, particularmente a Doutrina da Média, ética e depois como o idealismo de Confúcio deveria ter ficado “a seus pés”. Eles aparecem em algumas cartas, uma para Chen Boda e outra para Zhang Wentian. O foco nessas cartas são os artigos de Chen Boda, que se juntou aos comunistas em 1927 e se tornou o secretário político de Mao em 1937, enquanto também trabalhava no Departamento de Propaganda do Comitê Central. Os artigos em questão, “A Filosofia materialista de Mozi” e “O pensamento filosófico de Confúcio”, indicam não apenas que re-acessar os primeiros filósofos chineses era parte dos debates diários durante o período do Soviet Yan’an, mas também que o próprio Mao estava intensamente interessado nessas discussões. Mao era um dos que participava do circulo em que Chen Boda circulou seus artigos para comentários e sugestões, antes de publicá-los. Dada a importância desses textos, farei uma exegese dos mesmos.
Na carta inicial, escrita diretamente à Chen Boda, a discussão sobre Confúcio toma corpo por meio da Escola Moista de pensamento, fundada pelo artesão de classe baixa, Mozi (470-391 AC). De forma significativa, Mao interpreta Mozi como amplamente da linha de Confúcio, uma visão que tinha como percursores Mencius e outros confucionistas, e vai contra os ataques de Mozi a Confúcio, o subsequente antagonismo entre as duas escolas, e mesmo a jovem tendência comunista de jogar Mozi contra a tradição confucionista. Um assunto importante para Mao dizia respeito a doutrina da média. Na primeira carta, a Chen Boda, ele começa citando três frases de Mozi: “desejando zheng, se pesa o beneficio; em aversão a isso, se pesa as perdas”; “o zheng é intitubeável”; “mantendo um balanço entre os dois sem se inclinar para um dos lados”. A palavra chave é zheng, que deve ser tomada como “posição”, “apropriação”, “correção”, ou mesmo, em uma direção confucionista distinta, como “o caminho do meio”. De forma significativa, Mao opta por esse sentido confucionista, um sentido sancionado por uma longa tradição que tinha absorvido Mozi sob o enquadramento confucionista. Para tal, ele cita quatro frases de Confúcio, dando peso a seu argumento em favor do último. Todos se voltam para a doutrina da média: “pegue os dois extremos e empregue o meio”; “escolha o meio, segure-o firme, e não o perca”; “mantenha o curso até a morte sem mudar”.
Tendo estabilizado essa relação próxima entre Mozi e Confúcio (pelo amor de seu argumento), Mao faz seu ponto crucial. O Meio em questão não é nenhuma das duas posições entre as quais alguém encontra um balanço ou um terreno comum, nem um posição substantiva com os dois lados.
Ao invés, seu argumento é flexível. Começa afirmando que uma disposição substantiva tem dois lados, mas que ela tenderá a pender para um lado em um único processo, que assim se torna seu principal significado. Esse significado é o que define e estabiliza o sentido principal do substantivo. Apenas quando alguém tiver clarificado essa disposição substantiva é que se torna possível identificar o que o desvio por um lado significa na verdade: pender para a direita ou esquerda é negar o substantivo e então outro substantivo seria criado. Não se pode evitar aqui a leitura das dimensões políticas de seu argumento, especialmente à luz da observação de Mao, de que isso “é a explicação que deveria ser feita se a Escola Moista é, de fato, materialista dialética”. O movimento comunista é de fato um desvio inicial em direção a um lado, distanciando-se do capitalismo (e assim do Guomidang), estabelecendo o próprio comunismo como uma disposição substantiva clara e estável. Com o comunismo, se virar para direita ou esquerda não está contido no comunismo, mas envolve sua negação e o estabelecimento de um novo substantivo não-comunista.
Neste engajamento inicial, Mao menciona rapidamente uma distinção entre excesso (guo) e falta (buji). Uma posição substantiva irá opor ambos. No próximo item – uma resposta ao artigo de Chen Boda “O pensamento filosófico de Confúcio” (escrita para Zhang Wentian) – Mao explica em mais detalhe o que ele quer dizer com esses dois termos confucionistas. Ele começa citando todo o texto dos Analectos, que ele já havia citado antes:
“O Mestre disse, ‘Havia Shun – ele de fato era um grande sábio! Shun amava questionar os outros, e estudar suas palavras… Ele se atou aos dois extremos, determinado pelo Meio e empregou isso no governo do povo. Foi por isso que ele foi Shun!’
“O Mestre disse, ‘Essa era a maneira de Hui – ele escolheu o Meio, e sempre que ele se atinha ao que era bom, ele agarrava isso firmemente, como se o vestisse sobre o peito, e não o perdia’.”
Os dois extremos em questão podem se relacionar com filosofia, pensamento, ou mesmo com a vida diária, mas Mao está interessado no foco político desses textos. Neste registro, ele cita um comentário, o aprovando sobre a Doutrina da Média de Zhu Xi, que se empenhou na busca pelo bem à luz da oposição entre o excesso e a falta. Isto é a chave: de um lado esta guo (excesso), e de outro buji (falta). Não apenas essa oposição deveria ser entendida em termos de uma disposição substantiva mencionada antes, mas também como a qualidade de um objeto em tempo e espaço. Embora essa qualidade deve ser discernida das quantidades de um objeto ou movimento, a relação entre qualidade e quantidade é dialética. Pode-se determinar a qualidade de certas quantidades, mas ao mesmo tempo as próprias quantidades provém um discernimento da qualidade. Sob esta luz deveríamos entender o excesso e a falta:
“Excesso” é uma coisa “de esquerda” e “falta” é uma “de direita”… se dissermos que essa coisa não esta naquele estado, mas que entrou em outro estado, então isso tem uma qualidade diferente, e se tornou “excessivo” ou foi “para a esquerda”. Se dissermos que essa coisa ainda perdura no mesmo estado sem um novo desenvolvimento, então isso é uma coisa velha, um conceito estagnado, conservativo e teimoso; é de direita e “falta”.”
Se Mao aponta que Confúcio não tinha tal noção do desenvolvimento de uma posição ou do objeto, rejeitando posições que já tinha sido aceitas, ele também indica sua profunda apreciação deste discernimento. De fato, foi “uma grande descoberta e uma grande conquista”, tanto que esse “importante campo da filosofia” requer uma explicação.
Alguns outros temas dignos de analise também aparecem neste engajamento com Confúcio, notavelmente a ética e o idealismo de Confúcio. A discussão destes é mais crítica de Confúcio, se bem que de um modo que busca aplicar tais discernimentos para a dialética marxista. Sobre a questão da ética, os comunistas encararam um extenso aporte das tradições confucionistas pelo Guomidang para seus próprios propósitos. Teria sido mais fácil relegar Confúcio aos reacionários – como Mao o faz em outras ocasiões – e ataca o sistema de pensamento e cultura como um todo. Ao invés, ele busca espalhar as sementes de uma ética materialista da combinação confucionista de sabedoria, benevolência, coragem, lealdade e retidão.
Ele tenta tal trabalho aportando duas estratégias: traduzir em um registro materialista e fazer uma reordenação das relações entre as virtudes. A questão amplamente desconhecida e de fundo é a classe. Em seu contexto confucionista inicial, esses preceitos simplesmente reforçavam a posição da classe dominante. Assim, o desafio é traduzir as virtudes confucionistas em virtudes apropriadas aos camponeses e trabalhadores. Como se postam e como foram usadas por milhares de anos, as virtudes se leem como segue: sabedoria é idealista e arbitrária, benevolência é restrita a classe dominante e coragem meramente acarreta a “coragem” para oprimir as classes pobres. Traduzido para um registro materialista: sabedoria é concreta, nada menos que “uma teoria, um pensamento, um plano, um programa, uma política”, benevolência é uma necessidade de “amar e se unir à” teoria e ao programa desenvolvido primeiro, e coragem é a perseverança para superar dificuldades encaradas no agir do programa. Com o tratamento de Mao sobre a Doutrina da Média, podemos discernir as experiências do Partido Comunista e a luta dos camponeses e trabalhadores de forma mais geral, mas também vislumbrar como uma sociedade socialista pode trabalhar à luz dessas virtudes confucionistas traduzidas: programa, unidade e perseverança se tornam as novas formas da sabedoria, benevolência e coragem. A segunda estratégia envolve reordenar as relações entre as virtudes. O real alvo de Mao é a benevolência, pois ela foi considerada como a principal virtude confucionista. Seu movimento inicial é o de sugerir que as três virtudes são na verdade determinadas pela lealdade: sem lealdade sabedoria são palavras vazias, benevolência hipocrisia e coragem uma caixa vazia. Mas, podemos também ver como o ato de tradução acima fez a benevolência algo secundário. Isso pertence ao reino da pratica, do decreto da teoria e do programa desenvolvido primeiro no exercício da sabedoria. Depois ele reforça o ponto elevando ainda outra virtude, a retidão, sobre a benevolência. Retidão pertence a sabedoria, ao desenvolvimento de teorias e programas – um ponto que corre contra a assunção confucionista de que benevolência é mais importante que retidão. É claro, essa inversão tem suas próprias características dialéticas, pois Mao em outro lugar aborda o papel crucial da pratica no desenvolvimento de teorias. Obviamente, essas diferentes ênfases não deveriam ser tomadas de forma isolada, pois a dialética teórico-prática é uma característica central do marxismo. De fato, é precisamente nestes termos de colocar Confúcio na dialética que encontramos o mais profundo engajamento de Confúcio.
Conclusão: Lidando com o idealismo confucionista
Então chego – pela via da conclusão – a questão final, nominalmente, o idealismo de Confúcio. Colocado de forma simples, esse idealismo não deve ser condenado, mas analisado por seus discernimentos, criticado por sua natureza particular e remodelado em um enquadramento materialista dialético. Mao começa seu argumento sobre o assunto com uma citação dos Analectos: “Se os nomes não estiverem corretos, a linguagem não esta de acordo com a verdade das coisas. Se a linguagem não estiver de acordo com a verdade das coisas, os afazeres não podem ser levados ao sucesso”. Para Mao, isso provê apenas metade da verdade, comparável ao ponto comum marxista de que sem a correta teoria, não se pode ter a prática correta. Ainda, como a tradição marxista deixa claro, a própria teoria surge da prática em um modo dialético. Sob esse foco, se Confúcio introduziu sua observação sobre os nomes com a sentença: “se os fatos não estão claros, então o nome não estará correto”, depois ele teria desenvolvido uma posição materialista, com a realidade da prática como o outro componente necessário na dialética teoria-prática. Não se pode evitar notar a apreciação de Confúcio nesse texto, tanto que certos paralelos podem ser desenhados, mantendo em mente o ponto dialético de Mao: “Confúcio estava retificando os nomes da ordem feudal, nós estamos retificando os nomes da ordem revolucionária”. Em outras palavras, Confúcio provê um inteligente idealismo, que pode de forma frutífera se tornar parte do materialismo dialético”. Os ecos da famosa declaração de Marx sobre Hegel ser posto a seus pés, sobre usar a própria dialética para identificar o materialismo implícito em Hegel e fazer dela o enquadramento determinante, deveria ser óbvia – embora com um porém: O engajamento de Mao sobre Confúcio é feito “com características chinesas”.
3 comentários em “Confúcio e o estadista Mao: em direção a um estudo da religião e do marxismo chinês”
Eu vou escrever: Lúcio, Mao e Confúcio kkk