Por Gérard Lebrun
Nosso modo espontâneo de pensar quando falamos sobre a História é de um estudo de fatos “objetivos”, que aconteceram “realmente” em um dado lugar e momento. Mas para Gerard Lebrun, se a ideia de História assim entendida pode servir bem aos historiadores, de forma alguma pode nos ajudar a entender como Hegel desenvolveu seu conceito de História e sua relação com a filosofia. Neste trecho extraído de seu livro O Avesso da Dialética: Hegel à luz de Nietzsche, Lebrun contrasta a abordagem hegeliana da História com o saber dos historiadores para demonstrar como Hegel pode nos oferecer uma leitura muito mais radical sobre o processo histórico e sua relação com o devir.
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Em suma, este é o rumo que podemos começar a tomar, partindo de algumas indicações esparsas da Segunda Consideração Intempestiva. Estas nos convidam menos a refletir sobre a finalidade dogmática que serve de imã à História hegeliana do que sobre o estilo — estranhamente fúnebre, e mesmo mórbido — desse finalismo; o que sublinham não é tanto o famoso “otimismo” hegeliano, é o “pessimismo tranqüilo” (na expressão de Habermas) que lhe confere sua coloração tão peculiar. Taisindicações obviamente não são provas. Simplesmente nos azem levar a sério algumas impressões de leitura. E, partindo delas, talvez possamos — por exemplo — analisar de uma nova maneira a atitude desdenhosa de Hegel perante a história dos historiadores, cujo fito consiste sempre em reconstituir o acontecimento — o que só pode ser o cúmulo da futilidade. Um bom exemplo disso Hegel encontra na teologia chamada de “nova” (neuere Theologie). “Nova”, porque esvazia de todo o conteúdo conceituai o saber referente ao divino, que ela transforma em mera erudição.
“Esses teólogos não lidam, absolutamente, com o verdadeiro conteúdo, com o conhecimento de Deus. A Deus eles conhecem tanto quanto o cego conhece o quadro cuja moldura apalpa. Sabem que tal dogma foi proclamado por tal concilio, que os participantes desenvolveram tais argumentos, e qual foi à opinião que prevaleceu. É portanto de religião que eles tratam, porém o que discutem não é já a religião mesma. Eles têm muito a contar sobre o pintor, que destino teve a tela, o preço que foi pago por ela, os compradores que encontrou — mas, do próprio quadro, eles nada nos fazem ver.”
Por que esse assanhamento pela precisão erudita, pelo registro do efêmero, mereceria o nome de saber? O historiador acredita saber porque consegue representar o que se tornou distante — porque salva do esquecimento o que se afasta no tempo. Em sua tarefa ele dispõe de documentos — monumentos, inscrições, crônicas, arquivos — que, em sua maior parte, estavam destinados a fixar a memória do acontecimento (Hegel talvez ressalvasse os arquivos, a documentação burocrática, que seria mais correto ver como um documento de racionalidade).
Ora, quem tem interesse em embalsamar o acontecido sob a forma de recordação? Quem são os fornecedores do historiador? Forçosamente, hão de se assemelhar aos fiéis da primeira comunidade cristã a essas almas ingênuas que não suportavam ver o seu Deus recuando rumo ao passado, esfumaçando-se no ter-sido, e que por isso não queriam mantê-lopresente, e sim manter sua presença. Jesus já não estava, porém fora visto, fora ouvido, e bastava essa recordação para deter o trabalho do tempo. “Em vez do Conceito, nascem, mais propriamente, a mera exterioridade e singularidade, amodalidade histórica do fenômeno imediato, a recordação já sem espírito de uma figura singular visada e de seu passado.” É esta a má reminiscência: liga a coisa à data que lhe cabe, impõe-lhe lugar devido — por todo o sempre, só que por todo o sempre fora do lugar. Ela nunca me torna dono, apenas espectador, do que evoca. E a informação que fornece aos historiadores não diz respeito ao que ainda é (e sempre será) verdade, relativamente à coisa — serve apenas para determinarque foi verdade que, tal dia. . . Essa reminiscência pode muito bem dar a verdade sobre a coisa, mas exclui a própria ideia de que haja uma verdade da coisa.
“A abordagem histórica deixa de lado a geração absoluta desses dogmas nas profundezas do Espírito, e por conseguinte a Necessidade, e a verdade, que eles também têm para nosso espírito […] A história lida com verdades que foram verdades, isto é, para outros — e não com verdades que ainda o sejam para os que lidam com elas.”
O trabalho da rememoração genuína é exatamente o contrário desse memorial: em vez de sepultar o conteúdo em seu elemento perecível, ela o liberta de seu passado. O que Cristo fez ou disse tal dia, em tal lugar (das Ehemalige), éreduzido graças à rememoração a mero rastro (nur noch eine Spur), a “simples matiz de sombra’’ (einfache Schattierung), a “abreviação”. É claro que seria absurdo propor um ideal desses ao historiador: É o mau historiador que pratica a “abreviação” e faz “os acontecimentos se resumirem em abstrações”. Mas isso é uma prova suplementar de que a história-narrativa, disciplina forçosamente “representativa”, nada tem a ver com o discurso da História. Se, para a História-discurso, “nada está perdido no passado”, não é absolutamente porque ela seria um inventário exaustivo: e sim porque ela “só lida com o atual”. E não é mais a erudição, é a cultura que serve de modelo a essa outra atitude relativa ao passado. O que importa quem foi Euclides, ou como viveu Platão: seu ser histórico está inteiramente na tradição escolar e cultural que consumiu e assimilou sua obra. O passado, portanto, não está nem atrás de nós nem á nossa frente; não somos seus herdeiros nem seus espectadores, menos ainda seus inquisidores — somos seus consumidores. É por isso que Hegel não podia pensar em escrever ou reescrever história. O discurso da História-do-Mundo é coisa muito diferente, que não exige nem crítica dos textos, nem pesquisa, nem métodos novos, para se orientar em meio à massa dos fatos. Seu único objetivo é decifrar, no interior desses, a produção da racionalidade que a Europa incorporou a si. Paradoxalmente, então, o que caracterizará o histórico é ser, ele, constitutivo de nosso presente, e não o peso que pode ter exercido sobre o curso dos acontecimentos, a inflexão que tenha dado a estes últimos (alternativa que seria a do “nariz de Cleópatra”). Assim, cada vez que Hegel parece estar contando o passado do Espírito, ou de uma de suas formações, na verdade está tornando a demonstrar que “o que o Espírito faz não é história” (keine Historie), e que portanto suas produções não precisam, de forma alguma, ser salvas da decrepitude ou do esquecimento.
“Não apenas essas obras não estão entrepostas no templo da memória, como imagens do que foi outrora, mas ainda elas são hoje, tão vivas, tão presentes como quando nasceram. São produtos e obras que os sucessores não suprimiram, nem destruíram. O elemento que as conserva não é a tela, nem o mármore, nem o papel, nem as representações, nem a memória; essas obras não são elementos perecíveis, porém o pensamento, a essência imperecível do Espírito — na qual não penetram vermes nem ladrões. O que o pensamento adquire como tendo sido elaborado por si constitui o ser do Espírito mesmo.
Por isso tais conhecimentos não compõe uma erudição, o saber do que morreu, foi enterrado e se putrefaz; a História nada tem a fazer com o que muda, ela lida com o que está atualmente vivo”.
Portanto a História-narrativa só pode operar contra a História-discurso. Voltando-se para “o que muda”, a primeira é uma disciplina “positiva”, que confere espessura e autoridade de objeto ao que, do ponto de vista da Historia-discurso, limita-se a se abolir n’“o que está atualmente vivo”. Tudo separa Geschichte e Historie: elas não têm o mesmo objeto, nem a mesma teoria da objetividade. E é fácil compreender por que. No seu belo livro Como se Escreve a História (ou, na língua hegeliana, “Como o Entendimento escreve a historia”), Paul Veyne afirma que a ontologia do historiador conhece apenas indivíduos,ousiai dispersas, que tudo o que sabem é agir e padecer….. . Nesse ponto, pelo menos, ele concorda com Hegel. Pois é esta a ontologia da história-narrativa, tal como a concebe Hegel; ou seja, uma ontologia que por definição ignora a negatividade. Com efeito, a história-narrativa impõe a seu leitor uma representação do tempo que exclui a negatividade, porque ela tematizao que foi de tal forma em tal data, ou ainda nos explica por que, em determinada época, existia uma coisa inteiramente diferente. Ora, o único “tempo” compatível com essa tópica é um “tempo” que Hegel julga eminentemente abstrato: um lugar de passagem, um “meio” indiferente através do qual houve formas sucedendo-se ou mudando…..
Hegel não gosta quase nada da palavra mudança (blosze Veranderung). A mudança é o devir — porém na medida em que ele afeta as substâncias finitas, em que as faz envelhecer. Não é o devir característico do Espírito o que as faz perecer. A análise de uma formação histórica considerada enquanto mutante não contribui em absoluto para determinar sua significação “espiritual”. Pois, como sabemos, a constituição do Espírito não resulta do movimento d’“o que muda”, e sim do desaparecimento d’“o que muda”, pressupondo pois um conceito de “tempo” que nada tem em comum com o (ou com os) dos historiadores. O único “tempo” de que a História-discurso precisa é o contrario da duração. É um tempo que só comparece para censurar o perecível, enterrar o que não deve retornar — em suma, anular o aspecto dispersivo do devir, aspecto este que a história-narrativa aceita sem maiores problemas. É “o devir mediatizando-se a si mesmo […] alienação que é também alienação de si mesma”. E uma tal ideia do tempo só pode ser um tema mítico sem nenhuma serventia para o analista do “Era assim” (Es war). Se o historiador toma por objeto o factual, se ele se prende ao que veio-a-ser (das Werdende), que necessidade tem então de se preocupar com o devir dissolvente que endossa a finitude deste ultimo? Entre a investigação do passado e o discurso da supressão do passado naquilo que é “atualmente vivo”, não há conciliação possível. Num campo e noutro, a palavra passado não possui o mesmo sentido. O historiador — este é seu ideal e sua justificação — esforça-se por tomar o passado tão exótico que, sem ele, sem a paciência que o caracteriza, não teríamos condições de imaginá-lo: o que seria uma história (ou uma filologia) que não tentasse desconcertar, perturbar as ideias aceites? Mas é de um “passado” oposto a este que Hegel nos fala — de um passado que estava destinado a ser sublimado, a ser ideologizado — de uma Grécia cujo sentido consistia, já então, em ser ela a Grécia “atualmente viva” (nos discursos da Convenção ou nas conversas de Goethe). E nisso nada há de paradoxal: o Espírito-do-Mundo é justamente essa maquina prodigiosa graças a qual o ideológico deixa de ser a deformação do vivido, para ser a verdade do que está morto.
Se levarmos em conta esse abismo entre Geschichte e Historie, perceberemos que a História-do-Mundo escapa a todas as críticas que poderiam ser dirigidas a uma narração (de ser parcial, simplista, etc.) — e especialmente a acusação de anacronismo. Se é anacrônica, não é por falha do autor — porem por definição, dado que só conserva, de cada seqüência do passado, o que o Espírito foi capaz de assimilar. Para ela, não haverá, portanto, nada que seja longínquo: aonde quer que lance seu olhar, só encontra o que já está presente. Quando percorre as religiões, as formas de arte ou as formas políticas (sem nunca interrogá-las, é claro, quanto ao que elas foram: pois seria reconhecer-lhes uma objetividade que ficou para trás, uma realidade resistindo, tenaz, por sob a “verdade” delas), e sempre para ver como se antecipa o Presente espiritual que hoje está totalizado, ou a ponto de totalizar-se. É porque só fala do Presente espiritual que Hegel pode nos informar, com a maior naturalidade, que a história da sociedade até nossos dias foi apenas a história de como advém à liberdade do Espírito — na paráfrase de uma expressão célebre. Seja qual for o trajeto escolhido, ele não comportara surpresas — não porque saibamos previamente o que acontecera (pois o Espírito não consiste no balanço d’o que aconteceu), mas porque já sabemos o que esta em jogo e que cartas vão sair. Barreiras, atalhos, acidentes de percurso ficarão no escuro — e Hegel “historiador” prefere enfatizar a precocidade e não o atraso do Espírito. É somente a propósito de algum advento no tempo factual, do surgimento de uma instituição, que tem cabimento falar em “atraso” — e não a propósito da manifestação do Espírito. É verdade que o Espírito pode haver demorado séculos para passar de uma categoria a outra — que ele levou (apreciemos a precisão) dois mil e quinhentos anos para fazer o Ocidente saber quem ele era. Mas, e dai? O Espírito-do-Mundo tem o tempo ao seu dispor. Nem acelera nem atrasa o passo, posto que seu itinerário temporal não passa do avesso, e da aparência, de seu entesouramento. Progredir, para ele, é clarificar-se. Ele não esta no devir: é devir; entendamos: a supressão do que deveio. Voltamos sempre a esse mesmo ponto, no qual a vanitas vanitatum é autodemonstração da eternidade. Mas é a recorrência desse mesmo ponto que permite avaliar como foi errado acusar Hegel de divinizar a história.
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*Trecho extraído de “O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche”, Editora Schwarz, 1988, São Paulo.