Slavoj Žižek: O espectro de Putogan

Por Slavoj Žižek, via Newstatesman, traduzido por José Mauro Garboza Junior*

Vladimir Putin da Rússia e Recep Tayyip Erdogan são agora oficialmente inimigos, mas não parece cada vez mais que eles representam as duas versões de um mesmo regime político?


A campanha turca oficial bem coordenada contra mim merece um breve comentário conclusivo. Alguns do lado turco distorceram o pedido de desculpas do New Statesman a respeito da referência a uma falsa entrevista em desculpas por (ou seja, a revogação de) todas as principais reivindicações do meu texto. No entanto, meu texto publicado no NS não foi “baseado” na falsa entrevista de Andalou, foi escrito e publicado em outro lugar (na Alemanha) antes, sem referência àquela falsa entrevista, e as afirmações contidas nele ecoam centenas de textos críticos sobre a política turca. Minha única “mentira” foi me referir a uma falsa entrevista disponível na web – um erro que pode acontecer a qualquer um nesses dias.

 Como um leitor comum dos meios de comunicação, eu, claro, não tenho conhecimento em primeira mão do que se passa no Oriente Médio; não tenho nenhum modo de investigar os detalhes sozinho. Mas posso fazer alguma coisa com os materiais públicos disponíveis para qualquer um. O que sei é que nenhuma ideologia eficaz simplesmente existe: uma ideologia nunca é uma simples ilusão ofuscando a realidade oculta da dominação e da exploração; a abominável realidade ofuscada e mistificada por uma ideologia tem que registrar, deixar vestígios no próprio texto ideológico explícito, sob o disfarce de suas inconsistências, lacunas, etc.

Os julgamentos Stalinistas foram, naturalmente, uma farsa impetuosa da justiça, ocultando brutalidades de tirar o fôlego, mas, para ver isso, não é necessário conhecer a realidade por trás deles – a imagem dos julgamentos, a monstruosidade das confissões públicas manipuladas, etc., deixou isso bem claro. De maneira homóloga, ninguém precisava conhecer os judeus verdadeiramente para supor que as acusações nazistas contra eles eram uma mentira – um olhar mais atento a essas acusações deixa claro que nós estamos lidando como fantasias paranoicas.

Isso, é claro, de maneira nenhuma implica que a divulgação e análise dos fatos não sejam importantes: alguém deveria trazer à luz todos os detalhes de sua  brutalidade atroz, da impiedosa exploração econômica, etc. Contudo, a fim de explicar como as pessoas frequentemente permanecem dentro de sua ideologia mesmo quando são forçadas a admitir fatos, deve-se suplementar a investigação e divulgação de fatos pela análise da ideologia, que não só torna as pessoas cegas para a totalidade do horror dos fatos, mas também permite que participem de atividades que geram esses fatos abomináveis enquanto mantêm a aparência de dignidade humana. A ideologia não reside em histórias inventadas (por aqueles no poder) para enganar os outros, ela reside em histórias inventadas por agentes sociais para enganar a si mesmos.

E a Turquia não é hoje um caso exemplar de tudo isso? É suficiente ler cuidadosamente as declarações públicas de Erdogan e seu governo, o furioso tom paranoico com que acusa oponentes de serem traidores nacionais, rebaixa a imagem de partidos políticos legítimos a terroristas, denuncia a oposição como um grande bloco kemalista-zionista laico, prende intelectuais que assinam uma petição pela paz, etc, para ver que alguma coisa está podre na terra da Turquia.

Então, para concluir, deixe-me comparar minha “mentira” (referindo-me à falsa reportagem na internet) a como o governo turco reagiu à alegação de Cumhuriyet de que as agências de inteligência turcas estavam contrabandeando armas para grupos islâmicos na Síria. Quando a minha “mentira” foi revelada, ela foi imediatamente consertada, ou seja, o trecho que se referia à falsa entrevista foi removido. Quando a mentira do governo turco (que negou fornecer armas aos islâmicos sírios) foi revelada por Cumhuriyet (que publicou as fotos e o vídeo do incidente na fronteira), todo o assunto foi declarado segredo de estado e jornalistas foram presos. Esse não é o mais claro contraste imaginável entre uma despretensiosa honestidade e uma mentira animalesca sustentada pela opressão do Estado?

Agora a Turquia vê Vladimir Putin como um inimigo, e eu não tenho simpatias por ele – sou muito crítico sobre a intervenção militar da Rússia na Síria. Contudo, o que não passa despercebido é a semelhança entre os dois inimigos oficiais, Putin e Erdogan, que cada vez mais representam as duas versões do mesmo regime político – aquele que, embora formalmente permanece democrático, de fato funciona a seu modo autoritário.

E se Putin e Erdogan são duas incorporações da mesma figura que podemos chamar de Putogan?

*Membro do  Círculo de Estudos da Idéia e da Ideologia – CEI.

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