Por Agon Hamza e Frank Ruda, via Crisis and Critique, traduzido por Daniel Fabre.
Nos cinquenta anos do renomado “Ler o Capital”, um de seus coautores, Pierre Macherey, fala em entrevista aos editores da revista Crisis and Critique, Agon Hamza e Frank Ruda, sobre a atualidade da obra que marcou a França dos anos sessenta e que representa junto a “Por Marx” uma das obras mais importantes de Louis Althusser. Macherey fala sobre o althusserianismo, suas relações com o pensamento de Michel Foucault, Gastón Bachelard e Jacques Lacan, sobre os questionamentos e aportes que o moveram, assim como sobre o futuro dessa empreitada que buscou refundar o marxismo na unidade entre política e filosofia.
Agon Hamza e Frank Ruda: Você poderia nos contar um pouco sobre o projeto do Ler o Capital na École Normale Superieure (sob a direção de Althusser)? A maneira pela qual ele foi iniciado, mas também sobre o seu engajamento pessoal no projeto?
Pierre Macherey: Inicialmente esse trabalho era um seminário de pesquisa, seguindo aqueles que Althusser tinha organizado nos anos anteriores para os estudantes da École. O tema desse seminário era o “Capital” e os problemas particulares que a leitura desse livro trazia, que, de acordo com Althusser, não tinha sido devidamente “introduzida” na França, diferentemente de outros livros, ou seja, se foi introduzida, foi somente com base em toda uma série de mal-entendidos que estavam ligados a história política da sociedade francesa, da maneira pela qual o movimento dos trabalhadores tinha se desenvolvido e se organizado. Por isso esse livro era diretamente do interesse de todos. Esse projeto cobria então dois territórios ao mesmo tempo: um era acadêmico (era uma questão de saber se esse trabalho de Marx era aberto a uma leitura “filosófica”, do tipo que, por exemplo, se pode aplicar a metafísica das Meditações de Descartes), e o outro era mais conjuntural (era uma questão de avaliar, através do caso particular da recepção de Marx na França, as possibilidades de uma mudança sócio-política, no sentido de uma revolucionária Veränderung da qual ele fala nas Teses sobre Feuerbach). Não era algo evidente que era preciso seguir esses dois pontos juntos: o único modo de chegar lá era praticar um movimento livre, aberto aos caminhos de diversas investigações sem nenhuma ideia preconcebida. Isso foi o que aconteceu: o seminário aconteceu da maneira usual, todos deram suas próprias contribuições as quais ele investiu com suas próprias habilidades, suas curiosidades e seus próprios interesses; é por isso que houve uma certa heterogeneidade no modo de lidar com tais problemas que surgiram sem nenhuma preocupação de resolvê-los completamente, de algum modo constatando o que aconteceu e em cada caso procedendo de uma maneira improvisada. Quando, no ano seguinte, Althusser decidiu reunir os textos que foram apresentados nesses moldes do seminário para fazê-los aparecer juntos como um volume da coleção “Teoria”, pela qual ele tinha publicado seu Por Marx, ele próprio teve de tentar dar uma aparência mais sistemática a esse conjunto discrepante, cuja heterogeneidade gerou uma riqueza, sem certa desigualdade qualitativa entre as diversas contribuições, como é o caso de qualquer pesquisa conduzida em grupo. Para esse fim Althusser escreveu depois, que tinha por objetivo dar a essa coleção uma aparência de um livro que formasse um todo coerente. O longo texto introdutório intitulado “Do Capital a ‘filosofia’ de Marx” onde é introduzida a hipótese da “leitura sintomal”, constitui o tema central desse texto.
A nova apresentação mudou consideravelmente o antigo espirito do trabalho, que, nesse momento, seguiu a lógica não de um sistema, mas de um julgamento, no sentido de que ele era uma exploração livre cujo objetivo não era fixado desde o inicio. De minha parte, apresentei uma contribuição “Sobre o processo de exposição”, que lidava com um ponto particular, assim como, no plano de fundo, com a questão geral sobre o “começo em filosofia”: isso era um rascunho de trabalho que eu havia formulado antes em minha preparação para um PhD em filosofia com Jean Hippolite, àquele tempo chefe da École Normale Superieur, que de forma simpática acompanhava o movimento de Althusser e seus estudantes.
Essa contribuição propunha certas hipóteses que não podiam fingir uma apresentação de algo de natureza completa: era o típico movimento de um estudante avançado que, depois de anos de preparação para exames e mais exames, tinha se jogado em uma pesquisa pessoal que, logo que começou, já estava longe de se ater a quaisquer resultados definitivos. Agora, com cinquenta anos de distancia, eu releio essa contribuição e vejo todas suas imperfeições, que em sua maioria são porque o texto sobreviveu em um contexto que, por si mesmo, tinha tido na realidade ou na aparência uma consistência muito mais forte do que a minha reflexão naquele momento foi capaz de se ater, quer dizer, falando nisso, não tinha sequer previsto fazer. Quando, tempo depois fui apresentado sob o título de “co-autor” de Ler o Capital, não pude evitar o sentimento de um certo mal-estar, pois, para ser honesto, quando eu intervi nesta empreitada, não foi muito como um “autor” propriamente dito, mas como, e isso não é exatamente a mesma coisa, um contribuidor. Na verdade, Ler o Capital só tem um autor: e ele é Althusser, que porque tinha planejado esse livro com base em trabalhos que lhe foram enviados, gerou uma obra completa pela qual carrega toda responsabilidade.
Agon Hamza e Frank Ruda: Qual foram os efeitos da publicação desse livro na cena intelectual da França naqueles tempos?
Pierre Macherey: Quando estava quase pronto, o livro gerou bastante interesse pelo novo tom que trazia e pela relativa novidade dos temas, que foram abordados de uma forma que evitava tanto quanto o possível o refugio na linguagem de pedra da universidade, o que o fez acessível ao público em geral. Particularmente, ele se engajou na discussão sobre o humanismo, que no momento da publicação tinha se tornado virulento. A “cena intelectual” naquele tempo, como você disse, foi dominada pela alvorada do estruturalismo e pelo declínio de um certo sartrianismo. Nesse ambiente, a maneira pela qual Althusser ligou filosofia e política sob a marca de “Teoria” pareceu ser original e provocou uma moda, mesmo uma paixão que durou precisamente até 1968, quando ele veio a se tornar alvo de ataques, que nos anos seguintes vieram de todas as frentes e se tornaram mais e mais incisivos: ele próprio inflexionou seu movimento, se preparando para limpar qualquer traço teoricista, que lhe infectasse. Mas, e esse é o ponto mais importante, os efeitos que Ler o Capital produziu tinham amplamente revirado a “cena” francesa: sua difusão foi realmente grande, especialmente na América Latina; o livro foi traduzido em todas as línguas (com exceção do russo e do chinês!) e o movimento nunca foi interrompido: ele ainda segue hoje em dia. Se esse livro ainda existe hoje e se foi até mesmo metamorfoseado em uma espécie de mito, foi porque essa audiência internacional que ele recebeu o subtraiu rapidamente dos debates estritamente franceses, fazendo ainda mais ruido enquanto se desdobrava em um tipo de aquário, de uma maneira auto-referencial.
Agon Hamza e Frank Ruda: Poderíamos falar de um momento althusseriano na filosofia francesa? Poderíamos dizer que a publicação de “Ler o Capital” e “Por Marx” criou tal momento? Ou você pensa, ao contrário, que tal caracterização é problemática?
Pierre Macherey: Se esse momento existiu ele não durou muito. Mas a força de Althusser sobreviveu esse momento: sua recepção foi além de Ler o Capital e isso permanece fundamentalmente aberto para quaisquer perspectivas de investigação. Sua preocupação principal era de atingir uma nova forma de fazer filosofia, tomando-a por fora de seu esquema fechado de especulação acadêmica e em particular aproveitando benefícios vindos das ciências humanas, mas ele não foi o primeiro a fazer isso na França. É essa preocupação que atravessa todo seu trabalho e que lhe dá unidade, apesar do caráter divergente de suas intervenções. Para ele, filosofia é o pensamento voltando para si mesmo, não do céu vazio das ideias puras, mas em uma certa conjuntura, em vista de produzir efeitos práticos e políticos: desse ponto de vista, o autor que o guiou tanto quanto Marx, que constantemente o ocupava, é Maquiavel, para quem ele dedica muitos textos, que apesar de sua obvia incompletude, são muito interessantes. É lamentável que sejam tão mal conhecidos e estudados.
Agon Hamza e Frank Ruda: Visto em retrospectiva, você poderia nos clarear como se caracteriza a singularidade da intervenção de Althusser, primeiramente no contexto político de seu tempo e seus impasses, mas talvez também na novidade filosófica e científica que esse momento produziu?
Pierre Macherey: Desde o inicio Althusser estava mudando de relação ao que você chama de “seu tempo”, que ele tentou derrotar em um espirito revolucionário. Ele queria, e costumam repetir isso explicitamente, “fazer as coisas se moverem”. Isso aconteceu? Sim e não. Sua tentativa de dar um novo espirito ao Partido Comunista Francês por meio da filosofia falhou visivelmente: e o que limitou essa tentativa é provavelmente o fato de que ele fez do PCF, que já estava em franco declínio, o principal alvo de suas intervenções. Deste ponto de vista, penso que ele provou de uma certa cegueira. Ele deveria ter procurado outros interlocutores, antes dos líderes políticos, cujo trabalhismo e corporativismo visceral, seu correlato, eram a base de todos seus movimentos fundamentais, os quais eles eram totalmente incapazes de renunciar, o que acabou lhes custando caro demais. No contexto propriamente francês a avaliação política de Althusser é, então, muito distante de algo positivo em geral. Mas não se deve aprisionar a si mesmo nesse contexto, cujos constrangimentos ele sabia forçar. Apesar do deslize em que ele caiu por razões pessoais, que ele mesmo destrinchou em sua autobiografia O futuro dura muito tempo, publicada após sua morte, ele chegou a dificuldades algumas vezes para reunir e relançar seu movimento em novas direções. Esse constante recomeço de seu pensamento, que nunca se fixou em aquisições definitivas, é o que trazem o principal interesse de sua obra. Para Althusser, o marxismo não era uma doutrina fechada, mas um campo de investigação, um “continente”, cuja exploração Marx começou, mas que esteve longe de completar o passeio. E o esforço de Athusser foi precisamente de alavancar essa exploração, para demarcar as linhas, para fazer a teoria acompanhando seu movimento, no sentido do que ele chamava “prática teórica”. No início sua ideia era de que o que faltava no marxismo era filosofia, e é precisamente essa filosofia de Marx, que o próprio Marx não desenvolveu, cujos contornos ele começou a delinear em seu Por Marx. Depois ele enfatizou um novo tipo de problema com relação à noção de ideologia, uma questão que ele atribuiu, como Gramsci o fez, uma importância primordial, mas que abordou com diferentes instrumentos (e particularmente aqueles providos pela psicanálise). Ele tinha compreendido que não é suficiente criticar a ideologia por sua fraqueza teórica: deve-se tentar também considerá-la sob o ponto de vista de seus efeitos práticos, que fazem dela o que poderia se chamar de uma força social atuante e não apenas algo que pertence à “superestrutura”, um véu de ilusão que jaz sobre a realidade e que a mascara. E depois ele tentou atacar outra lacuna do marxismo: sua recusa do problema da subjetividade. Que tipos de sujeitos são necessários ao capitalismo? Que tipo de procedimentos de subjetivação são usados no enquadramento das próprias relações sociais que ele instala? Essa interrogação está no coração do texto sobre os aparelhos ideológicos de estado, que com Por Marx e seus trabalhos sobre Maquiavel são a grande contribuição de Althusser ao pensamento contemporâneo. O texto inacabado, que para muita gente é enigmático, ainda hoje tem uma grande força, porque se relaciona com as preocupações que eram também naquele tempo as de Foucault e Bourdieu, em uma outra linguagem. Se há hoje ainda um interesse em ler Althusser, é nessa direção que se deve seguir.
Agon Hamza e Frank Ruda: Há um tipo particular de contemporaneidade entre as intervenções de Althusser e a psicanalise lacaniana de um lado, e as epistemologias racionalistas francesas e o novo espirito do maoismo de outro. Em que ponto, em sua opinião, “Ler o Capital” se relaciona ou se condiciona por essas outras práticas?
Pierre Macherey: As relações entre Althusser e Lacan foram assentadas no começo de um mal-entendido, taticamente assumido por cada um deles: foi justamente o simples caso de que eles precisaram um do outro por motivos circunstanciais, o que criou uma aparente cumplicidade entre eles, da qual eles próprios não se enganavam. Mas muito rapidamente, se tornou manifesto que seus interesses não estavam situados no mesmo nível e que eram mesmo divergentes. O que é real aqui é o constante interesse de Althusser pela psicanalise: seu interesse o tornou uma espécie de OVNI no mundo dos marxistas franceses e particularmente na cabeça de dirigentes comunistas para quem Freud era o diabo em pessoa, a incarnação por excelência da ideologia burguesa. Uma das vitórias de Althusser foi deixar claro que Freud possibilita uma leitura melhor de Marx, não porque um ou outro estejam falando a mesma coisa, mas precisamente porque sua inegável disparidade é fértil, intelectualmente estimulante, cria novas ideias.
Considerando a epistemologia que era praticada naquele tempo na França e que eu prefiro chamar epistemologia histórica do que epistemologia racionalista, era essencialmente representada por Bachelard e Canguilhem, cujos escritos nos interessou enormemente, mas que lemos certamente em uma maneira tendenciosa. Em retrospectiva, entendi que Canguilhem, que teve um papel muito importante em minha formação, deve ter estado atônito pela maneira como nós interpretamos seus trabalhos, os tomando em um sentido que não era aquele que ele mesmo decidiu começar (ele estava do lado do neo-kantismo, que depois se misturou com o nietzschianismo, uma mistura explosiva!): mas, como ele tinha um espirito muito aberto, ele não se opôs a essa interpretação e parcialmente a autenticou em seu livro Ideologia e Racionalidade na História das Ciências da Vida. Como para o maoísmo, nas muitas formas delirantes que ele tomou na França, esse é um assunto extremamente complicado: a relação que Althusser teve com esse movimento, que ele tinha certo respeito e em certos momentos esteve bem próximo, era constantemente tensa, cortada por suspeitas e por acusações não ditas. Eu estaria tentado a dizer que ela era formalmente da mesma natureza daquela que, por outro lado, Atlhusser manteve com Lacan, que hoje em dia se pode ver, era um grande pensador conservador de seu tempo, o que não diminui de todo o interesse que se pode ter de seus escritos.
Agon Hamza e Frank Ruda: Althusser começou entre outras coisas enfatizando uma hipótese de que o marxismo de seu tempo desenvolveu uma representação problemática de Marx. É dizer, ele não apenas buscou reinterpretar Marx – trazendo a cena uma nova leitura dele e um novo método de leitura – mas também era importante transformar o marxismo em sua totalidade. Posteriormente em sua vida, ele considerou seu projeto filosófico um fracasso. Você confirmaria esse julgamento de Althusser? E se é o caso, que tipo de fracasso estaríamos lidando? Se não, como poderíamos defender seu projeto, mesmo contra suas próprias avaliações?
Pierre Macherey: Há fracassos que, se se considera o outro lado da página, onde elas estão depositadas, são sucessos. Que a tentativa de Althusser não apresenta no fim das contas um caráter homogêneo e que não se fecha sobre si mesma, que não tenha chegado a resultados que poderiam ser considerados definitivamente absolutos, isso não me incomoda, pelo contrário. Se Althusser ainda é interessante hoje é porque ele pôs em circulação um certo numero de problemas que tinham sido de pouco interesse antes dele. Certamente, ele não foi o único a colocá-los em seu tempo. Havia Foucault, Bourdieu, que me referi a pouco; havia Deleuze e Guattari, Derrida, que não empregaram os mesmos instrumentos de pensamento que Althusser usou, eram linhas de investigação cujas orientações, sem convergir, tinham intersecção em certos pontos com aqueles que seguia Althusser. Há hoje em dia pessoas como Judith Butler, que reviveu a questão da subjetivação de uma nova forma, entre a psicanalise e a política. O que se deve fazer é confrontar essas aproximações, para fazê-las reagir umas às outras, para ver o que sai se postas em relação. Acredito que permanece muita coisa nesse sentido.
Agon Hamza e Frank Ruda: Como podemos conceber o objeto do Capital hoje, sob o ponto de vista de todas as coisas que mudaram nos últimos 50 anos depois de “Ler o Capital”?
Pierre Macherey: O livro de Marx parece para mim mais do que nunca tópico, sob a condição de que se tomado em uma leitura atenta, usando instrumentos óticos de uma maneira diferente: reler Marx sob a luz de Foucault, por exemplo, é particularmente proveitoso, como expliquei no estudo O sujeito produtivo, que republiquei em meu livro O Sujeito das Normas. Dessa perspectiva, o projeto que foi iniciado por Althusser em Por Marx ainda tem um sentido, sob a condição de que se deve renunciar a considerar Marx como o autor de um pensamento sui generis, coerente e final, que é somente possível se simplificarmos drasticamente os resultados esperados. Althusser costumava ser acusado de dogmático, enquanto para ele seu marxismo era uma visão completamente livre do caráter doutrinário. Apresentando hipóteses de trabalho que eram bastante inovadoras sob o nome sensacional de “teses”, ele contribuiu para a criação das condições desse mal-entendido: mas se deve tentar ler por entre as linhas, a fazer uma leitura sintomal disso, que dá pistas do que não é dito, as lacunas, da perspectiva de relançá-las. Sendo isso dito, saber como conceber o objeto do Capital hoje, como você pergunta, não pode ser senão o resultado de uma investigação coletiva, que já começou de lados diferentes, mas que falta um elemento unificador. A dolorosa falta na esfera da investigação teórica hoje é uma cultura de trabalho coletiva, que permita renovar os fios partidos. De minha parte, penso que isso deveria ser feito de uma maneira diferente do que chamam por “retorno a Marx”, como se Marx fosse “retornar”, com a postura de um supremo salvador: retorno, isso significa um retorno de volta e isso é dificilmente exitante. Esta claro que não se pode mais ler Marx hoje como se lia cinquenta anos atras, que dentre outras coisas, significaria que não se aprendeu nada nesse intervalo. A tarefa que se precisa estabelecer para si mesmo e que está longe de ser simples, é a de reinventar Marx, um novo Marx, que responde as questões de nosso tempo, aquelas da globalização, cuja importância ele próprio tinha percebido em um momento em que esse fenômeno mal tinha aparecido, mas que hoje se elevou a outro nível, com uma urgência intensificada.
Agon Hamza e Frank Ruda: Você pensa que somos capazes de fazer uma leitura sintomal de “Ler o Capital”? E se sim, o que pode tal leitura nos revelar? Quais são suas falhas e faltas, dado o fato de que Althusser nunca usou esse conceito em seus trabalhos ulteriores?
Pierre Macherey: Se há uma leitura a ser feita de Ler o Capital, cinquenta anos depois, como eu justamente disse, ela não pode ser senão sintomal. Isto é dizer, detectar consistentemente nessa empreitada do não-dito, suas falhas, suas faltas e tentar entender o que elas estão dizendo sem dizer, e isso deve nos levar a pensar além do que é explicitamente dito. Esse é o único meio de ir adiante e satisfazer as atuais exigências em um mundo que está cheio de transformações: isso acontece tão rápido que mal se pode saber onde elas estão. Parece-me que Althusser, se realizamos uma leitura critica dele e não uma pura celebração em sua memória, pode ainda suprir um certo numero de marcas e elementos conceituais de estimulo intelectual para se situar.
Agon Hamza e Frank Ruda: Como poderia a teoria althusseriana de uma nova ciência da história ser desenvolvida na visão dos novos meios conceituais desenvolvidos pela ciência recente?
Pierre Macherey: Hoje não se pode dar o mesmo valor e o mesmo peso a palavra “ciência” que se podia há cinquenta anos atrás. O sentido dessa palavra esta perdido. Está claro que o uso teórico que se fez dela naquele tempo serviu como um tipo de proteção, para garantir a legitimidade e a verdade. Não se pode mais ver as coisas da mesma forma. Althusser, não sem brutalidade, tentou eliminar a fronteira entre ciência e política, que é como ele, sem estar alerta, renovou o platonismo: essa tentativa apontada, se ao menos pudermos interpretar desse modo, é uma posição poderosa para o regime da Ideia, fazer da sociedade, embora imperfeita, uma encarnação do espirito. Isso não era razoável. E ainda, não há nada mais de uma “ciência da história”? O que se pode salvar talvez é a representação da história como um continente de uma realidade inteiramente separada, com suas próprias necessidades, chamadas modos de conceitualização originária. Alguém como Foucault, que é mesmo nietzschiano, desacreditando a referência da ciência, foi muito longe nessa direção e penso que deve ser interessante se voltar para esse lado para reviver a investigação nesse domínio da sociedade e sua história, uma investigação para a qual o marxismo tem muito a contribuir.