Por Catherine Halpern, via Sciences Humaines, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Levando a sério as vozes dos pobres e dominados, Jacques Rancière insiste na capacidade dos indivíduos para se subtrair das identidades que lhes são atribuídas. Ele recorda que, na democracia, todos devem participar no poder.
A igualdade, este é a grande tarefa para Jacques Rancière. Mas cuidado para não a obscurecer e sempre diferi-la por um discurso eterno sobre os mecanismos de dominação. Não se deve visar, mas constituir a igualdade, seja ela política, estética ou intelectual. Pegando o contra pé de abordagem frequente das ciências sociais, J. Rancière se recusa a reduzir os modos de vida e de pensamento dos indivíduos à suas determinações sociais, culturais ou históricas. Atento à parte dos “sem-parte”, os pobres, os excluídos e os dominados, ele afirma enfaticamente que as pessoas não estão trancadas em um destino social que ditaria seus pensamentos, gostos, aparências ou suas aspirações.
Certamente J. Rancière é um filósofo inclassificável. Ele não pertence à nenhuma escola, não fundou nenhuma corrente de pensamento e sem dúvida recusaria qualquer rótulo. E por uma causa: ele não cessou de lutar contra as classificações, intelectuais ou sociais. As fronteiras disciplinares o desagradam: aí ele viu pela primeira vez a disposição entre os pesquisadores para manter seu território. No cruzamento entre a história, a educação, a política e a estética, ele oferece uma viagem filosófica incisiva e singular que espera desconstruir as certezas mais bem estabelecidas.
Catherine Halpern: Qual o papel Maio de 68 teve na sua ruptura com o marxismo?
Jacques Rancière: Nos anos 1960, o marxismo aparecia como o horizonte intransponível do tempo. A lição de Althusser se apresentava como uma tentativa de propor um marxismo científico, rigoroso, regenerado em sua fonte e capaz de portar uma nova revolução, levada pelos povos do terceiro-mundo, varrendo a imagem cinza da revolução soviética. O primado da formação teórica que ele afirmava se acompanhava de uma teoria da ilusão: as desgraças dos dominados vinham a eles primeiro em função de sua ignorância das condições da dominação. Louis Althusser desconfiava dos movimentos de estudantes que ele julgava aprisionadas em uma ideologia pequeno-burguesa ignorante das realidades da luta de classes. Maio de 68 foi para mim um revelador: esses movimentos que ele qualificou de ideológicos estavam atacando a construção do conhecimento burguês e realmente tinham uma capacidade real de mobilizar as massas e de subversão da ordem social.
Minha ruptura com o marxismo não está ligada simplesmente às circunstâncias: ela é primeiramente a recusa do pressuposto alojado no coração mesmo do marxismo de Althusser, e do marxismo em geral, a saber, que os homens são dominados porque eles não têm consciência das leis de sua dominação e que, para libertá-los, é preciso primeiro lhes dar a ciência.
Catherine Halpern: Você então mergulhou nos arquivos dos trabalhadores do século XIX. O que você procurava ali?
Jacques Rancière: Eu tinha o sentimento de uma distância considerável entre a realidade dos movimentos trabalhadores e a imagem clássica que dão a eles o marxismo e os partidos comunistas. Eu quis procurar na história a realidade das formas de emancipação trabalhadora para compreender como elas haviam sido confiscadas pelo marxismo. Mas havia na minha abordagem um pressuposto: a emancipação trabalhadora continuava o pensamento da classe trabalhadora concebida como um coletivo, um pensamento fundado sobre condições dolorosas de existência, sobre tradições e culturas próprias. Trabalhando sobre os arquivos, eu descobri uma paisagem muito diferente: aqueles que haviam dado consistência ao movimento trabalhador não esperavam ser os representantes legítimos de sua classe, de sua cultura e tradições, mas eles eram primeiramente os indivíduos que colocavam em questão uma certa identidade trabalhadora.
Ali onde eu esperava uma espécie de cultura autônoma, trabalhadora, enraizada na profissão e na condição de vida, eu descobri um fascínio pela palavra literária e pela cultura do outro, a vontade de existir inteiramente como indivíduos compartilhando o mesmo mundo. É isso que eu tentei mostrar no La Nuit des prolétaires (A noite do proletariado) através desses trabalhadores que, depois de trabalhar o dia todo, pensam e criam a noite. A burguesia e os homens de letra, ainda que benevolentes, julgavam que os trabalhadores não tinham que fazer as alexandrinas, a grande poesia, mas as canções para o trabalho e as festas populares. É uma maneira de fechá-los em sua identidade. Eu fui apreendido pelo fato de que não se tratava de se libertar pela consciência, pois esses trabalhadores tinha perfeitamente a consciência de sua situação, mas de se pensar capaz de um outro modo de vida do que aquele de ser dominado. A emancipação visa dar desde então um modo de existência, de percepção, de pensamento dos cidadãos de toda a humanidade.
Catherine Halpern: Você foi então levado a ter sobre essa história do trabalhador um outro olhar do que a história social…
Jacques Rancière: Para mim, os arquivos dos trabalhadores contam enquanto discursos e não tanto como testemunho sobre a mentalidade dos trabalhadores em certo momento da história. Minha abordagem foi, portanto, em completa contradição com a tradição da história social. A história quis se transformar pensando a si mesma como história das grandes massas e história da vida material e não somente como a história dos príncipes. Mas pretendendo ser a história daqueles em baixo, ela fechou a história dessas populações na vida material. Todo o discurso histórico funcionava como uma filosofia explicando porque as pessoas da época e do lugar em que elas estavam não podiam pensar a não ser aquilo que elas pensavam. Enquanto a direção de meu trabalho foi precisamente de mostrar como, em certo momento, um pequeno grupo de trabalhadores haviam sido pegos por palavras e pensamentos impensáveis, como elas haviam tentado romper com a cultura de sua classe como classe social produzida por uma certa sociedade.
Catherine Halpern: É isso também que o opõe a Pierre Bordieu:
Jacques Rancière: O coração da abordagem de Bourdieu é sempre para explicar que se as pessoas são dominadas, é também porque elas não sabem que elas são dominadas. Seus trabalhos com Jean-Claude Passeron sobre a escola explicam que se os trabalhadores são excluídos do ensino superior, é porque a escola os faz acreditar que eles são incluídos, quando na realidade lhes faltam as formas de ser que levam ao sucesso. Quando eles não obtêm o sucesso, eles pensam então que é porque eles não são bons e se autoexcluem. Trata-se sempre de interpretar a sujeição em termos de ignorância, de desconhecimento. Em La Distincition (1979), Bordieu explica assim que cada classe social tem os gostos e o modo de comportamento que corresponde a sua condição. Mas desde o século XVIII, as classes dominantes se inquietam de que existiam muitas pessoas que queriam ler, escrever, adotar os comportamentos que não eram adequados a sua classe. Eu coloco acento precisamente sobre a importância disso que nós poderíamos chamar uma revolução intelectual, e mesmo uma revolução estética, na emancipação trabalhadora. A emancipação do trabalhador começa quando o trabalhador da construção pode portar sobre a construção um olhar que não é somente aquele do trabalhador trabalhando para seu patrão, ou do pobre trabalhando na casa dos ricos. Eu não nego absolutamente as determinações sociais. Eu digo simplesmente que não há forma de subversão que não seja uma luta contra esse destino. Nós o vemos todos os dias na transformação dos modos de pensar das pessoas que eram supostas estarem fechadas em um modo de existência. Muitos são surpreendidos ao ver os camponeses se servir de um computador já que eles pensam que isso seria muito complicado para eles. Existe muito saber-fazer, modos de ser e de gozar que são difundidos nos estratos populares supostamente tradicionais e que produziram transformações bastante radicais no modo de adesão à sua condição.
Os mecanismos de dominação do Estado e do capitalismo possuem engrenagens o suficiente para não precisar colocar ilusões na cabeça dos dominados. A questão é antes saber qual esperança racional nós podemos ter de mudar de vida e de construir um outro mundo. Aquilo que mantém a submissão não é tanto a ignorância do que a dúvida sobre sua capacidade de mudar as coisas.
Catherine Halpern: Qual é então para você a função do filósofo?
Jacques Rancière: Eu sou estranho à ideia de que a filosofia teria a tarefa de estabelecer os fundamentos do saber. Para mim, ela bem mais um atividade de desconstrução, de desclassificação. Ela deve questionar a pretensão dos discursos das ciências humanas – e de seu próprio discurso – de delimitar seu território e seus métodos e de assim separar seu discurso daquilo tidos como seus “objetos”. As ciências humanas e a filosofia são constituídas de descrições, argumentações, imagens que constituem a linguagem e o pensamento de todos. O que eu sempre tentei fazer é tratar as palavras dos trabalhadores, dos pobres, dos sem-parte como todo o pensamento.
Catherine Halpern: Não só eles pensam de forma plena mas eles são cidadãos de todo direito. Por que a política e a democracia estão intimamente ligadas?
Jacques Rancière: Toda uma tradição identifica a política com a ciência e o exercício do poder. Michel Foucault ampliou a questão do poder estudando o conjunto das tecnologias em ação no controle da vida e das populações. Eu me centrei ao contrário sobre o tipo de poder bastante particular que implica a política. Existe uma infinidade de formas de poder, na empresa, na escola, na religião, na família….. Mas esse poder não é propriamente político pois há uma distribuição estatutária das posições. Na democracia, o poder político é dado de imediatamente como um poder onde as posições não são fixas, como um poder exercido em nome daqueles que não o exercem. Aristóteles disse que o cidadão é aquele que está envolvido no fato de comandar e de ser comandado. Não existe verdadeiramente política quando o poder pertence aos supostos descendentes dos fundadores da cidade ou aos monarcas de direito divino ….. A política para mim começa com a democracia porque a democracia é o poder daqueles que não tem um título particular para exercer o poder; ela é o reconhecimento do poder de “não importa quem”.
Catherine Halpern: Você é bastante crítico em face dos discursos dominantes sobre a crise da democracia…
Jacques Rancière: Quando nós falamos de crise da democracia ou de doença da democracia, nós designamos simplesmente o fato que os Estados ditos democrático o são em realidade muito pouco. Eles são governados pelas oligarquias limitadas de políticos, experts, homens de mídia, as oligarquias largamente endogâmicas e cada vez mais internacionais. Não se trata de uma crise da democracia, mas de um confisco da democracia. Quando nós falamos de crise da democracia, nós tentamos inverter as coisas, como se o problema viesse não das práticas de poder, mas da coletividade dos cidadãos. Quando nós “votamos mal” por exemplo nas eleições de 21 de Abril de 2002 ou do referendum sobre a Constituição Europeia, nós dizemos que há uma doença na democracia porque aqueles que votam seriam pessoas atrasadas, incapazes de reconhecer as evoluções necessárias, ou bem consumidores egoístas que escolher um candidato segundo seu interesse pessoal. Nós somos na verdade em face de uma democracia largamente confiscada, condição que justifica o discurso intelectual sobre a crise da democracia em nome seja da incapacidade do povo, seja de seu egoísmo.
Entrevista realizada em 10/05/2011
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