Por Gabriel Landi Fazzio***
Não é de hoje que a palavra autocrítica está na moda. Mas autocríticas que não respondem praticamente aos dilemas de um partido, apenas escancaram sua crise. Não é o caso de calar as críticas, e sim de buscar as causas profundas da crise.
Uma autocrítica formal
Seria ótimo ver tantas autocríticas como as do início de 2016, se elas não parecessem tão superficiais e tão “coincidentemente” agendadas no início do ano eleitoral! Mal as pessoas acabaram de distribuir seus desejos de feliz ano novo e Patrus Ananias já respondia ao Globo, sobre uma possível derrota eleitoral do PT em 2016, que esta poderia vir a ser a ocasião para uma “autocrítica construtiva”! Afirmava que “o PT perdeu um bom momento de fazer um mea-culpa público e assumir o compromisso de não mais receber recursos de empresas [no V Congresso]”. No dia seguinte, Jacques Wagner replicava à Folha que o PT “errou ao não ter feito a reforma política no primeiro ano do governo Lula. E aí não mudou os métodos do exercício da política. […] ficou usando ferramentas que já eram usadas […] do financiamento privado e aí acabou reproduzindo metodologias”.
Como Rochinha notou, “a coisa mais fácil para os petistas ganharem destaque e prestígio nas páginas da velha mídia é justamente se utilizarem da exposição pública dos nossos problemas”. Mas, ainda que sua crítica seja pertinente, Rochinha conclui, sobre a questão dos recursos empresariais para campanhas, que “os erros cometidos pelo PT, na minha opinião, são de caráter exclusivamente individual ou de grupos, nunca do Partido como instituição”. É uma estranha conclusão para um artigo intitulado “O PT somos nós”! No fim, faz um balanço idêntico aos anteriores: “O erro político que nós estamos pagando hoje é o preço por não ter, durante os governos Lula e Dilma, organizado o Partido, a sociedade civil, com a participação de parlamentares, prefeitos e governadores petistas para discutir e aprovar uma reforma política e eleitoral ampla e exclusiva”. Lula toma um rumo parecido, ainda que remeta o problema não a elementos isolados, mas à crescente acomodação da militância às caras e bem-remuneradas estruturas de campanha.
Falando com franqueza, tomar essas declarações como grandes exemplos de autocrítica pode soar como desespero de quem quer muito encontrar um motivo para elogiar a postura pública dos dirigentes petistas. Ainda assim, os posicionamentos expressam com fidelidade a única autocrítica pública realmente existente no PT: a que se expressa na postura diante da prisão do senador Delcídio, ou nas mudanças estatutárias que punem os filiados que cometam “erros graves”. Chamar essas declarações de autocríticas talvez nem seja preciso: como um todo, o discurso parece muito mais ceder à crítica liberal à corrupção. Assume uma posição defensiva, sem precisamente avançar numa autocrítica séria – apenas rebate a crítica liberal numa versão mais tragável, assumindo uma parte e adequando a outra.
A mais nítida expressão disso pode ser resumida nos seguintes termos: o PT admite como um erro o uso de recursos empresariais em campanhas; reconhece que tais recursos comprometem politicamente, de diversos modos, quem os arrecada; assume que errou em fazê-lo… mas a “autocrítica” se interrompe aqui, e não aponta quais as consequências para o PT em adotar tais métodos; em outras palavras, o que se esperava em troca de tais “doações”, que relações foram estabelecidas, etc. Não: parece que alguns acreditam que basta afastar os quadros envolvidos em tais práticas para resolver todo o problema. Nesse caso, temos que dar razão a Patrus: há nessas declarações muitos mais de um envergonhado pedido de desculpas que uma autocrítica séria e que propõe retificações.
Ao longo dos últimos anos, cresce entre a militância petista a demanda por uma postura firme de autocrítica. Acerta quem aposta que, sem isso, o PT tem pouca ou nenhuma chance de solucionar os impasses que enfrenta. Essa demanda, muitas vezes, se apega principalmente à questão da “ética na política”, mas em algumas ocasiões os discursos remetem a problemas organizativos, como a “falta de formação”, a “falta de democracia” ou a “falta de trabalho de base”. Poucas vezes, entretanto, essas falas exploram a fundo a conexão entre tais problemas políticos “formais” e as questões de programa, estratégia e tática colocadas diante do PT.
Fica difícil negar razão ao senso comum, segundo o qual “é fácil pedir desculpas da boca pra fora”. Isso não significa que todo pedido de desculpas, por ser fácil, seja fingimento: mas sim que a prática é o critério da verdade, e que é muito comum que haja desconexão entre o discurso e a prática [1]. O mínimo que uma autocrítica consequente deveria buscar seria essa conexão, que talvez ajudasse a tirar do abstrato toda uma série de questões – inclusive a tão alardeada “necessidade de revisão programática”. De outro modo, a autocrítica formal repetida à exaustão apenas põe em destaque a existência de uma crise que se prolonga sem solução.
Talvez fosse o caso de se perguntar se sequer existe algum valor na própria autocrítica, ou se ela não é só “demagogia”, palavrório “pra ficar bem na foto”.
Autocrítica e Partido
Na concepção comunista, a autocrítica é um momento fundamental da construção partidária. A esse respeito, Rosa Luxemburgo expôs brilhantemente, em 1889:
“Sem dúvida, não existe outro partido para o qual a crítica livre e incansável de seus próprios defeitos seja, tanto quanto para a social-democracia [2], uma condição de existência. Como devemos progredir na medida da evolução social, a contínua modificação de nossos métodos de luta e, por conseguinte, a crítica incessante de nosso patrimônio teórico, representam as condições de nossa existência. Pertence, entretanto, à sua natureza, que a autocrítica em nosso partido não atinja seu objetivo de servir ao progresso, e só poderíamos nos felicitar muito se ela se move na direção de nossa luta… Qualquer crítica que contribua para tornar mais vigorosa e consciente nossa luta de classe para a realização de nosso objetivo final merece nosso agradecimento. Mas uma crítica procurando retroceder nosso movimento, fazê-lo abandonar a luta de classe e o objetivo final – uma tal crítica, longe de ser um fator de progresso, só seria um fermento de decomposição”.
Ou seja: para um partido que busca dirigir politicamente a luta da classe trabalhadora, a autocrítica é condição para que a construção partidária evolua acompanhando as contínuas modificações da luta de classes [3]. De modo mais enfático e prático, pode-se dizer que [4]:
“O dever dos comunistas reside em não esconder as debilidades de seu movimento, mas criticá-las abertamente para livrar-se delas o mais cedo possível e de maneira mais radical.”
Em alguns escritos de Lenin é possível ver de modo ainda mais nítido a relação orgânica entre a autocrítica e a construção partidária para os comunistas. Em determinado texto verifica-se esse exercício de autocrítica na prática: após falar sobre a necessidade de debater abertamente alguns erros táticos defendidos por frações do partido, Lenin afirma [5]:
“Mas há outros erros: os desvios de linha política do partido. Uma vez que estes desvios tiveram lugar e incorreu neles uma organização que atuava abertamente em nome de todo o partido, o partido estava obrigado a dizer com clareza e exatidão que tinha havido desvios. Na história dos partidos socialista da Europa ocidental têm existido em mais de um caso relações anormais entre as frações parlamentares e o partido; até agora, nos países latinos, estas relações são com frequência anormais, as frações parlamentares não estão suficientemente colocadas sob o controle do partido. Devemos colocar desde o primeiro momento de um modo diferente a tarefa de criar na Rússia um parlamentarismo social-democrata e empreender imediatamente um trabalho coordenado neste sentido, para que todo deputado social-democrata sinta realmente que tem por trás o partido, que o partido se inquieta por suas faltas e se preocupa por dirigi-lo pelo bom caminho; para que todo militante participe do trabalho geral do partido relacionado com o Parlamento, aprenda com a crítica marxista de cada uma das atitudes da fração, compreenda que seu dever é ajuda-la e se esforce por conseguir que a fração subordine sua atividade específica a todo o trabalho e propaganda e agitação do partido.”
Logo de início, Lenin passa a impressão de que não deve haver espaço para hesitações quando se trata da autocrítica pública. Mas o que significam tais hesitações e, antes ainda, como se produz a “falha” na linha política? No caso, Lenin as relaciona com o fato de os parlamentares não estarem suficientemente sob o controle do partido. Sem isso, nem os parlamentares sentem a pressão da inquietação do partido com seus desvios da linha política; nem a militância pode efetivamente participar do trabalho geral do partido no parlamento. Mas os efeitos de tal descolamento têm, para a militância, efeitos ainda mais danosos: além de estar evidentemente em posição de menos poder que qualquer parlamentar, o militante perde a oportunidade de se formar politicamente através da crítica de cada uma das falhas dos parlamentares. Na prática, quando o desvio de um parlamentar em relação à linha do partido não é exposto e criticado com nitidez, o partido permite que passe por aceitáveis, nos marcos da própria linha política, os erros cometidos por estes. Não seria diferente no caso de qualquer órgão ligado ao partido ou dirigente. Por exemplo: se o Lula dá entrevistas dizendo “sou liberal”, porque qualquer militante do PT não deveria erguer alto no partido e na sociedade a bandeira do liberalismo? O PT é, então, um partido de políticos liberais? Se Marinho se declara “contrário à ideologia de gênero”, como esperar que as massas captem com precisão a posição do PT quanto às questões de gênero e sexualidade? A autocrítica aberta e exata seria, então, condição para a própria participação e educação das massas na política partidária – e a garantia de que a linha política do partido seja respeitada por suas frações e bases. Mas no caso do PT, as direções centrais silenciam frente a declarações que afrontam a linha partidária – e apenas algumas frações do partido emitem notas críticas, estritamente por demanda de determinadas bases.
Não é por acaso que o debate da autocrítica surge ligado, de algum modo, com a questão do parlamentarismo – como logo veremos, o mesmo ocorre em Gramsci. Mas a ideia se aplica a qualquer “organização que atue abertamente em nome do partido”. É evidente que essa ideia de subordinação de todas as frações ao partido é bastante oposta à prática do PT – especialmente no que diz respeito à relação entre o partido e as frações eleitas. Talvez aí começasse uma autocrítica organizativa honesta: menos exaltação cega da “democracia de tendências”, uma vez que essa forma organizativa absolutamente democrática do partido não combate efetivamente a tão falada burocratização. O poder das frações parlamentares e governamentais sobre o partido é imensamente maior que o controle da direção do partido sobre seus próprios organismos internos, que dirá então sobre a fração parlamentar e governamental! Nesse aparente parlamentarismo das tendências, na verdade o centralismo não vem precisamente das instâncias centrais do partido (ou melhor, as instâncias centrais se transferem para fora do partido) e, na verdade, a militância e o partido são dirigidos muitas vezes a reboque do governo ou da bancada, sem que efetivamente o processo democrático partidário exerça algo mais que uma leve pressão sobre a política geral do partido e sua execução. A afirmação presunçosa (e igualmente preguiçosa) de que “não há centralismo no PT” só pode ter nexo na cabeça de quem há muito tempo já se resignou com a ideia de que “sempre haverá” dirigentes e dirigidos e, portanto, toma qualquer formalidade, qualquer simbolismo, por uma democracia muitíssimo participativa. É nesse sentido que os camaradas que falam em um “PT para tempos de guerra” deveriam debater francamente a viabilidade de transformar o PT em tal partido – e dizer, sem meias palavras, o que significa essa formulação senão centralismo democrático! [6]
Antes de partir para a crítica das “autocríticas” mais recorrentes, valeria lembrar a opinião de Gramsci sobre o tema [7]. Crítico implacável da democracia burguesa, o comunista italiano escreveu alguns parágrafos bastante confusos sobre o parlamentarismo, palavra que utiliza com tom depreciativo. Afirma que mesmo o próprio fascismo não pode deixar de conter traços de parlamentarismo. Esses traços não se ligam simplesmente ao que há de evidente na forma política, mas à própria dinâmica que expressa um conteúdo de classe burguês. A autocrítica surge, cuidadosamente, em oposição a essa concepção do parlamentarismo:
“É certo que a autocrítica se tornou uma palavra da moda. […] Mas aí está tudo: que o sucedâneo seja aplicado a sério, que a autocrítica seja ativa e “impiedosa”, porque nisto está sua eficácia maior: que deve ser impiedosa. Viu-se, no entanto, que a autocrítica pode dar origem a belíssimos discursos, a declamações sem fim e nada mais: a autocrítica foi “parlamentarizada”. Porque até agora não se observou que destruir o parlamentarismo não é tão fácil como parece. O parlamentarismo “implícito” e “tácito” é muito mais perigoso do que o explícito, porque tem todas suas deficiências sem ter seus valores positivos. Existe muitas vezes um regime de partido “tácito”, isto é, um parlamentarismo “tácito” e “implícito” onde menos se acreditaria. É evidente que não se pode abolir uma “pura” forma, como é o parlamentarismo, sem abolir radicalmente seu conteúdo, o individualismo, e isto em seu preciso significado de “apropriação individual” do lucro e da inciativa econômica tendo em vista o lucro capitalista individual. A autocrítica hipócrita é justamente uma destas situações”.
O apoio empresarial
Na opinião de Patrus, o PT perdeu, em seu V Congresso, “um bom momento de fazer um mea-culpa público e assumir o compromisso de não mais receber recursos de empresas”. Agora, com a votação da lei que efetivamente proíbe tais recursos, esse momento passou. Não haveria nenhuma outra autocrítica a fazer em cima disso, ainda a tempo?
Uma crítica com tantas limitações poderia muito bem vir de um liberal consequente. O que essa autocrítica liberal e reformista calaria, então, é que a questão do apoio empresarial não se limita ao apoio financeiro – focar a questão apenas na transação bancária, e não na transigência com os banqueiros, é só repetir o mantra neoliberal de que não existe almoço grátis. Concordamos que aceitar dinheiro dos empresários compromete a política do partido, e condenamos isso. Mas, uma vez proibido esse tipo de compromisso com os empresários, outros tipos são aceitáveis? Qual é, precisamente, a política do PT para com as frações internacionais e nacionais da burguesia que lutam para reproduzir suas condições de existência no Brasil? Como ela se justifica? A troca de declarações simpáticas entre dirigentes do partido e empresários deveria ser vista como cordialidade inofensiva? Mesmo os defensores mais otimistas da tal “coalizão produtivista” (entre o sindicalismo e os industriais) e aqueles que requentam a tese do etapismo não sabem mais a quem apelar: com o avançar da crise brasileira nos últimos anos, aumenta a percepção de que mesmo as frações mais “esclarecidas” da burguesia gradativamente retiram seu apoio à aventura do bem-estar social brasileiro. De fato, é difícil sustentar (na atual conjuntura ainda mais do que em momentos anteriores) a “necessidade de aliança com setores progressistas das elites”, ou coisa que o valha. É mais simples ignorar a real questão por trás do “apoio econômico” – a própria tragédia de um partido da classe trabalhadora buscar apoio de qualquer tipo no poder econômico burguês e nem sequer ter argumentos com os quais possa sustentar isso às claras!
Um exemplo recente é toda a euforia em torno do afastamento de Joaquim Levy. Mas afinal, que política o se pretendia seguir ao nomeá-lo (e o que isso tem a ver com a nítida preferência, entre os bancos, do Bradesco pelo PT)? O que mudou agora, que justifique sua queda? Se o governo é incapaz de se expor em autocrítica, ao menos o partido deveria ter a coerência de criticar impiedosamente a opção política anterior, escancará-la. Apenas isso, e não o mero curriculum de Nelson Barbosa, poderia garantir que houve efetivamente uma mudança na política. Nada a espantar, então, quando o Barbosa do qual tanto se esperava anuncia gigantescas privatizações!
Sem debater as alianças de classes do partido, é um despropósito esperar que uma reforma eleitoral qualquer possa magicamente permitir uma política mais à esquerda. Para viabilizar tal “atualização programática”, primeiro seria preciso reconhecer o que impõe tal necessidade: o fato de o programa de conciliação de classes que o PT representou, ainda que pudesse ter algum respaldo nas correlações de classes de um dado momento, está agora se esgotando aceleradamente. E precisamente quando chegou aquele momento em que (se fossemos levar a sério a tal estratégia de conciliação) seria preciso mobilizar as forças acumuladas durante a trégua… as condições para isso parecem não terem se produzido, ou porque as forças se desmobilizam, ou porque não se sabe precisamente o que ser quer – e as duas coisas evidentemente guardam grande relação.
A burocratização
Talvez pela própria tradição das oposições de esquerda que remonta Trotsky (ou por puro weberianismo!), a autocrítica petista à burocratização do partido é a mais corrente entre a militância de base e no discurso do presidente do partido, Rui Falcão. Não é raro, no entanto, que essa autocrítica seja profundamente paralisante: a burocratização parece ser alguma maldição histórica na relação da esquerda com o poder, talvez inevitável. Só poderíamos exorcizar esse fantasma identificando o preciso momento em que se processou a burocratização.
Uma compreensão materialista não poderia deixar de perceber um processo mais complexo: a burocratização de um partido operário de massas não ocorre apenas por causas internas, e costuma ter uma ligação profunda com o próprio refluxo do movimento de massas que originou tal partido. É nesse contextoque o PT tomou determinadas opções políticas, que poderiam acentuar ou, talvez, evitar a sua burocratização.
Levar a crítica nessa busca pela opção definitiva que teria levado à burocratização é pouco proveitoso. Ainda menos proveitoso, com certeza, é (como a fala de Lula sobre a “acomodação da militância” parece tentar) culpar a militância pelo refluxo do movimento de massas que originou o PT e, de quebra, transferir para as bases a responsabilidade dos dirigentes pela opção principal pela via eleitoral-estatal – opção está que seria impossível, no contexto de refluxo do movimento de massas, sem uma série de profundas modificações na organização partidária, desde a necessidade dos recursos empresariais até a linha política e de alianças.
Diga-se de passagem, essa é mais uma relação pouco estabelecida nas autocríticas parlamentares: a que existe entre o financiamento privado e a perda do poder da militância sobre o partido, e do conjunto do partido sobre os quadros parlamentares e arrecadadores de recursos, do qual o partido passa a depender enormemente. Do mesmo modo, é preciso compreender que uma forma organizativa que promova a ampla participação e poder das bases não é, definitivamente, a melhor forma para obter e gerir esse tipo de recurso… Só nesses termos poderia ter algum sentido concreto a fala de Jacques Wagner sobre usar “ferramentas que já eram usadas […] do financiamento privado e aí acabou reproduzindo metodologias”.
O momento para a autocrítica pública
A miséria da autocrítica, ou mesmo o temor mesquinho a ela, é um sintoma bastante grave da incapacidade de um partido de se adaptar às diferentes fases que atravessa a luta de classes – e, de tal modo, sua incapacidade crescente em apontar novos rumos à luta.
Aqueles que ainda acreditam poder corrigir toda a situação com meras palavras de autocrítica são obrigados a apelar a forças catastróficas, frente à aridez do partido às críticas. Patrus não é o primeiro nem será o último a esperar que uma derrota eleitoral possa, de uma hora para a outra, forçar o partido a se reorientar construtivamente. Mas esse prognóstico não subsiste à mínima análise histórica: já aconteceu assim alguma vez antes? Com qualquer partido de esquerda que alçou e perdeu o governo antes? Por acaso foi isso que ocorreu nas cidades, como Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, onde desastrosas políticas de conciliação causaram imensas perdas eleitorais e de laços com a massa ao PT? Por que agora seria diferente? Por acaso deveríamos crer que, no caso de uma derrota nas eleições presidenciais, haveria qualquer guinada à esquerda, em meio à corrida de todos os oportunistas que perderiam seus cargos e no preciso momento em que os mais criticáveis dirigentes petistas no governo federal e no parlamento precisam recorrer aos cargos partidários para manter seu poder político?
Assim, a proposta prática parece ser que a militância espere a tragédia anunciada, e apenas depois emita seu juízo crítico, a título de balanço, sobre as questões mais profundas. No ritmo da política eleitoral, a autocrítica sempre é deixada para depois da próxima votação – e os receios eleitorais conservadores de cada dirigente deixam pouco espaço para uma autocrítica consequente e radical. Para os comunistas, a autocrítica corretamente posta não pode ser senão umpasso à frente – para as estreitas preocupações eleitorais, no entanto, não pode ser senão como um ônus! Sobra espaço apenas para uma mea culpa, que vai até o fim sem apontar responsáveis por falhas e deficiências mais gerais e cotidianas (“há dirigentes e dirigidos, mas somos todos igualmente responsáveis”!), e apenas nos casos extremos as admite, responsabilizando individualmente os agentes. Seria cômico se não fosse trágico: as opções políticas da disputa eleitoral a qualquer custo são da direção coletiva, mas a responsabilidade pelos desastres de sua execução é individual! Não surpreende que a direção partidária apenas cruze o braço e assista queimar na fogueira um após o outro – Delúbio, Dirceu, Genoino, Vaccari, etc. Para fazer mais do que isso, precisaria antes assumir a responsabilidade coletiva do partido em cada um desses casos!
Quem ouve tanto falar sobre como é condenável expor o partido publicamente, falando de seus erros, poderia ser levado a acreditar que existe, no interior do partido, outra autocrítica, mais profunda e completa, que apenas não é feita publicamente porque seria mal-entendida. Mas isso é, antes de mais nada, uma falácia: os discursos autocríticos internos e públicos geralmente guardam poucas distinções. E, não bastasse isso, a própria concepção de fundo, entre coisas que se pode confessar internamente, mas não publicamente, revela uma concepção pouco dialética (e bastante elitista, no sentido de que existiria um discurso partidário refinado para os quadros, e outro vulgar para as massas) do processo de crítica política na construção partidária! Um verdadeiro partido de massas, que não seja mero aparato eleitoral massivo, não pode estabelecer uma distinção tão estreita entre a autocrítica pública e a interna, sob a pena de aumentar a distância entre a organização e as massas que se pretende organizar progressivamente. Mas, novamente, nada de novo à vista: não é esse mesmo o teor do “socialismo” petista? “Somos socialistas, mas não podemos dizer isso abertamente, ou então assustaremos as massas!”.
A militância que há anos demandava do PT uma autocrítica deve debater as que são cotidianamente oferecidas pelos dirigentes – e talvez se preparar para fazer sua própria autocrítica! “Só as pessoas de visão acanhada ou temerosas de que as amplas massas participem da política, consideram improcedentes ou supérfluos os debates públicos e apaixonados sobre tática que se verificam constantemente.” [8]
[1] “E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.” “Contribuição à Crítica da Economia Política”, Marx.
[2] Ainda que os marxistas, desde o Manifesto, se tratassem por “comunistas”, o termo apenas se tornou majoritário entre a denominação dos partidos marxistas após a Revolução Russa. “Social-democratas” era o nome pelo qual se chamavam os seguidores de Lassalle, dirigente duramente criticado por Marx no curso da construção do primeiro partido operário alemão. A influência de tal partido na II Internacional levou a maior parte dos partidos marxistas do período a se denominarem como tal. Sobre isso, Engels afirmava, em 1894, que “para Marx como para mim havia, portanto, absoluta impossibilidade de empregar, para exprimir o nosso ponto de vista próprio, uma expressão tão elástica. Atualmente, o caso é outro, e essa designação de “social-democrata” poderia, em rigor, passar, se bem que continue imprópria para um partido cujo programa econômico não é apenas socialista, mas comunista, para um partido cuja finalidade política é a supressão de toda espécie de Estado, e, por conseguinte, de toda democracia. Os partidos políticos verdadeiros nunca têm uma denominação que lhes convenha completamente; o partido se desenvolve e a denominação fica”.
[3] Já Marx notava, n’”O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, que “As revoluções proletárias […] se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços”.
[4] “Teses sobre as tarefas fundamentais do II Congresso da Internacional Comunista”, 4 de junho de 1920. Também se recomenda “que na imprensa e nas assembleias do partido se analisem com a maior atenção os discursos dos parlamentares do ponto de vista de sua firmeza comunista”.
[5] “A caminho”, 28 de janeiro de 1909.
[6] Sobre o tema, que mereceria muito mais detalhamento, é possível conferir uma série de publicações recentes no blog Convergência, ligado ao PSTU, que debate constantemente significado do centralismo democrático. A iniciativa não pode deixar de ser bem-vinda. Igualmente bem-vinda seria a iniciativa dos camaradas do chamado campo democrático e popular que advogam as virtudes do “partido de tendências” em conexão com a experiência da Unidad Popular. No entanto, tais argumentos parecem poucas vezes ser articulados construtivamente, à luz mesmo da dura derrota da experiência chilena. Se, por um lado, concepções mecânicas do centralismo democrático já mostraram todo o seu potencial trágico, o mesmo é verdade para as concepções críticas do centralismo democrático, que jamais lograram lançar mais luz sobre a questão da organização, apenas emergir em polêmicas sem fim e permitir amplo espaço para as concepções organizativas mais oportunistas.
[7] “Cadernos do Cárcere – Volume 3”, páginas 319 e 320.
[8] “A unidade dos operários e as ‘tendências’ dos intelectuais”, 13 de maio de 1914.
*Escritos de Lenin reunidos em “O trabalho do partido entre as massas”, publicado em 1979 pela Livraria Editora Ciências Humanas.
**Na imagem Cartaz do PT do Pará, 1980. Faz parte da exposição PT 30 ANOS realizada pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda em 2010.
*** Em 1/03/16 comuniquei publicamente meu desligado do Partido dos Trabalhadores, apresentando a autocrítica pública que segue:
“Às e aos camaradas que se batem contra o curso dos eventos e ainda veem no PT um sentido estratégico;
Comunico minha recente desfiliação do Partido dos Trabalhadores, após meses de desorientação (que parece ser o que o PT mais te a oferecer à militância). Muitos são os motivos para essa decisão, e tenho toda a disposição para debater fraternamente cada ponto. Aqui, no entanto, vejo espaço para apenas algumas colocações pontuais. Oportunidades para a crítica não parece que faltarão. Tento aqui, então, esboçar pontos em contato com uma autocrítica:
Como diversos militantes de esquerda, vi no PT, por muito tempo, a força política que fazia avançar as contradições progressivamente, em favor da classe trabalhadora. Não são poucos os militantes bem intencionados no interior do partido. Mas o caminho para a tragédia é ladrilhado de boas intenções, sempre que as intenções estão em contradição com a consequência prática.
Vejo na minha relutância em reconhecer a falência do PT enquanto alternativa para uma ruptura histórica uma boa dose de pragmatismo e oportunismo – primeiro, no sentido mais literal e menos moral do termo, o do senso limitado de oportunidade histórica, aquele que lamenta os limites da correlação de forças sem se mover para transformá-la; mas também no sentido de toda a aparente influência, capilaridade e poder que os espaços do partido e sua posições institucionais proporcionam a quem se dispõe ao deslumbre.
Em que momento o PT perdeu o potencial para apontar os caminhos para um futuro radicalmente diferente? Ou, o quão atrasado estou em me dar conta disso? Essa pergunta me parece secundária, frente ao acelerado escancarar do fato. Hoje, é preciso reconhecer, caso sejamos sinceros, que o PT menos atrai e mais sequestra a militância: menos inspira, e mais arrasta a reboque, por medo do pior, amplas camadas da militância popular. Que as pessoas se sintam forçadas pela conjuntura a apoiar o PT é uma coisa; outra é, para quem acredita na necessidade da organização política para transformar radicalmente a realidade, que se veja no PT essa organização. De resto, resta o malabarismo teórico daqueles que afirmam em alto e bom som os limites do PT, e esperam nele enquanto esses limites não cheguem, como que por mágica e por si próprios.
Disputar o PT: essa ideia, que por muito tempo me pareceu profundamente justificada, hoje me parece apenas trágica. Para além da prática sofrível de quem tenta sem sucesso essa disputa, a própria concepção me parece hoje limitada: do mesmo modo que o PT acha que pode mudar a sociedade disputando espaços no Estado, a militância se ilude de que poderia mudar o Partido simplesmente ocupando espaços na direção – ainda que para isso realize toda a sorte de acordo! Ou apenas, caso recuse tais acordos, se move com estreitos sucessos. Por trás da formal democracia de tendências, prevalece crescentemente a autoridade do governo.
Se um dia a história demonstrar meu erro, e o PT se transformar profundamente em um partido estratégico para a luta da classe trabalhadora, engulo minha língua, e respiro aliviado pela tragédia evitada – a do fracasso histórico de um partido forjado na luta de massas, e a de contrarrevolução galopante. Caso contrário, espero que mais companheiros e companheiras desistam de usar um tanque de guerra para semear a terra de um mundo novo (ou seria usar um arado para travar uma guerra?), e se somem aos esforços de construção de uma alternativa revolucionária. A classe trabalhadora brasileira, por duas vezes em um mesmo século, realizou a vultosa obra histórica de construir um partido seu, que respondesse às tarefas do momento. É preciso aprender tal lição de consciência, organização e necessidade histórica, em busca do novo.
Sem sectarismo, parto consciente da convicção revolucionária de certas pessoas do PT, convicção essa que, creio, permitirá que cumpram em tempo um papel mais digno do que o de exaltar como avançado o que é, no máximo, defensivo (e, cada dia mais, nem isso).”
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