Por Marcelo Buzetto, via A Verdade.
A Questão Palestina sempre despertou o interesse de intelectuais e organizações de orientação marxista, pois a luta entre as potências capitalistas europeias e o Império Turco-Otomano pelo controle desse território ocorre num período de expansão do capital industrial e financeiro para o chamado “Oriente Médio” e para a Ásia. Expansionismo, militarismo e guerras de conquista são características típicas da fase imperialista do capitalismo, que produz uma desigualdade entre as nações e impõe uma desigual Divisão Internacional do Trabalho.
Longe de promover uma situação homogênea no campo das relações internacionais, o processo de internacionalização do capital e do capitalismo tem como resultado a produção de inúmeros conflitos regionais cujo centro da disputa é a definição das fronteiras nacionais, o estabelecimento de novas nações que atendam interesses de nacionalidades oprimidas ou a luta pela independência e soberania. Portanto, diversas lutas nacionais, nacionalistas, anticolonialistas e anti-imperialistas se desenvolvem, surgem e se multiplicam durante os séculos XIX e XX. E é nesse contexto que a Palestina, por vários motivos, adquire importância estratégica para os projetos políticos da classe dominante da Europa e do Mundo Árabe.
A análise marxista da situação concreta da Palestina sempre exigiu a combinação de alguns elementos fundamentais: 1. Reconhecer que a libertação nacional aparece como reivindicação prioritária nas lutas desse povo; 2. Realizar um esforço para identificar os interesses de classe presentes no dia-a-dia do intenso movimento da resistência nacional palestina; 3. Tentar compreender quais são e como pensam e atuam as organizações marxistas e de esquerda no interior do movimento da resistência nacional palestina, suas ideias principais, seu programa, suas táticas, etc.
As origens do conflito atual: sionismo e imperialismo invadem a Palestina
A Palestina é um território de 27.000 km2 que se localiza entre o Egito, Líbano, Síria e Jordânia, tendo um vasto litoral com saída para o Mar Mediterrâneo. Pelo sul da Palestina chega-se ao Golfo de Ácaba, que levará qualquer navegante ao Mar Vermelho, Golfo de Áden, Mar da Arábia, Golfo de Omã e Oceano Índico. Do ponto de vista econômico, político e militar, sua localização é estratégica. A Palestina fica no centro do mundo, na divisa entre a África e a Ásia, e bem próxima da Europa. Por isso tal território sempre foi alvo de invasões ao longo de sua história. A região também sempre foi importante rota comercial terrestre e marítima. Durante o final do século XIX a Palestina estava sob o domínio do Império Turco-Otomano. Na Europa e na Rússia cresce o número e a força de grupos que perseguiam os judeus (“pogroms”). Também nesse período surge um movimento nacionalista judaico chamado Sionismo, que adota esse nome em referência a uma colina de Jerusalém (Sion) onde havia sido construído o Templo de Salomão.
Um dos fundadores do movimento sionista foi Theodor Herzl (1869-1904). Herzl nasceu em Budapeste e estudou em Viena, duas cidades importantes do então Império Austro-Húngaro. Vinha de uma família de banqueiros, e elaborou sua concepção nacionalista judaica num livro chamado O Estado Judeu, publicado em 1896. Em 1897, Herzl e outros adeptos do Sionismo se reúnem no I Congresso Sionista, em Basiléia, na Suíça. A resolução final do Congresso falava da criação de um “lar nacional para os judeus”, algo que já estava presente no livro de Herzl, apontando a Argentina ou a Palestina como os locais mais favoráveis para a realização de tal empreendimento. A partir daí os sionistas correram o mundo para angariar recursos financeiros e apoio político para sua proposta. Herzl e seus seguidores vão estabelecer contatos com os governos da Inglaterra, da Alemanha, com o Império Turco-Otomano, com banqueiros, industriais e comerciantes judeus e não-judeus, visando fortalecer a ideia da necessidade de um Estado Judeu. A comunidade judaica europeia se divide, e nem todos apoiam a ideia sionista, mas esse movimento consegue o apoio da burguesia judaica e de setores importantes da burguesia não-judaica europeia. Em seu livro Herzl já afirmava sua preferência pela Palestina, que chamava de “pátria histórica” dos judeus, e dizia que o Estado Judeu seria “para a Europa, um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie” (O Estado Judeu, 1998: p.66). Tal afirmação comprova o vínculo entre sionismo e imperialismo, pois o objetivo de Herzl era obter o apoio das potências imperialistas que dominavam o mundo, e em especial o Oriente Médio, para que a Palestina fosse entregue à burguesia judaica, para que a mesma transformasse esse território numa fortaleza militar contra o avanço do nacionalismo árabe e de possíveis movimentos anti-imperialistas que cresciam no Oriente Médio do período pós-Primeira Guerra Mundial. Segundo o intelectual marxista estadunidense Ralph Schoenman,
O que distingue o movimento sionista dos demais movimentos coloniais é a relação entre os colonos e o povo a ser conquistado. O movimento sionista tem como objetivo declarado não somente explorar o povo palestino, mas também dispersá-lo e expropriá-lo. A intenção era substituir a população nativa por uma nova comunidade de colonos, expulsar os camponeses, os artesãos e a população urbana da Palestina e substituí-los por uma força de trabalho completamente formada por colonos (…) Ao negar a existência do povo palestino, o sionismo pretendia criar o clima político para expulsá-lo não somente de sua terra, mas também da história (Schoenman, 2008; p. 47).
Com a derrota do Império Turco-Otomano na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), França e Inglaterra invadem o Oriente Médio e dividem entre si a região, ficando a Palestina sob o domínio britânico de 1918 a 1948. Nesse período o movimento sionista está consolidado, e sua ambição de construir um “lar nacional para os judeus” na Palestina ganha ainda mais apoio, devido ao massacre de judeus pelos nazistas na Europa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Criam-se, então, as condições favoráveis para a realização da profecia que Herzl e seus seguidores elaboraram em 1897: criar o “Estado Judeu” em cinquenta anos. Durante vários séculos os judeus haviam passado por um processo de assimilação, ou seja, haviam se integrado na comunidade nacional de vários países. Trabalhavam, estudavam, participavam da vida política, econômica, social e cultural de onde viviam, e muitos também se envolviam nas lutas por justiça, democracia, igualdade e em defesa dos trabalhadores contra a exploração do capital e do capitalismo. O movimento Sionista divide a comunidade judaica e vai iniciar uma propaganda em defesa de um nacionalismo burguês conservador e com um conteúdo racista e antidemocrático. Basta ver a proposta de organização política do Estado Judeu defendida por Herzl. Diz ele: “Considero a monarquia democrática e a república aristocrática como as mais belas instituições políticas (…) Sou amigo convencido das instituições monárquicas porque elas tornam possível uma política permanente e representam o interesse ligado a conservação do Estado de uma família historicamente ilustre, nascida e educada para reinar (HERZL, 1998: p.111 e 112)”. Sua posição elitista e antidemocrática considera “o referendum como absurdo, pois, em política, não há questões simples que possamos resolver por um sim ou por um não. Aliás, as massas são ainda piores do que os parlamentos (grifo nosso) (…) Diante de um povo reunido, não podemos fazer nem política exterior nem política interior (…) A política deve ser feita do alto” (Idem, p.112).
Essa ideologia conservadora serviu de base para a instauração do Estado de Israel. Para os marxistas, compreender o conteúdo racista e conservador do sionismo é fundamental para que possamos explicar a posição atual do governo de Israel em relação ao povo palestino. Três ideias foram fundamentais para convencer milhares de judeus a emigrar para a Palestina: 1) que a Palestina era uma “terra sem povo” e os judeus eram um “povo sem terra”; 2) que a Palestina é a “pátria histórica” dos judeus; 3) que os judeus são o “povo eleito” por Deus. Essas ideias fizeram com que banqueiros e grandes empresários judeus contribuíssem para a criação da Companhia Judaica, empresa de colonização com o objetivo de comprar terras para instalar colônias judaicas na Palestina. Durante os anos 20 e 30 do século XX o crescimento dessas colônias deu início a uma série de conflitos entre judeus sionistas e árabes-palestinos. Nos anos 40 o movimento sionista começa a organizar grupos terroristas como o Irgun, Stern e Haganah, que fazem ações armadas e atentados contra a população árabe-palestina, com a intenção de intimidá-los através da violência, fazer com que abandonem seus lares, suas propriedades e suas aldeias. O Sionismo se organiza de três maneiras: 1) politicamente: através de várias organizações nacionais e internacionais que visam buscar apoio político de governos para seu projeto colonialista; 2) economicamente: buscando recursos financeiros de empresários e banqueiros judeus e não-judeus para a instalação de colônias na Palestina; 3) militarmente: organizando grupos terroristas/paramilitares para espalhar o pânico entre a população árabe-palestina, grupos que, depois de 1948, se transformam nas Forças Armadas de Israel; 4) culturalmente: através da difusão, pela indústria cultural, de ideias que buscam justificar a dominação territorial da Palestina e o direito “histórico e sagrado dos judeus” de ocupar aquela região[1].
Em 1947, como resultado de uma articulação política internacional dirigida por representantes das potências imperialistas (EUA, Inglaterra e França) e do sionismo internacional, e com o apoio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e das recém criadas “repúblicas socialistas” do Leste Europeu, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova a Partilha da Palestina, que deveria criar naquela região dois Estados, um Judeu e um Palestino. O Estado Judeu ficaria com 56,4% do território, o Estado Palestino ficaria com 42,9%, e 0,7%, correspondente à cidade de Jerusalém, seria administrado pela ONU, por ser local sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos. Além de receber a maior parte do território palestino, o Estado Judeu ficou com as terras mais férteis. No ano da partilha (1947), a população árabe-palestina era maioria absoluta em 15 dos 16 subdistritos existentes. Somente em Jaffá a maioria da população era formada por judeus. Eram 1.310.000 de árabes-palestinos-muçulmanos e 630.000 judeus. Quem coordenou a votação na Assembléia Geral da ONU foi o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha, ex-Ministro das Relações Exteriores. Orientado pelo governo brasileiro para acompanhar o voto dos EUA, Aranha adiou por dois dias a votação, para que o lobby sionista e estadunidense pudessem convencer outros países sobre a necessidade da criação do Estado Judeu. No dia 29 de novembro de 1947 a votação foi a seguinte: Favoráveis: África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielo-Rússia, Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega, Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana, Suécia, Ucrânia, União Soviética, Uruguai e Venezuela. Contra: Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria e Turquia. Abstenções: Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras, Iugoslávia, México, Reino Unido. (GATTAZ, 2002, p. 94 e 95).
Em 14 de maio de 1948 os britânicos deixam a Palestina e é fundado o Estado de Israel. Desde os primeiros dias de sua existência, o governo sionista impediu a criação do Estado Palestino, desrespeitando com isso a resolução 181 da ONU, que previa a constituição de dois Estados. Tem início a Guerra da Palestina, onde de um lado está o Exército Sionista-Colonialista de Israel e, de outro, a população palestina, que desde esta época luta pela sua libertação, pela criação de um Estado Laico e Democrático, onde possam viver em paz judeus, cristãos e muçulmanos, onde seja garantido aos indivíduos o direito de decidir e manifestar livremente suas posições políticas e/ou religiosas. Portanto, desde 1948 o povo palestino vive uma tragédia: foram expulsos de suas terras e de suas casas, e tiveram suas propriedades roubadas ou destruídas pelo chamado Exército de Defesa de Israel. Vilas e cidades palestinas vêm sendo constantemente destruídas durante os 64 anos da Nakba (“A tragédia”). Milhares de pessoas seguiram o caminho do exílio e os refugiados palestinos já chegam a 5 milhões. E, ainda assim, milhares seguem resistindo dentro dos territórios ocupados por Israel.
Em 1967, o expansionismo israelense se intensifica. Novas colônias e assentamentos judeus-sionistas são criados em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, agora tomada militarmente pelo exército colonialista, em mais um desrespeito às resoluções da ONU sobre a questão palestina. Além disso, Israel ocupa militarmente as Colinas de Golan, que são da Síria, e a Península do Sinai, do Egito. A única resolução da ONU que Israel respeitou até o momento foi a da sua própria criação.
A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) enquanto principal instrumento da resistência: a ofensiva contra o sionismo (1964/1988)
A resistência palestina já desenvolveu as mais diversas formas de luta. Mas foi nos anos sessenta e setenta do século XX que o movimento de libertação nacional palestino adquiriu importância internacional, conquistando espaços junto a organismos internacionais, governos e representações diplomáticas de vários países, sendo apoiado pela maioria do bloco de países socialistas do Leste Europeu (Alemanha Oriental, Polônia, Hungria, Bulgária, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia), pela Albânia, pela China, pelo Vietnã, pela Coréia do Norte, pela URSS, pelo Movimento dos Países Não-Alinhados[2], pela Organização de Unidade Africana (OUA) e pela Liga Árabe[3]. Todo esse apoio internacional à causa palestina produziu inúmeras resoluções da ONU e condenações ao Estado de Israel, e gerou uma conjuntura favorável para que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) fosse convidada a falar na Assembleia Geral da ONU em 1974, quando Yasser Arafat fez um discurso histórico para um plenário majoritariamente a favor do cumprimento das várias resoluções sobre a Questão Palestina. Arafat afirmava que
O mundo necessita de esforços tremendos para que se realize as suas aspirações de paz, liberdade, justiça, igualdade e desenvolvimento para que a sua luta seja vitoriosa contra o colonialismo, imperialismo, neocolonialismo e racismo em todas as suas formas, inclusive o sionismo(…) Nossa revolução é também para os judeus, como seres humanos. Lutamos para que judeus, cristãos e muçulmanos possam viver em igualdade, gozando os mesmos direitos e assumindo as mesmas responsabilidades, livres da discriminação racial e religiosa (…) Sou um rebelde e a liberdade é a minha causa. Bem sei que muitos dos presentes aqui hoje se ergueram na mesma posição de resistência que ocupo hoje e de onde devo lutar. Um dia vocês tiveram que converter sonhos em realidade em sua luta. Portanto, agora vocês devem compartilhar o meu sonho, o nosso sonho de um futuro de paz na terra sagrada da Palestina (…) Apelo a todos vocês que permitam que o nosso povo estabeleça soberania nacional independente sobre a sua própria terra. Hoje eu venho portando um galho de oliveira e uma arma dos lutadores pela liberdade. Não permitam que o galho de oliveira caia de minha mão (…) (ARAFAT, 2007, p. 87, 105 e 107.)
Em novembro de 1974 a resolução da ONU 3237 convida a OLP para participar, na condição de observadora, dos trabalhos e sessões da Assembleia Geral, se transformando numa imensa vitória diplomática daquela que seria reconhecida como a única e legítima representante do povo palestino. Entre 1964 e 1988, a OLP conduziu o processo de mobilização anti-colonialista e desencadeou uma incrível luta de libertação nacional que deu esperanças para as massas populares de todo o mundo árabe. Criada pela Liga Árabe, a OLP vai adquirindo autonomia/independência deste organismo, até conquistar plenamente o direito de decidir sobre muitas questões relacionadas à luta palestina sem consultar e/ou concordar com as posições dos governos de países árabes. Essa maior autonomia ampliou o apoio e garantiu mais legitimidade da OLP entre a classe trabalhadora e as massas populares palestinas e árabes. Enquanto uma frente de cerca de 10 partidos políticos (nacionalistas laicos/nasseristas[4] e comunistas/socialistas), a OLP seguia como a única e legítima representante do povo palestino.
A estrutura política e organizativa da OLP: uma frente política formada por nacionalistas laicos e marxistas/comunistas/socialistas
Nossa opção em dar um destaque à OLP se justifica devido ao fato de que, apesar das contradições, conflitos e problemas internos existentes desde sua origem, ela se tornou, sem dúvida nenhuma, na única e legítima representante do povo palestino durante o mais longo período de resistência política, popular e militar contra a ocupação israelense. Entre 1964 e 1988 podemos afirmar com bastante contundência que não havia no interior do povo palestino nenhuma outra organização com tanto prestígio, influência e capacidade de combate como foi a OLP[5]. Principalmente entre 1969 e 1988 foram muitas as demonstrações de força deste importante instrumento político da luta palestina que, se utilizando do direito legítimo à resistência contra a ocupação de sua pátria por uma força militar estrangeira, conquistou o apoio e a solidariedade de amplas camadas da população mundial. Sem dúvida é a organização política mais antiga e mais importante na história do movimento de libertação nacional palestino.
Desde sua criação um dos espaços decisivos da OLP tem sido o Conselho Nacional Palestino (CNP), cuja obrigação era a de se reunir pelo menos uma vez por ano para tratar dos temas fundamentais da luta contra a ocupação israelense, fazer uma reflexão sobre a conjuntura política nacional, regional e internacional, e elaborar as orientações para as distintas organizações que fazem parte do movimento de libertação nacional palestino. A composição do CNP era dividida em quatro categorias: organizações político-militares, organizações de massa/populares, representantes das comunidades palestinas (nos países árabes e em outras partes do mundo, nos campos de refugiados – Jordânia, Estados do Golfo, Líbano, Síria, Arábia Saudita, Egito -, tribos beduínas e delegados independentes) e Exército Palestino de Libertação Nacional (EPLN). No início dos anos oitenta os cerca de 430 membros do CNP representavam as seguintes organizações: 1. organizações político-militares (83 delegados – 19,3%): Al-Fatah (Movimento de Libertação Nacional), Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Frente Democrática para a Libertação Palestina (FDLP), Saika e Frente Árabe de Libertação (FAL); 2. organizações de massa/populares (112 delegados – 26%): associações, confederações e sindicatos de trabalhadores; 3. representantes das comunidades palestinas (191 delegados – 44,4%) e 4. Exército Palestino de Libertação Nacional (44 delegados – 10,3%) (MUSSALAM; 1987, p. 22 e 23).
Neste período de construção, fortalecimento e ofensiva da OLP as sessões aconteceram em: Jerusalém/Palestina (28 de maio de 1964): foi a reunião de fundação da OLP, onde foram aprovadas a Carta Nacional Palestina e a Carta de Princípios da OLP. Ahmed Chukeiry é indicado pela Liga Árabe como presidente da OLP; Cairo/Egito (1965): uma das principais discussões foi a necessidade de aproximação da OLP com as demais organizações revolucionárias palestina, visando a unificação da resistência; Gaza/Palestina (1966): neste ano foi criado um Comitê para coordenar as ações das várias organizações palestinas na luta contra o governo do Estado de Israel; Cairo/Egito (1968): A guerra de junho de 1967, que resultou na ocupação israelense de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém, Colinas de Golan (da Síria) e Península do Sinai (do Egito) e problemas internos na OLP impedem a realização da sessão anual do CNP. No final de 1967 Ahmed Chukeiry renuncia à presidência da OLP e é eleito Yasser Arafat. Na sessão de 1968 foi aprovada a luta armada como meio de conquistar a libertação da Palestina; Cairo/Egito (1969): Yasser Arafat reeleito por unanimidade presidente do CNP; Cairo/Egito (1970): reafirmação da necessidade da “luta popular armada”; Cairo/Egito (1971): neste ano ocorreram duas sessões, a 8ª. e a 9ª, e surge um intenso debate sobre as táticas da resistência armada; Cairo/Egito (1972): 10ª sessão, extraordinária, onde a luta do povo palestino é apresentada como parte integrante da luta dos povos árabes pela sua independência e libertação; Cairo/Egito (1973): criação do Conselho Central do CNP, que acaba se tornando uma direção política reduzida, composta por representantes das principais organizações da OLP (na origem eram 20 membros, mas depois o número foi ampliado para 70, com o objetivo de ter uma direção política mais representativa das diversas forças); Cairo/Egito (1974): essa sessão foi tomada pela discussão sobre os impactos da Guerra Árabe-Israelense de outubro de 1973; Cairo/Egito (1977): aprovação de aproximação com movimentos e organizações progressistas, democráticas e antissionistas israelenses; Damasco/Síria (1979): crítica dos acordos de Camp David, firmados entre Egito e Israel, sob a mediação do governo dos EUA. O presidente Egípcio Anwar Sadat reconhece o Estado de Israel, estabelece relações comerciais e diplomáticas e inicia um processo de cooperação que vai gerar uma profunda crítica da OLP a este acordo; Damasco/Síria (1981): o CNP aprova a iniciativa da União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS) de organizar uma Conferência Internacional Sobre a Questão Palestina e os Conflitos no Oriente Médio, com participação de todas as partes, inclusive a OLP. Já estava em gestação nessa época a proposta de reconhecimento mútuo entre Estado de Israel e OLP (defendida pela URSS), visando estabelecer uma negociação com base na criação de dois Estados, como já previa o Plano de Partilha da ONU de 1947; Argel/Argélia (1983): foi reafirmada a importância da luta armada e da unidade nacional palestina, num momento onde a OLP acabava de sofrer uma dura derrota, que foi a retirada de suas tropas do Líbano, após a invasão israelense de 1982 e do massacre nos campos de refugiados de Sabra e Chatila; Amã/Jordânia (1984): apesar da pressão e das ameaças da Síria contra a realização deste CNP, estimulando inclusive o boicote de organizações político-militares da OLP controladas e/ou bem relacionadas com seu governo, ocorre a 17ª. sessão, com críticas à tentativa da Síria de dominar a OLP e colocá-la à serviço de seus interesses particulares. O tema da negociação de paz com a participação da ONU, partes envolvidas e OLP ganha força e entra na pauta e é rejeitada qualquer proposta de paz que tente excluir a OLP das negociações; Argel/Argélia (1987): se consolida a unidade política entre as organizações da OLP em relação aos pontos fundamentais da estratégia política adotada, e o Partido Comunista Palestino (PCP), que mantinha relações muito próximas com a URSS, se integra organicamente à OLP (SUWWAN, 1987, p. 09-12); Argel/Argélia (1988): esta sessão do CNP foi decisiva na história da OLP, pois aprovou a Declaração de Independência da Palestina (15 de novembro de 1988), afirmando que o CNP “proclama o estabelecimento do Estado da Palestina em nossa terra palestina, tendo por capital Jerusalém” e, ao mesmo tempo, reconheceu o Estado de Israel, iniciou o debate sobre o abandono da luta armada e iniciou negociações de paz com base na proposta de dois Estados, ou seja, fazer cumprir a antes criticada Resolução 181 da ONU, de 1947. O texto da Declaração e o reconhecimento do Estado de Israel são duas decisões que expressam bem as contradições e conflitos internos na OLP, pois enquanto o texto fala do “Estado da Palestina em nossa terra palestina”, sem fazer referência direta ou explícita sobre quais seriam as fronteiras desse Estado, induzindo o leitor a crer que seria em toda a Palestina histórica, a posição de reconhecimento do Estado Judeu empurra a OLP para uma situação única em sua história, onde os princípios originais de luta pela retomada de todos os territórios ocupados são deixados de lado e substituídos por um pragmatismo orientado pela nova proposta de constituição do Estado Palestino nas fronteiras antes de 1967, o que causa indignação e descontentamento principalmente para os refugiados que perderam suas terras e casas entre 1948 e 1967.
Dentro desta frente estão os partidos da esquerda palestina, como a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e o Partido do Povo Palestino (PPP), antigo Partido Comunista Palestino (PCP). Mas o partido político que sempre ocupou o espaço de força política hegemônica no interior da OLP foi o Al-Fatah[6] (ou simplesmente Fatah), ou Movimento de Libertação Nacional, agrupamento nacionalista laico sob a liderança de Yasser Arafat. Já o Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), que governa e que tem mais força política na atualidade em Gaza, nunca fez parte da OLP. Criado em 1987 com apoio da burguesia árabe-islâmica, de governos do Oriente Médio e de organizações como a Irmandade Muçulmana, o Hamas representa uma das principais forças do nacionalismo islâmico, corrente política em franca ascensão nos diversos países árabes. Além do apoio de setores importantes da burguesia árabe-islâmica e governos como o do Irã, esse partido político possui hoje uma base social muito forte entre trabalhadores empregados, subempregados e desempregados dos territórios palestinos de Gaza e Cisjordânia. Nos anos noventa do século XX surgem outros atores no interior do movimento de libertação nacional palestino, como a Jihad Islâmica, partido político que também está fora da OLP. Além de partidos políticos e organizações político-militares, dentro e fora da OLP os palestinos tem organizações de juventude, camponeses, trabalhadores, operários, mulheres[7], entre outros. Nos últimos vinte e quatro anos o movimento da resistência palestina tem priorizado a luta de massas, a mobilização social enquanto principal forma de luta contra as arbitrariedades e a violência praticada pelo governo do Estado de Israel. Surgiram organizações de luta em defesa dos presos políticos, do direito ao retorno dos refugiados, de luta contra o muro do Apartheid construído por Israel ao longo de 700 quilômetros do território palestino, de organização das campanhas pelo boicote e desinvestimento contra Israel, etc.
A Questão Palestina e o fim da URSS e do Bloco Socialista: início de um período de defensiva
O fim da URSS e do chamado “Bloco Socialista” tem um profundo impacto nas relações internacionais e no movimento nacional de resistência palestina. A força da esquerda no interior da OLP advinha também das relações e do apoio que esse setor tinha com o “mundo socialista”, e da intervenção conjunta desses países nos diversos organismos da ONU. Além disso, os palestinos tinham, até 1991, dois grandes aliados de sua causa no Conselho de Segurança da ONU: URSS e China. As condições eram muito mais favoráveis para aqueles que defendiam a imediata construção do Estado Palestino. Com o argumento de que precisa adquirir maior credibilidade e dar mais uma demonstração de que está disposta a fazer concessões em seu programa original se isso, de fato, for contribuir para o avanço do processo de paz, a OLP altera seu estatuto em 1988, e reconhece o direito do Estado de Israel existir, ao lado de um Estado Palestino, conforme a Resolução 181, de 1947. Ou seja, a OLP reconhece pela primeira vez a legitimidade do Plano de Partilha da Palestina, antes apresentado pela organização como sendo um instrumento da aliança do sionismo com o imperialismo para ampliar sua influência e exercer a dominação territorial de uma parte estratégica do Oriente Médio. Esta posição da OLP encontrou resistência entre os próprios palestinos, mas as forças que se opuseram a tal mudança de posição se encontravam em situação de minoria, e não conseguiram impedir a vitória dessa proposta, que parte de Yasser Arafat e da direção majoritária de seu partido, o Fatah. Mesmo dentro desse partido surgem posições contrárias as de Arafat, o que prova que precisamos observar, no estudo do caso palestino, as contradições e conflitos não só entre o Estado de Israel e as organizações árabes-palestinas, mas também entre as próprias organizações da resistência palestina.
Os “acordos de paz” firmados com Israel em 1994 alimentam ilusões e ignoram a natureza expansionista/imperialista deste Estado, que negocia e, ao mesmo tempo, faz crescer o número de colônias judias nos territórios palestinos ocupados em 1948 e 1967. Além disso, Israel aplica até hoje uma política de assassinatos seletivos de lideranças políticas palestinas, e de perseguição e prisão em massa. Um resultado dessa política de repressão intensa e permanente são os 8 mil presos políticos palestinos, alguns vivendo nos cárceres israelenses há pelo menos 20 anos. Desses 8 mil, mais de 700 estão condenados a prisão perpétua. Entre 1993 e 2005, apesar de inúmeras reuniões, conferências e acordos firmados entre a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e o governo do Estado de Israel, e apesar das expectativas de uma paz duradoura apresentadas pelo presidente palestino eleito em 1996 com 87% dos votos, Yasser Arafat, o que se viu foi uma continuada violação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais do povo palestino, assim como a negação do direito nacional à independência e à soberania, deixando ainda mais distante o sonho do Estado Palestino Laico e Democrático. Os dois signatários dos acordos de Oslo de 1993 morreram. Yitzhak Rabin, pelo lado israelense, assassinado por fundamentalistas judeus-sionistas em 1995 e Yasser Arafat, pelo lado palestino, morre em 2004 resultante de problemas de saúde (mas surgem denúncias que afirmam ter sido consequência de envenenamento gradativo). Esses acordos livraram os palestinos do controle militar israelense em algumas cidades e vilarejos de Gaza e Cisjordânia, criando para a população uma situação melhor do que a anterior, com melhores condições para se desenvolver o comércio, a indústria, a agricultura, educação, a saúde, a cultura e o esporte, enfim, para que seja possível construir/reconstruir uma vida cotidiana com um mínimo de dignidade, mas essa nova situação não resolve plenamente grande parte dos problemas econômicos, sociais e políticos da ampla maioria do povo palestino. Os resultados pífios dos acordos e o não cumprimento da quase totalidade dos termos dos mesmos por Israel levam a uma nova situação de impasse que coloca em xeque as posições da direção da OLP e da agora chamada Autoridade Palestina (AP). O não cumprimento de diversas cláusulas dos acordos, entre elas a suspensão da construção de novos assentamentos judeus e da demolição de casas palestinas ajudam a diminuir a credibilidade que parcela do povo palestino depositava no Fatah, ainda mais com as constantes denúncias – que muitas vezes são comprovadas – de corrupção de líderes e membros desta organização.
É nessa conjuntura complexa que ganha projeção como uma alternativa política o partido Hamas. A crise política, ideológica e organizativa dificulta a ascensão da esquerda palestina (FPLP, FDLP,PPP e outros) como força majoritária no movimento de libertação nacional. As denúncias de corrupção e de enriquecimento de muitos dos dirigentes demonstram um processo de degeneração em setores importantes do Fatah. As eleições de 2006 contribuem para acirrar as disputas internas no movimento da resistência palestina, com Hamas vitorioso em Gaza e Fatah na Cisjordânia. A esquerda palestina tem procurado convocar todas as forças progressistas, populares, democráticas e socialistas a se unir num grande movimento nacional de resistência para desencadear novamente uma ofensiva contra as medidas do governo de Israel que visam a acelerar o processo de expropriação de terras do povo palestino, mas parece que todo esse esforço ainda tem sido insuficiente para alterar a correlação de forças dentro e fora da OLP. Quando do ataque militar israelense a Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, essa ideia de unidade nacional das forças da resistência palestina adquiriu grande importância, mas até agora parece que existem muitos fatores que ainda impedem que tal proposta volte a ser transformada em realidade. A impressão é que uma unidade política e programática mínima, em torno de alguns pontos de consenso amplamente discutidos com o povo palestino, seria fundamental para tentar se desencadear uma nova ofensiva política, popular e de massas contra o Estado de Israel. A ação unitária de forças como o Fatah, FPLP, FDLP, PPP, Hamas, Jihad Islâmica e demais organizações e partidos políticos palestinos poderia fazer ressurgir nas amplas massas populares do mundo árabe – e no interior de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém – a esperança e a disposição necessárias para uma nova retomada da ofensiva deste que é, sem dúvida, um dos mais importantes movimentos de libertação nacional deste início de século XXI. O que temos certeza para afirmar é que, por mais justo, combativo, corajoso e coerente que seja um partido ou uma organização da resistência palestina, de maneira isolada não terá capacidade para impor nenhuma derrota contra o sionismo israelense. Talvez essa unidade entre as três correntes políticas da resistência nacional palestina (nacionalismo laico, nacionalismo islâmico e socialistas/comunistas) possa construir uma frente antissionista/anti-imperialista que obrigue o Estado de Israel a sentar na mesa de negociação numa outra correlação de forças, fazendo surgir daí as condições mais favoráveis para se apresentar propostas mais ousadas que as atuais, que privilegiam o debate de dois Estados, menosprezando a experiência histórica dos últimos 64 anos que indica que o sionismo não irá recuar um único milímetro em suas conquistas militares de 1948 e 1967. É possível perceber que sobre este tema existem pelo menos três posições:
- Os que defendem a criação imediata de um Estado Palestino Laico e Democrático na chamada Palestina Histórica (em todo o território considerado Palestina antes do Plano de Partilha de 1947): nossa impressão é que tal opinião desconsidera a atual correlação de forças no interior do movimento nacional palestino e entre os palestinos e o Estado de Israel, fazendo de tal proposta mais um instrumento de agitação e propaganda do que uma possibilidade real no momento. É a defesa da estratégia, do objetivo principal a ser atingido sem a mediação das táticas, dos meios e caminhos que levarão até esse objetivo final. E os palestinos sabem que agitação e propaganda são insuficientes para fazer com que triunfem posições que possam levar a profundas transformações econômicas, sociais e políticas naquela região. Organizações nacionalistas islâmicas também defendem tal proposta, com a ressalva de que não se utilizam da expressão Estado Laico, mas simplesmente Estado Palestino.
- Os que defendem a posição de dois estados existindo um ao lado do outro, ou seja, o cumprimento do Plano de Partilha da Palestina elaborado pela ONU em 1947 (Resolução 181). Essa opinião defende que o Estado de Israel já se consolidou, e agora, portanto, é necessário construir o Estado Palestino. Tal posição abandona o programa original da OLP e os princípios que orientaram a resistência palestina de 1947 a 1988. Entre 1993 e 2005 esta tem sido a proposta do Fatah e outras organizações palestinas. É o abandono da estratégia e da Carta de fundação da OLP que, segundo Arafat, tornou-se um documento sem validade, que ficou no passado, “caducou”;
- Os que defendem que é preciso acumular forças no atual período da luta nacional palestina. Para estes é necessário se organizar melhor para defender e fazer avançar as conquistas já obtidas como resultado das lutas e mobilizações sociais e populares, tentando fortalecer tudo aquilo que tem de positivo nos acordos firmados até agora, criticar e denunciar aquilo que não é de interesse do povo palestino e, ao mesmo tempo, tentar consolidar o controle palestino sobre todo o território de Gaza e da Cisjordânia. Nesse sentido seria importante intensificar as lutas: pela libertação dos presos políticos, pelo direito ao retorno dos refugiados, pela destruição do “Muro da Vergonha”, pelo cumprimento das Resoluções da ONU sobre a Questão Palestina, em especial sobre o estatuto de Jerusalém, pelo direito dos palestinos de resistir à ocupação militar israelense por todos os meios de que dispõem, para barrar as construções de novos assentamentos sionistas, para impedir as demolições de casas de palestinos, etc. Essa posição política procura fazer destas e outras lutas parte de um processo de acúmulo de forças que vai construindo no cotidiano as condições mais favoráveis para colocar o movimento nacional palestino na direção do rumo estratégico indicado: um Estado Palestino Laico e Democrático em toda a Palestina Histórica.
As contradições no interior na resistência e das massas populares palestinas são tão intensas que é possível identificar adeptos e simpatizantes das três posições dentro de uma mesma organização política e social. Por exemplo: apesar da maioria da direção política do Fatah e da OLP defender hoje a construção de um Estado Palestino em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, aceitando a ideia de dois Estados, é possível encontrar dirigentes desta organização, assim como militantes e setores importantes de sua base social defendendo a retomada de todo o território palestino, as terras ocupadas em 1948, em 1967 e as que foram ocupadas após os Acordos de Oslo (1993/1994). Mesmo dentro do Hamas, que historicamente defendeu a posição de um único Estado Palestino, já existem lideranças anunciando o reconhecimento do Estado de Israel e sugerindo uma adaptação e aproximação com a posição majoritária no interior da OLP. É óbvio que a intensificação da repressão israelense contra os palestinos nos últimos anos tem criados condições mais favoráveis para a defesa da proposta de continuar a luta pela construção de um Estado em toda a Palestina histórica. Essa é a posição hegemônica, por exemplo, entre dirigentes, militantes e simpatizantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), que nunca abandonou esta orientação estratégica. É bom lembrar que para amplos setores das massas populares palestinas a questão de um ou dois Estados é algo completamente secundário, um debate que se concentra mais entre os dirigentes e intelectuais do que algo presente no cotidiano popular, pois a situação objetiva empurra os palestinos para dedicarem mais tempo às preocupações muito mais concretas, como a luta contra a ocupação israelense em todas as suas formas (econômica, política, social, cultural financeira, militar). Após algumas viagens realizadas à Palestina, podemos concluir que as massas estão distantes desse debate de um ou dois Estados, mas que, quando esclarecidas sobre as propostas existentes, tendem a apoiar a construção de um Estado da Palestina em toda a Palestina histórica, pois só assim terão seus direitos plenamente restituídos, sejam os que vivem hoje na pátria ocupada, sejam os que vivem na condição de refugiados.
Os marxistas na OLP e o desafio de combinar a luta pela libertação nacional com a luta pelo socialismo
As duas principais organizações da esquerda revolucionária no interior da OLP e do movimento nacional de resistência palestina são a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP). Não são as únicas, mas são, respectivamente, a segunda e a terceira força na OLP. No comando da OLP, como já dissemos, está o Fatah, desde 1968 até hoje. Caso o Hamas chegue a um acordo com o Fatah para que ocorra seu ingresso na OLP (essa negociação já está em curso), a esquerda revolucionária perderá essa posição, pois, possivelmente, o partido nacionalista islâmico se tornaria a segunda força. A FPLP e a FDLP merecem destaque devido a vários motivos: tem uma base social organizada dentro e fora da Palestina, estão presentes em organizações populares e de massas, possuem um vínculo concreto com as lutas da classe trabalhadora palestina, procuram realizar um trabalho de formação política e ideológica numa perspectiva marxista, tem se mantido como a voz crítica no interior da OLP, impedindo muitas vezes que esta se desviasse de seus objetivos originais (apesar das constantes derrotas dessa esquerda nos últimos anos), tem estimulado e organizado setores importantes da juventude palestina, estão presentes nas principais lutas, campanhas e movimentos unitários, continuam realizando o trabalho de solidariedade e organização com os refugiados, mantém contatos com organizações não-sionistas/antissionistas da esquerda israelense, tem procurado estabelecer contatos com movimentos e partidos de esquerda em todo o mundo e optaram por realizar a resistência através de diversas formas de luta, seja a participação político-eleitoral (com deputados eleitos para o Conselho Legislativo Palestino – CLP), seja a luta de massas (nos sindicatos e movimentos populares), a participação em Organizações Não-Governamentais (de defesa dos direitos humanos, etc.) e a organização da resistência militar, o que faz esses dois partidos existirem ainda enquanto organizações político-militares (nome dado pela OLP a esse tipo de agrupamento).
Apesar de todos os limites, equívocos ou contradições que possam ser identificadas ao longo da construção dessas duas organizações (e existem), é inegável a coragem e a ousadia de seus militantes e dirigentes, e seu reconhecimento enquanto parte fundamental da resistência palestina é hoje uma obrigação para quem pretende analisar a situação do conflito numa perspectiva progressista, democrática, popular e/ou revolucionária. Samir Amin afirma que “a luta pelo socialismo na periferia do sistema imperialista não deve ser estranha, e ainda menos oposta, à luta de libertação nacional. O fato imperialista impõe a compreensão de transição para o socialismo como resultante da fusão histórica dos objetivos de libertação social e de libertação nacional” (AMIN, 1981: 153). Este tem sido um dos desafios cotidianos da FPLP e da FDLP desde suas origens nos anos sessenta.
Apesar de Yasser Arafat sempre ter tido um ótimo relacionamento com os governantes da Argélia, Cuba, China, Coréia do Norte e URSS, que defendiam à sua maneira o socialismo enquanto alternativa para os movimentos de libertação nacional, o chefe da OLP sempre se proclamou anti-imperialista e antissionista, líder de um movimento cujo objetivo principal é a libertação da Palestina, sem nunca se declarar socialista[8] (o que era verdade). Mas essa relação de Arafat com os chamados “países socialistas”[9] criou condições favoráveis para a aproximação com a esquerda palestina, que também contribuiu para fortalecer o caráter antiimperialista da OLP. Enquanto o líder do Fatah construía essas alianças em nível internacional a FPLP e a FDLP iniciam o debate sobre sua integração ao Comando Palestino da Luta Armada (CPLA), que ocorre entre os anos 1968 e 1969. A esquerda marxista se integra na OLP após a sua fundação (1964), e vai defender posições políticas que priorizam os interesses dos operários, camponeses e das massas populares da Palestina, pois o Fatah e outros agrupamentos nacionalistas eram apontados como representantes dos mais diversos setores da burguesia árabe-palestina (o que não significa que no interior do Fatah não existam defensores do marxismo e de diversas modalidades do socialismo, mas sempre foram uma minoria). Tanto a FPLP quanto a FDLP sempre se apresentaram como organizações político-militares autônomas em relação à burguesia árabe-palestina e aos governos dos países árabes, que por muitas vezes tentaram controlar a OLP e seus partidos[10]. A FPLP, por exemplo, sempre criticou a burocratização da OLP, e os altos salários de dirigentes e oficiais do Exército Palestino de Libertação Nacional (EPLN). No livro de Ricardo Ciudad um dirigente da FPLP afirma que
El FPLP no desea la desaparición de la OLP, aunque tiene muchos reproches que hacerle. Por ejemplo, políticamente, lejos de ser una auténtica organización revolucionaria, la OLP es simplesmente un aparato burocrático para proporcionar elevados sueldos a una colección de ‘funcionários’. La OLP gasta más de 60% de su presupuesto con fines que no tienen nada que ver con la lucha revolucionaria. En el plano militar, la OLP parece dedicar sus principales esfuerzos a la organización de un ejército clásico. Los sueldos de sus ‘oficiales’ son fantásticos: con lo que gana solamente uno de ellos, el FPLP puede mantener una base entera de sus comandos (CIUDAD, 1970: 256).
Desde o início a FPLP se declarou marxista-leninista, buscando ter como referência as Revoluções e as guerras populares em Cuba, na Argélia, no Vietnã e na China. Surgida do interior do Movimento Nacionalista Árabe (MNA), que teve muita força entre os anos de 1959 e 1964, este partido político da esquerda palestina teve como um de seus fundadores e principais ideólogos o médico George Habashe. Criada em outubro de 1967, após um ano de vida ocorrem inúmeras divisões internas, que levam ao surgimento de duas outras organizações: a FPLP-Comando Geral (FPLP-CG), que rompe em 1968 sob o comando do ex-coronel do exército sírio Ahmed Jibril e a Frente Democrática Popular para a Libertação da Palestina (FPDLP), que logo depois muda o nome para FDLP, e tem como uma de suas principais lideranças o marxista Nayef Hawatmeh (atual secretário-geral).
A FPLP ficou muito conhecida pelos sequestros de aviões como forma de divulgar a luta dos palestinos no cenário internacional. Realizaram várias ações dessa natureza, com o objetivo de divulgar a causa palestina e de exigir a libertação de presos políticos. Em todas elas, nenhuma pessoa foi torturada ou assassinada, essa era uma das determinações da FPLP para seus membros: fazer de tudo para evitar a morte de civis. Quem ficou conhecida nessas operações foi Leila Khaled, uma das primeiras mulheres a se tornar parte da direção política da revolução palestina. Continua até hoje sua militância na FPLP e na União Geral de Mulheres Palestinas. A imagem da guerrilheira sorrindo, com um lenço no pescoço (keffiah) e um fuzil nas mãos pode ser vista ainda hoje em vários muros da Palestina ocupada. Esta organização pagou um preço altíssimo pela sua coerência e defesa do programa original da OLP. Foi contrária aos Acordos de Oslo, que foram realizados sem um amplo debate no interior do povo palestino e da própria OLP. Após a criação da Autoridade Palestina a FPLP[11] segue em sua crítica sobre a forma e o conteúdo da chamada “negociação de paz”, pois até agora não viu avanços que beneficiam de fato o povo palestino. Mas não faz isso de maneira isolada, pois outras vozes surgem na tentativa de apontar os erros e a tentativa de desmobilização generalizada das massas palestinas diante dos chamados “Acordos de Paz”. Uma dessas vozes dissonantes, críticas à direção da OLP e à Autoridade Palestina foi o intelectual palestino Edward Said, que afirmava que
Foram os palestinos que cederam. É verdade que conquistaram pequenos ganhos aqui e ali, mas basta olhar o mapa de Gaza e da Cisjordânia, depois visitar aqueles lugares, ler os acordos e ouvir os israelenses e norte-americanos para se ter uma boa ideia do que aconteceu mediante compromissos, acordos desequilibrados e revogação da plena autodeterminação palestina. Tudo isso ocorreu porque a liderança palestina egoisticamente colocou seu próprio interesse, os exagerados esquadrões de guardas de segurança, os monopólios comerciais, a indecente persistência no poder, o despotismo ilegal, a ganância antidemocrática e a crueldade acima do bem geral palestino. Até agora a Autoridade foi conivente com Israel, para deixar a questão dos refugiados no esquecimento (…) (SAID, 2003: 76)
Said também elaborou duras críticas ao líder Yasser Arafat, alegando que no final de sua vida acabou se tornando no instrumento adequado para convencer o povo palestino a realizar inúmeras concessões para atender os pedidos e reivindicações dos governos de Israel e dos EUA. Dizia que o prestígio e a história de Arafat eram fundamentais para garantir a legitimidade dos acordos que estavam sendo firmados sem uma participação ativa e democrática do povo palestino, principalmente dos refugiados, em especial os refugiados de 1948 que, com os acordos, teriam que renunciar à sua histórica luta pela retomada de suas terras, pois sua própria liderança já tinha decidido por isto. Said chegou a afirmar que Arafat
É um mestre em corromper até mesmo os melhores de seu povo; ele comprou ou ameaçou toda a oposição organizada (há sempre indivíduos que não podem ser cooptados) e portanto a eliminou como ameaça. O resto da população vive na incerteza e é desencorajada a reagir. A Autoridade emprega em torno de cento e quarenta mil pessoas; se multiplicarmos isso por cinco ou seis (o número de dependentes de cada empregado), teremos perto de um milhão de pessoas que tem seu meio de vida controlado por Arafat (Idem: 77).
Apesar dessa situação Said acredita que “uma nova liderança provavelmente irá surgir entre os palestinos que vivem em outros países (…) todos consideram a Autoridade sem real legitimidade e são os que tem mais a ganhar com o direito ao retorno” (Ibidem: 77). Já para Michael Warschawski, que foi membro da Organização Socialista Israelense (MATZPEN), um agrupamento marxista que lutou intensamente contra o sionismo e os governos de Israel, apesar das concessões realizadas, Arafat tinha pré-estabelecido limites em sua negociação com os israelenses. Ao contrário de Said, que comparava o governo de Arafat com o governo Francês que aceitou a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939/1945), tornando-se assim um colaborador na opressão de seu próprio povo, Warschawski acredita que essa comparação é mais recomendável quando se trata do atual governo palestino, que pode estar trilhando neste momento esse vergonhoso caminho. Esses limites mantidos por Arafat, segundo ele, tinham como referência o direito à autodeterminação, soberania e o direito ao retorno dos refugiados. Mas com o atual presidente palestino Mahmoud Abbas (Abu Mazen) ele sugere que esses limites desapareceram, pois para aquele que substituiu Arafat “os Estados Unidos, e somente eles, decidem o que é realista e realizável, e o movimento nacional palestino não tem outra escolha a não ser aceitar o alinhamento com Washington” (WARSCHAWSKI, 2010: 30 e 31).
Também a FDLP, desde seu nascimento em fevereiro de 1969, tem sido uma importante representante do pensamento marxista no interior da resistência palestina. Nos anos sessenta e setenta introduziram os militantes palestinos no estudo das obras de Marx, Engels, Lenin, Mao Tsé-Tung, Giap, Che Guevara, formando uma juventude crítica que além do desenvolvimento intelectual também adquiria experiência militar nas fileiras desta organização. Afirmando a incompetência da pequena-burguesia para levar até o fim a revolução palestina, criticando a postura antidemocrática e reacionária dos governos árabes e defendendo a necessidade de construção da unidade palestina em torno de um programa comum mínimo, a FDLP torna-se parte da vanguarda política que vai conduzir a OLP no caminho do fortalecimento do movimento nacional de resistência contra Israel. Sobre a tendência da burguesia dos países periféricos de conciliação com os interesses imperialistas, Lenin afirmava que
A burguesia das nações oprimidas converte constantemente as palavras de ordem de libertação nacional numa mistificação dos operários: em política interna explora essas palavras de ordem para firmar acordos reacionários com a burguesia das nações dominantes (…) em política externa procura pactuar com uma das potências imperialistas rivais para atingir suas finalidades de rapina (LENIN, 1988:147).
Em fevereiro deste ano a FDLP proclamava que
En el aniversario 43 de su gloriosa fundación, el Frente Democrático para la Liberación de Palestina (FDLP) renueva su compromiso de continuar la lucha en las filas del Movimiento Nacional Palestino bajo la bandera de la OLP, único y legítimo representante de nuestro pueblo, por el derecho al retorno, a la autodeterminación y a la creación del estado independiente con total soberanía, en la frontera del 4 de junio de 1967 y con Jerusalén Oriental como capital. (FDLP, 2012).
Esta e outras declarações anteriores fazem questão de reafirmar a concordância com a resolução aprovada pela direção da OLP sobre as fronteiras do futuro Estado Palestino. Sendo assim, entre os partidos de orientação marxista que hoje integram a OLP, somente a FPLP segue insistindo explicitamente que a solução para a questão palestina é o retorno ao programa original da organização, que estabelece como horizonte a ser alcançado um Estado da Palestina Laico e Democrático, em toda a Palestina histórica, onde possam viver cristãos, muçulmanos, judeus, ateus, etc, sem racismo, sem colonialismo, sem imperialismo. A compreensão sobre os debates políticos internos no movimento nacional da resistência palestina é sempre uma tarefa muito difícil, pois a realidade cotidiana do conflito promove mudanças significativas todos os dias, e muitos analistas são surpreendidos por importantes acontecimentos – muitas vezes inesperados – que nos obrigam a revisar constantemente aquilo que pensamos e escrevemos sobre esta situação concreta. Acreditamos que conhecer profundamente quem são, como se organizam e quais os principais desafios dos marxistas e seus partidos/movimentos na Palestina seja uma das tarefas fundamentais para que possamos fortalecer nossos laços de solidariedade e nosso compromisso com esta causa legítima de um povo que tem sabido manter sua dignidade e ousadia mesmo diante das mais difíceis situações.
*Militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), é também professor de sociologia do Centro Universitário da Fundação Santo André onde coordena o Núcleo de Estudos Latino-americano.
[1] Um livro interessante sobre a influência do sionismo na cultura e nas ideias é “A indústria do Holocausto – Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus”, do intelectual de origem judaica Norman Finkelstein (Editora Record).
[2] O Movimento dos Países Não-Alinhados é resultado da Conferência de Bandung, que ocorreu em 1955 na Indonésia. É um agrupamento de países que se uniram para defender o respeito à soberania, à autodeterminação das nações e a defesa de uma política externa independente, sem se submeter às imposições da URSS ou dos EUA, potências que disputavam o controle do mundo durante a Guerra Fria (1945-1991). Se reunem em torno deste movimento aproximadamente 115 países dos diferentes continentes.
[3] Criada em 1945 no Cairo, Egito, a Liga Árabe congrega 22 países, e tem se posicionado sempre favoravelmente à criação de um Estado Palestino.
[4] O nasserismo é uma corrente política que expressa as posições de um nacionalismo laico, inspirado no exemplo e nas idéias de Gamal Abdel Nasser (1918-1970), que foi presidente do Egito entre 1954 e 1970.
[5] Sobre a história da OLP neste período e as diversas organizações e posições políticas em seu interior, destacamos os livros Palestinos: os novos judeus (SALEM, 1977) e OLP – Histoire et stratégies, vers l´État palestinien (GRESH, 1983).
[6] Um importante livro sobre a origem do Fatah é El-Fatah: os comandos árabes da Palestina (Alencastre, 1969).
[7] Destacamos a Union of Agricultural Work Committees (UAWC), a Palestinian Progressive Youth Union (PPYU), a Union of Palestinian Women Committees (UPWC), a Defence for Children Internatinal – Palestine Section, a ADDAMEER-Prisioners Support and Human Rights Association, o Palestinian Centre for Human Rights, etc.
[8] Para uma melhor compreensão do pensamento político de Arafat entre 1956 (fundação do Fatah) e 1969, e sua posição sobre a FPLP e a FDLP nesse período recomendamos o livro “Porque lutam os palestinos?” (ARAFAT, s/d).
[9] Por exemplo: segundo Kapeliouk (2004:64 e 65) Yasser Arafat e Abu Jihad, ambos na condição de líderes do Fatah, se encontraram, entre 1963 e 1965, com Houari Boumediene (ministro argelino do governo de Ben Bellah), Che Guevara (Ministro de Cuba), Enver Hoxha (secretário-geral do Partido do Trabalho-Albânia), além de diversos membros dos governos da China, Vietnã e Coréia do Norte.
[10] Como tentaram principalmente os governos da Líbia, da Jordânia, da Síria, do Iraque e da Arábia Saudita.
[11] Documentos, artigos e entrevistas com dirigentes da FPLP sobre a situação atual da luta palestina podem ser encontrados em http://pflp.ps/english/ .