Por Clarisse Gurgel
“traidores da Pátria! Até onde chegará a vossa perversidade?”
Qorpo-Santo, Certa Entidade em Busca de Outra
Combino com o leitor deste texto que irei, em minha análise, dos sarrafos que sustentam o tablado do Teatro para os personagens da fábula montada. Buscarei entender em que medida este movimento, da base do cenário para a superestrutura de seus atores e objetos de cena, é o que garante a sobrevivência da própria base. Para isto, o papel da representação precisa estar presente com maior ênfase, mas de um modo que, talvez, como armadilha, possa dar a entender que caminhamos para sua perda de eficácia.
Eis o palco: Marx apontou para uma dinâmica na produção social capitalista caracterizada como uma tendência, categoria esta relevante e constante para nós, quando levamos em conta o fator indeterminado da história. A tal dinâmica era a Tendência Decrescente das Taxas de Lucro – TDTL. Em termos mais simples, trataria-se dos efeitos do incremento tecnológico na produção e a impossibilidade de redução radical de salários, em face da necessidade de consumo. Disto, aliás, corresponde o impasse próprio do capital: ele precisa ser consumido para se realizar. Nestes termos, ele precisa se esgotar para se impor.
Desta relação entre o capital e sua realização, há um espaço a ser preenchido como solução para a tendência dos empresários perderem taxas de lucro. A demanda sustentada, em especial, pelo crédito parece nomear aquele lugar em que se-faz-crer para se realizar: entre o “não é isso”, de um pedido permanente, e o “É isso e ponto!”, de um significante sem remissão. Neste sentido é que o capitalismo é um sistema cuja harmonia se mantém pela concordância de princípios opostos: ordem e crise. Algo que nos convida a viver em um permanente estado de ameaça de dissolução de nossas formas de unidade, que são artifícios para estabilizar o que não se estabiliza, em um real que nada mais é do que nossa forma de representar. Esta é a razão pela qual o capital requer capitalismo, sua dimensão simbólica e imaginária.
A tendência observada por Marx se expressa de diferentes formas, em diferentes países. Vai se manifestar de acordo com as condições que o capital encontrará de instalar alta tecnologia em alguns lugares, em expressão radical da mais-valia relativa, desde que mantendo outros lugares em alto grau de precariedade laboral, em mais-valia absoluta. O Estado cumpre o papel de normativizar as crises cíclicas derivadas de tal tendência, de subconsumo ou, em termos mais diretos, de pobreza. Para tal, articula realização de obras, liberação de exploração de elementos da natureza, retirada dos direitos trabalhistas e destinação do dinheiro para crédito ao consumo.
No Brasil, a última crise de circulação do capital iniciada em 2008 contou com a disposição do Estado em atuar, mais uma vez, como seu administrador, tendo o BNDES, principalmente, como fonte pública de complementação de expectativas de lucros. O empresariado se impôs em sua necessidade imperiosa de reduzir ao máximo os ganhos dos trabalhadores, indo até onde pôde ir no projeto de conversão do trabalho, de capital variável para capital circulante: os próprios trabalhadores encarnando em seu extremo a condição de mercadoria que realiza a mercadoria. Por sua vez, o desemprego e a precarização das relações de produção social foram agravados por meio de arranjos administrativos como Parcerias Público Privadas e Organizações Sociais: figuras sui generis, sem natureza jurídica clara, que cumprem papel de inscrever de vez a torção entre o público e o privado.
O desemprego crescia, os preços subiam, a vida ia ficando mais cara. Apenas em um terreno, setores mais progressistas pareciam avançar: na luta e na conquista de direitos identitários. Assim, na mesma onda de crise econômica, imprimia-se eficácia à Lei Maria da Penha e ao direito às cotas raciais, conquistava-se o direito à união homoafetiva, retomava-se o debate sobre o aborto. Até que a discrepância entre os gastos com mega-eventos e o investimento na vida social legitimou irrupções de revoltas e manifestações relativamente organizadas, tendo como estopim um aumento de passagem rodoviário. O aumento era como a gota d`água e parecia inaugurar um tempo que chamaríamos hoje, retroativamente, de “capitalismo do absurdo”.
Da fagulha denominada Jornadas de Junho, em 2013, desdobrou-se, em uma estrutura tragicômica, o que poderia ser sintetizado por um tempo histórico clichê, em que um nonsense é a forma mais radical do sentido do real. O espaço público foi sendo ocupado por setores antes reclusos em espaços privados ou em lugares restritos à participação. Dos R$0,20 centavos como faísca oriunda de “fóruns de movimento”, a ocupação da rua foi, em um crescente, hegemonizada por setores conservadores apavorados com o casamento gay e a ditadura comunista de Dilma.
Hoje, a melhor defesa de Dilma é dizer que fez o mesmo que FHC. Situação que torna difícil explicar que o que é igual precisa ser substituído e que nos expõe como figurantes em uma tragicomédia em que nos “sentimos representados” por quadros retrógrados como Silvio Costa, do PTdoB. Uma aberração em face de outras aberrações como Eduardo Cunha e Michel Temer. Todos como personagens que encarnam, de algum modo, uma papel heroico de ir até as últimas consequências sem perder o trânsito interno. Não sem razão, a sensação de que tudo o que assistimos é absurdo, uma surdez em face de algo desarmônico, produz um silêncio constrangedor de um futuro que já ocorreu: o impeachment já se deu porque ele vai se dando. Assim, a estridente desarmonia do capital é sua surda harmonia.
Nesta espécie de pornografia das instituições, os diagnósticos que remontam as Jornadas de 2013 apontam para novos prognósticos. Afinal, o que assistimos hoje é mesmo o agravamento da crise da democracia representativa, que tomou corpo no combate à corrupção e aos partidos?
Acerca da corrupção, há, de ante-mão, um mal-estar: a existência de um correlato, daquela mancha especular semelhante a ti do espelho, que faz de Lula, Dirceu, Dilma, Renan, Temer e Cunha partes de uma série de semelhantes que se negam, em termos de identificação, transitando entre o papel de acusado e de acusador. Afinal, como explicar que a solução para uma Dilma corrupta é Eduardo Cunha e como conceber que Picciani seja, em algum momento, o guerreiro da esquerda? O caminho para solucionar esta espécie de “lotação do lugar”, em que todos se correlacionam, mas alguns têm que sair, é forjar representações para que territórios sejam melhor expropriados. Em outros termos, a solução está em iludir-se de sua própria ilusão, em uma esquize narcísica, tal como sugere o professor e psicanalista Christian Dunker, em referência aos condomínios. Mas, de tal maneira, que poderíamos falar da produção de um espaço apartado do espaço público, porém no e do público, regido, portanto, por leis de exceção, por atos arbitrários fundamentados em leis, que se tornam regras pelo aspecto inerentemente político do direito processual e do direito administrativo. O que estaríamos vivendo seria, pois, a excepcionalidade das leis da regra servirem de texto, pretexto e contexto para um crescente hibridismo entre público e privado, em que a própria noção de corrupção no setor público se torna um vulgar. Os dois termos -Estado e corrupção – beiram, juntos, a um oximoro. O voto, em plenário, em nome dos filhos e das esposas, é uma mostra escatológica disto: da assunção da ação de representantes privados no e do espaço público.
Acerca dos partidos e da democracia representativa, torna-se difícil articular duas teses que caminharam juntas até agora: 1. do desgaste da representação política e; 2. do avanço do PT convertido em Aparelho Estatal. Como espécie de solução de fantasia, a unidade imaginária da “ditadura do PT” serve de justificativa para uma demanda de setores mais conservadores por simples alternância de poder e aceleração das medidas que aplaquem a crise. A imagem da ditadura do PT parece ser sintoma, ou seja, a estrutura estável que resolve a montagem fantasiosa do PSDB e aliados, em que a função de ideal é preenchida pela função de um objeto determinado: a nação, o cidadão do bem, contra a ditadura comunista dos petralhas. Portanto, todos menos o outro sabem que o pedido de impeachment não tem fundamento algum e que o PT, cada vez mais, desaparece de cena, com seus quadros destruídos e um base dispersa, desorganizada e sem recurso. Ninguém questiona onde estaria todo o dinheiro desviado para este partido? Onde estaria este PT onipotente, fantasmagórico?
A resposta à possibilidade de tamanhos contra-sensos pode estar naquele que, hoje, encarna sua maior vítima: Luis Inácio Lula da Silva. Este personagem talvez tenha sido aquele que melhor encenou uma unidade impossível especial, aquela entre trabalho e capital. E foi o voto o que lhe colocou em um lugar em que já se via Temer. Portanto, um lugar em que certas coisas já não se encaixavam, mas que se solucionavam no protagonismo de uma operário presidente. Desde lá, todos já sabiam. E, do espetáculo de absurdos que assistimos hoje, Lula foi a revitalização estética da representação política. Sem dúvida, isto que, até o momento, estamos chamando de absurdo traz em si a tônica do cinismo. Mas cinismo este somente possível porque sua ausência de fundamento conta com sua fundação: funda-se a partir da dinâmica histórica e em ofensiva da democracia liberal, da soma de votos, da solução de filtro a partir do instituto da representação que remonta a união dos Estados Unidos da América. Basta lermos os federalistas. Assim, aquilo que foge do tom, o desarmônico parece só possível de se sustentar graças a instituições que parecem ter se fortalecido no Brasil, ao contrário do que até há pouco supúnhamos. O Estado e a máquina administrativa, com seus três poderes, consolidam-se cada vez mais, em especial a partir da hegemonia dos partidos de quadros, dentre eles o antigo partido de frente: o PT. Servem, pois, de alicerces para uma realidade inerentemente instável e contraditória, de fundação para o sem fundamento, a democracia representativa que, à medida em que se fortalece, não comporta o fortalecimento, ao mesmo tempo, de partidos forjados na luta.
Neste sentido, falar em “capitalismo do absurdo” não significa sugerir, como um outro estilo, um capitalismo da harmonia. O capitalismo do absurdo nada mais seria do que seu suprassumo, sua versão de fratura exposta, em que se torna concebível a defesa da ditadura militar e de torturadores, em plenário nacional. Afinal, o que era aquele período se não a face mais violenta regulamentada de uma democracia liberal? Nem mesmo se questiona por que uma presidenta, que já se desmancha no ar, é chamada a ser impedida por crime de responsabilidade fiscal e um governador que não paga seus servidores, como o moribundo Pezão, no Rio de Janeiro, não sofre nenhum processo de impeachment? Razão pela qual acreditamos estarmos diante da revitalização da democracia representativa em seu ápice com seus absurdos inerentes.
Mas se nossa leitura faz algum sentido, é possível que a dimensão cínica da crença capitalista não corresponda, precisamente, a uma perda de eficácia da ideologia como fator ainda fortemente apoiado na representação. Ao contrário, a falha na simbolização propiciaria aparições espectrais que reforçariam seu registro no imaginário. Como se o lema não fosse apenas um “eu sei, mas mesmo assim”, conforme a estrutura da perversão, mas também um: “eu sei, mas mesmo assim não sei”, preservando uma dimensão de transitivismo, uma relação com os outros, em que a responsabilidade é transferida para um outro que me é alheio, mas cujo sofrimento é sentido intensamente no meu próprio corpo. Seria, pois, algo apoiado na estrutura da perversão, mas que preserva uma representação da relação imaginária do indivíduo com a sua realidade concreta. Os gritos coléricos dos conservadores demonstravam isto que poderíamos chamar de memória afetiva dos deputados, um fenômeno curioso de cinismo na carne. Algo que talvez responda a pergunta de Brás a Satanás, na peça Certa Entidade em Busca de Outra, de Qorpo Santo. Até onde vai a perversidade? Até o encontro de seu correlato, da entidade com a outra, recusada graças ao conhecimento profundo da lei: retiro Dilma, que fez o que faço, que faz o que fazem mais 16 governadores, por meio das regras que nos permitem obedecer e desobedecer.
Seja em termos de encenação, seja em termos de “cadeia de substituição”, como Marx denominou a subordinação da sociedade a si mesma, a representação tem como base a função de identidade, de produtora de formas de unidades que procuram velar as contradições. Talvez não seja mera coincidência que a fantasia da contra-ofensiva da extrema-direita em face de uma suposta ofensiva da esquerda tenha contado com uma justificativa expiatória: o avanço de pautas identitárias, da união homoafetiva, do casamento gay, do direito ao aborto. Sem dúvida, um fator que facilitou que a própria polarização de classe fosse velada sob uma gramática também identitária: o brasileiro e o traidor brasileiro.
O aprendizado a se extrair disso tudo passa, dentre outras coisas, pela atenção a ser dada ao papel da denúncia e da crítica. A agitação de Junho de 2013, sem dúvida, oferecia um vazio alternativo às ficções da democracia representativa burguesa. Porém, tal vazio parece ter servido de reciclagem para as instituições liberais. Da denúncia à farsa eleitoral, assistimos a eleição da farsa.
O término de um grande espetáculo quem anuncia são seus atores. Isto passa pela esquerda, verdadeiramente comprometida com os interesses dos trabalhadores, encarar o mal-estar de estar mal posicionado no palco. Legislativo, Judiciário e Executivo foram entregues ao capital e a esquerda, com sua doença infantil, ainda precisa encarar de frente a inquietação espiritual de estar mal posicionada em seu mal-estar inevitável.
2 comentários em “O suprassumo do absurdo”
afiado como uma navalha, o texto demonstra o non-sense que vivemos e, talvez nem o autor saiba imaginar uma saída……
Muito bom! Hoje, em 2020, com a pandemia, vemos o quão o texto prenunciava a disseminação do ‘kakon’ generalizado, imposto ao liberalismo, sempre obsceno, ao povo.