Por Jacques Alain-Miller, via Lacan.com, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Nesta entrevista realizada durante a primavera de 2011, Jacques-Alain Miller, conhecido legatário da obra de Lacan, fala sobre as antecipações que a obra lacaniana nos trouxe acerca de assuntos atuais, como a crescente onda de racismo, a crise da identidade sexual, o ressurgimento exacerbado do sentimento religioso e as crises financeiras, analisando tais questões a luz da estrutura psicanalítica tal como proposta por Lacan.
Le Point: Jacques Lacan lança luz sobre uma das coisas que atravessa nossa sociedade democrática: a predominância do individualismo. Nós podemos falar sobre a tirania do “Um”?
Jacques Alain-Miller: Nossos tempos são marcados pela crescente preensão de figuras, de contagem: nós queremos quantificar tudo. E o princípio de quantificar tudo é o “Um”. Sem o “Um”, nossos cálculos não existiriam, e hoje em dia eles estão em toda parte: na vida diária, na política – ao menos quando a votação está em causa – na ciência, na medicina em economia, nas bibliotecas, no show business, em todos os campos da atividade humana. O Islã é a religião que mais enfatiza o único “Um”. E contudo na sexualidade era a dualidade tradicional que era dominante. Tudo era baseado na complementaridade de ambos os sexos. Freud ainda concebia a relação sexual como base no modelo platônico e do evangelho: o homem e a mulher se transformando em uma só carne.
Le Point: Essa gangrena narcísica não prova que Lacan estava certo: “não há relação sexual”, dado que ela pode ser feita sem o Outro?
Jacques Alain-Miller: Lacan tinha deduzido que o modelo antigo não duraria, que a sexualidade passaria de um “Um” fusional para “Cada um por si mesmo”. Cada homem por si mesmo! Todo mundo pode ter a sua ou o seu modo de gozar! Até Lacan, isto tinha sido chamado auto-erotismo. E geralmente pensou-se que isso era algo que foi reabsorvido, uma vez que ambos os sexos foram feitos um para o outro. De modo algum! Este foi um prejuízo. Na base, no inconsciente, o seu gozo não é complementar com o de qualquer outra pessoa. As construções sociais normalmente segurar todo esse material imaginário no lugar. Agora eles vacilam, uma vez que o impulso do “Um” no plano político significa uma democracia em que “vale tudo”: o direito de todos ao seu próprio gozo tornou-se um “direito humano”. Em nome de que poderia o meu gozo ser menos legal do que o seu? Isto não pode mais ser entendido. É por isso que o modelo geral para a vida diária no século 21 é o vício. “Um” goza de drogas por si mesmo, e qualquer atividade pode se tornar uma droga: esporte, sexo, trabalho, smartphones, facebook, ….
Le Point: Entretanto, para sobreviver, a espécie humana precisa reproduzir!
Jacques Alain-Miller: Isto concerne à relação complementar entre o esperma e o óvulo. Não é o mesmo nível que o nível dos seres falantes. E os falantes estão claramente ganhado vantagem sobre a natureza. Hoje em dia, eles manipulam a reprodução através da ciência de acordo com seus desejos e suas fantasias. O discurso legal está seguindo esta tendência. Isto somente começou: nos últimos anos o primeiro genoma sintético foi criado. A natureza não vai durar muito mais! Daí a sensação largamente sentida de urgência ecológica.
Le Point: Deveríamos nos alegrar com o poder da ciência? Lacan disse que devemos temer os seus efeitos…
Jacques Alain-Miller: Nós nos alegramos dela e a tememos ao mesmo tempo. A ciência é uma forma de frenesi. Ela começou calmamente, sem estardalhaço, no século 17. Hoje em dia ela sacode toda a humanidade, que tinha comido da maça e está perdida. Suas agitações se tornam cada vez mais rápidas. E é impossível pará-la, uma vez que a supremacia do “Um” vem da própria linguagem. Lacan costumava equiparar esse frenesi com a pulsão de morte. Nenhuma nostalgia vai pará-la, nenhum comitê de ética. Nossas condições de vida passarão por tremendas transformações da alma, que a alma acha difícil manter. Baudelaire, no começo da Revolução Industrial, chorou pela Paris que estava sendo apagada por Haussmann. A mudança é certa. Para melhor ou pior? Isso depende. Isso explica o título de Lacan.
Le Point: Lacan previu o retorno do sagrado. Alguns parecem ter encontrado na religião um antídoto para o triunfo da ciência. E, no entanto, a ciência e Deus não são incompatíveis?
Jacques Alain-Miller: Pelo contrário, o retorno da religião é o contrapeso necessário para a situação. Veja: as velhas relações estão sendo arruinadas, todos enfrentam a solidão do “Um”, nós nos submetemos ao domínio cego e brutal das figuras, que se tornam cada vez mais sem sentido, e mesmo além do sentido. Quem nos livrará desse inferno? Não as terapias prometendo o “Um” que ele ou ela será curado da doença do Um em si mesmo, se este se convencer toda manhã que é o mestre de si mesmo e do universo. A cultura, o entretenimento? Sim, mas isso não é o suficiente. Volta-se então para a religião. Aí se encontra especialistas que sempre ofereceram uma vida significativa para a humanidade sofredora. E este significado traz um laço social, uma ligação, para os pobres “Uns” espalhados que nos tornamos.
Le Point: Um fortalecimento identitário pode ser visto em toda parte. E depois de 1968, Lacan profetizou a ascensão do racismo.
Jacques Alain-Miller: É o “Um”, o “Um”, eu lhe digo! O “Um” é também o culto da identidade de si a si, a dificuldade em suportar o Outro, alguém que não goza da mesma maneira que nós. Quando “todo mundo estava em sua própria casa”, não havia racismo, mas é claro tinha o racismo dos homens em relação às mulheres, cujo desejo não era o mesmo que o deles. Mas tivemos de ir e perturbar as pessoas que estavam vivendo a vida a sua maneira, e estamos experimentando uma reação. Nós movimentamos, misturamos, nos conectamos. Não há choque de civilizações, mas ao contrário uma extraordinário mistura de modos de vida, de jouissance e de crenças, que trabalham sobre as identidades e marcam-nas por dentro. Olhe para o assassino norueguês: ele é do tipo “Um só”; ele matou em nome de uma imaginária identidade Europeia; e ele matou seus companheiros, não muçulmanos. Tudo está aí. Esse evento contingente, trágico, e sem sentido é um espelho de nosso mundo.
Le Point: As pessoas falam do fim da autoridade nas escolas e até mesmo nas famílias para explicar a violência em nossa sociedade. O que Lacan poderia propor: um retorno ao “Nome-do-pai”?
Jacques Alain-Miller: Certamente não! A supremacia do Pai vestiu uma forma de gozo que está se desgastando. O pai do Nome-do-Pai está morrendo. Nós podemos ficar muito bem sem ele, de acordo com Lacan, enquanto continuamos a fazer uso dele. Em outras palavras, gritar não é mais algo bom. Os chefes que dizem as pessoas o que fazer estão acabados; é chegado o tempo do líder modesto, que fornece orientação. E no entanto seus adversários reprovam Obama por seu jesuitismo: liderando “por trás”, sem aparecer muito, puxando as cordas suavemente. Até mesmo Nicolas Sarkozy tentou sem sucesso fazê-lo. E onde Le Pen costumava rugir, sua filha ronrona.
Le Point: Nós temos a impressão de que as bolsas de valores enlouqueceram. A crise financeira é, em parte, conseqüência de uma falta de autoridade?
Jacques Alain-Miller: Nós não estamos mais no tempo do padrão-ouro. O dólar, a moeda de reserva, não é mais sólida do que o Nome-do-Pai. Há grande desordem entre os significantes! O signo monetário está em movimento, ele tem sua própria lógica que ninguém pode dominar, com os efeitos psíquicos que se seguiram: agitação, pânico, ansiedade. Este é um problema de escrita, uma vez que tudo é uma figura, mas acima de tudo de fala. Dado que nada mais está fixo, a intermediação de um negócio requer uma conversa permanente. Mas é muito difícil levar uma conversa até o final, devido ao elevado número de seres falantes envolvidos. A zona do euro compreende dezessete países. No congresso americano, cada representante é um pequeno rei, e as vozes são pescadas uma por uma. E recentemente nós temos os fundamentalistas monetários do Tea Party: eles querem ao menos um dólar economizado para cada dólar de débito. Estas são os loucos do “Um”! Resultado: o pior.
Le Point: Como Lacan pode nos ajudar a encontrar uma solução?
Jacques Alain-Miller: Lacan nos faz entender o seguinte: 1) o número de falsas partidas para uma solução sobe vertiginosamente com o aumento do número de agentes; 2) elas só podem terminar em uma modalidade temporária, a da precipitação. Portanto o número de tomadores de decisão deve ser drasticamente cortado.
Le Point: Que papel a psicanálise pode ter em tudo isso?
Jacques Alain-Miller: Para o “Um” perdido, é sempre a oportunidade inaudita de estabelecer uma relação o Outro na qual os mal-entendidos que você tem como você mesmo tem uma chance de desaparecer. Como os analistas, eles abundam, os pacientes, e cada um é mais individualista do que foi no passado. Como Lacan havia previsto, o analista é um “Um” que autoriza a si mesmo, através de sua análise, antes de ser reconhecido por um grupo, ou pelo Deus tudo poderoso, como um dos seus próprios.
Le Point: Em sua opinião, Lacan tinha uma bola de cristal?
Jacques Alain-Miller: Ele não era Nostradamus, mas é verdade que nosso presente pode ser decifrado em sua gramática, e nós podemos ver a careta do futuro que nos espera.