Uma tática sem estratégia, ou, a miséria da “defesa da democracia”

Por Gabriel Landi Fazzio

Entre dar aulas de constitucionalismo, para ver se então o proletariado passa a se indignar mais com as manobras da direita, ou realizar a propaganda da teoria revolucionária do proletariado; alguém que se autodeclara comunista não deveria ter qualquer sombra de dúvida de qual é a sua tática.


No último domingo, a tendência petista Articulação de Esquerda (AE) publicou em seu portal um simplista e falacioso texto do “comunista” Antonio Augusto, intitulado “O PCB e o problema da tática”. Ainda que a AE frise o quanto o artigo “não representa necessariamente a posição da tendência”, restaria a pergunta do quanto a publicação busca apenas “estimular o debate na esquerda”. Se fosse esse o caso, era de se esperar uma maior honestidade e profundidade na discussão. Não sendo, apenas há de se questionar da onde viria a necessidade de rebater a posição de um partido de “diminuta influência”, como diz o autor do texto, senão pelo seu crescimento a olhos vistos e pelo impacto das posições acertadas da Comissão Política Nacional (CPN) do PCB sobre a base militante “democrática e popular”, no contexto da crescente crise e desorientação do PT.

Segundo o “comunista” Antonio Augusto, “o problema da atual política do PCB é centralmente a dificuldade de ter uma tática”. Mas, logo adiante, o próprio autor expõe a tática do PCB, que considera “sumamente errônea”. Ou seja: seu problema não é com a falta de tática, mas com a tática em si. Qual é essa tática e qual o problema do “comunista” Antonio Augusto com ela?

O próprio autor do texto a apresenta em seus termos: “a construção de um bloco de lutas de todas as forças anticapitalistas”. Seria preciso acrescentar: uma frente composta por partidos, organizações, movimentos e personalidades que se oponham à política dos governos capitalistas e ergam um programa de transformações em favor da classe trabalhadora; uma frente cujo papel seja o de aglutinar o movimento operário e popular em torno de bandeiras gerais e específicas.

Digamos ainda mais sobre aquilo que é totalmente negligenciado pelo crítico do PCB: na própria nota à qual o texto pretende responder, a CPN esmiúça que é preciso “a somar esforços pela realização de um Primeiro de Maio Unitário Classista em todas as cidades onde for possível, para alcançarmos o máximo de unidade na ação contra a ofensiva do capital. Essa unidade é um dos primeiros passos na construção de um Bloco de Lutas de todas as forças anticapitalistas e condição para a realização, no primeiro semestre do próximo ano, de um Encontro Nacional da Classe Trabalhadora e dos Movimentos Populares.” Sem levar em conta essa indicação, muito precisa temporalmente, que apontam um calendário específico sobre o qual essa tática se desenrola, toda a formulação seria apenas uma abstração. Claro, convém ao autor do texto publicado pela AE que pareça assim.

Qual, afinal, o problema do “comunista” Antonio Augusto com essa tática?

O problema seria que “as classes e camadas sociais potencialmente anticapitalistas estão longe, muito longe, de já possuir essa consciência de classe, “anticapitalista”. Só avançarão na sua consciência e organização, com base principalmente nas denúncias políticas, na luta reivindicativa econômica e na luta política.  A luta política da tática é um conjunto de bandeiras democráticas. E não pode deixar de ser assim nos marcos do capitalismo e da sociedade burguesa. O socialismo é um objetivo futuro.  Devemos fazer propaganda, até agitação, e luta ideológica pelo socialismo.  Mas isso não nos dá uma tática.”

Uma pergunta fundamental poderia ser posta desde já. Antes de mais nada, seria preciso perguntar se a classe trabalhadora está perto, muito perto, de já possuir uma “consciência democrática”, como parece supor o autor ao traçar a oposição entre as táticas. Caso a resposta fosse afirmativa, o país estaria em chamas diante das manobras da oposição de direita, e a greve geral da qual tanto se fala não seria apenas palavrório. Não parece ser este o caso, ainda que pudesse ser o desejo dos defensores do Estado de Direito. Então porque, para o “comunista” Antonio Augusto, parece mais plausível erguer as “bandeiras democrática”, a despeito de estas não encontrarem tão amplo respaldo na consciência da massa, do que as do socialismo? Antonio Augusto se coloca ao lado de todas as gerações de “comunistas” que buscaram difundir nas massas um “espírito democrático” (em verdade, legalista), a despeito da crescente desilusão dessas massas frente à democracia liberal. Essa “tática” de deixar o socialismo eternamente para um futuro longínquo e renunciar ao papel da vanguarda revolucionária (que é precisamente o de aproximar ativamente da massa a teoria revolucionária socialista) é a já muitas vezes derrotada tática do reformismo, que sempre abriu enormes flancos no meio proletário à crítica fascista da democracia liberal!

Ora! Mas a coisa parecia tão óbvia na boca do “comunista” Antonio Augusto! Será que estaríamos deixando algum ponto passar desapercebido?

Certamente. E a esse ponto se dá o nome de estratégia. A diferença que o “comunista” Antonio Augusto não evidencia, em seu texto, reside aí. Vejamos como Carlos Matus, um democrata-radical ao estilo do Sr. Antonio Augusto, mas com o mérito de ter estudado melhor o tema da tática e da estratégia, conceitua as coisas:

“Há cerca de trinta e cinco anos, quando estudei Clausewitz pela primeira vez, fiquei impressionado pela singeleza e profundidade da distinção que faz entre estratégia e tática. Parece-me que ninguém conseguiu exprimir essa ideia com maior precisão, profundidade e economia de palavras: ‘[…] a tática ensina a usar as forças armadas na batalha, e a estratégia é a utilização das batalhas para alcançar o objetivo da guerra’ (Clausewitz, 1972, p. 121-2).” (Matus, 1996, p. 33)

O que Clausewitz propõe, ao falar em estratégia e tática, é bastante diferente do entendimento vulgar que se faz do termo. Na acepção corrente, estratégia seria o “objetivo futuro e distante”, e a tática seria a política necessária ao momento político imediato. Se relativiza, assim, a conexão entre ambas, e só isso permite que fórmulas vazias e generalizantes (aplicáveis aparentemente a todo e qualquer país capitalista) como as do Sr. Antonio Augusto (“a luta política da tática é um conjunto de bandeiras democráticas, e não pode deixar de ser assim nos marcos do capitalismo e da sociedade burguesa”) sejam tomadas como tendo qualquer coisa a ver com uma política comunista!

Levado isso em conta, qual é a estratégia defendida pelo PCB? É a estratégia da revolução socialista, ou, em outras palavras: “a consecução dos objetivos estratégicos do PCB implica na construção de uma alternativa de poder que se apresente como uma contraposição ao poder burguês, mobilizando as classes exploradas, com um programa capaz de produzir uma ruptura na ordem capitalista. Esta contraposição se materializa no Poder Popular.” Faz muito sentido, portanto, que a constituição de um Bloco de Lutas Anticapitalista seja uma tarefa tática de primeira ordem: no bojo das presentes batalhas contra os ataques que a classe trabalhadora sofre em diversos âmbitos, se coloca a urgente tarefa de organizar as “forças armadas” dos revolucionários, aumentando sua coesão e amplitude. Como dizia Gramsci, nos Cadernos do Cárcere: “o elemento decisivo de cada situação é a força permanente organizada e há muito tempo preparada. Por isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente a forma essa força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si.”

E o Sr. Antonio Augusto, qual afinal a estratégia que defende? Se toda a fraseologia democrática não o tivesse entregado até aqui, a coisa fica nítida quando ele acusa o PCB de agir como se “quanto pior melhor”: “Não! Se o país vai mais para a direita e a reação, a luta democrática e popular se torna mais difícil”. A estratégia aqui proposta é tão “comunista” quanto qualquer governo do PT: a velhíssima estratégia democrática e popular, com toda sua miopia sobre “setores progressistas da burguesia nacional”, “etapas prévias necessárias à estratégia socialista”, etc. A diferença aqui, no caso, é que o etapismo do Sr. Antonio Augusto não é sequer um etapismo da realidade social, mas um etapismo da consciência: como as massas não são anticapitalistas ainda, devemos nos bastar na defesa da democracia legal – que nada mais é que a própria forma da consciência ideológica burguesa, e só por isso mais “palatável”! Cumprida essa etapa “democrática”, ai então quem sabe um dia possamos falar à massa sobre o socialismo com seriedade, como luta real, e não apenas como “luta ideológica”. Ou seja: nada de novo no front do rebaixamento ideológico democrático e popular.

“Nossa tática é necessariamente pelas reformas democráticas, só assim as classes e camadas de classe interessadas no objetivo final socialista avançarão nessa direção, construirão sua consciência, organização e força política principalmente através da luta democrática”. Aqui o Sr. Antonio Augusto começa a meter os pés pelas mãos. Em primeiro lugar, porque vivemos justamente a falência desta tese: se ela fosse verdade, como explicar que as três décadas de luta petista por “reformas democráticas” não tenham construído na classe trabalhadora qualquer consciência socialista, e nem sequer democrática? E agora, 30 anos depois da adoção de uma estratégia que pretendia “acumular forças”, temos diante de nós uma classe trabalhadora com maior organização e uma consciência socialista mais consolidada? Pelo contrário, o que vimos foi o fortalecimento das concepções de mundo conservadoras e reacionárias e o descarte do PT pela burguesia. Mais do que isso: o que a suposta “candente luta democrática contra o golpismo”, ou seja, a “defesa da democracia” como ela é, tem a ver com uma luta por “reformas democráticas”? Sem sombra de dúvida, as bandeiras gerais e específicas erguidas pelo PCB no bojo de sua tática de construção de um Bloco de Lutas anticapitalista têm muito mais de reformas democráticas do que toda essa fraseologia legalista que o petismo traz à tona, sobre a defesa da democracia como ela é – essa mesma democracia burguesa que agora asfixia e expurga do seu interior o petismo que em algum momento lhe serviu ao fim da desmobilização das massas.

Os comunistas não acreditam, como induz o texto do Sr. Antonio Augusto a crer, que “quanto pior, melhor”: fosse esse o caso, enveredariam pela aventura do “Fora todos!”, e não denunciariam as manobras da direita, e a necessidade de preparar, desde já, a resistência ao futuro Governo Temer e à sua Agenda Brasil. Fosse esse o caso, os comunistas não orientariam sua militância a engrossas as manifestações da Frente Povo Sem Medo, no dia 24 de março! Por outro lado, seria indigno de um Partido Comunista fechar os olhos para as tentativas do PT de estabelecer um acordo por cima e à direita, a despeito das pressões das suas bases por uma saída à esquerda. Nesse contexto, aderir indiscriminadamente a toda e qualquer manifestação, se bastando na falida e desorientadora palavra de ordem que afirma que “Não vai ter golpe” equivaleria a entregar um cheque em branco ao petismo de cúpula. Isto é algo que a massa menos orgânica e mais jovem, bem intencionada e preocupada, desorganizada e chocada, pode não se dar conta, ou relativizar; mas que é dever de qualquer organização revolucionária consequente notar e evitar, dizendo em alto e bom som, desde já: seja por suas ilusões com a legalidade burguesa, seja por seus compromissos com diversos setores da burguesia, o petismo é absolutamente incapaz de levar até o fim a luta contra os ataques à classe trabalhadora, que antes se realizavam a partir de seu próprio governo e daqui em diante serão realizados pelas mãos dos reacionários que o próprio petismo incubou!

É por isso que se apontam possibilidades, e não inevitabilidades, quando se diz que “estarão reduzidas as possibilidades de conciliação e ilusão de classes, o que poderá levar a resistência dos trabalhadores e setores populares a um novo patamar, colocando na ordem do dia a necessidade da construção do Poder Popular, rumo ao Socialismo”; ou mesmo que “esse também foi um processo pedagógico para os trabalhadores, pois demonstrou claramente a natureza da democracia burguesa e o perfil conservador do Congresso Nacional”. Que essas possibilidades se tornem realidade dependerá apenas e tão somente de os comunistas realizarem sua agitação e propaganda e ampliarem sua organização e unidade – e não que recuem seus discursos em direção ao legalismo, como a fala que busca evitar o impeachment choramingando aos tribunais burgueses (!) os dizeres de que “não há crime de responsabilidade”, e todo resto da tralha jurídica.

Incomoda ao Sr. Antonio Augusto a tática do PCB porque na verdade incomoda sua estratégia – e porque o PCB, diferente dos oportunistas que por décadas hegemonizaram as lutas da classe trabalhadora, não entende por “tática” a mesma coisa do que aqueles sempre dispostos a justificar todo o tipo de atrocidade como “necessidade tática”, desde a nomeação de ministros burgueses e latifundiários até o abandono da defesa do socialismo! “É apenas tático, camarada”, afirmam os oportunistas, e a militância de base respira aliviada pois, ali no fundo de alguma antiga resolução partidária, “ainda somos socialistas”…

O “comunista” Antônio Augusto é, na verdade, um democrata-popular – e, nesse sentido, faz bem ao se alinhar à decadente estratégia petista e não ao PCB, que após décadas reiterando o erro crescente da estratégia nacional e popular, aprendeu sua lição revolucionária e rompeu com o etapismo. A tal “candente luta democrática contra o golpismo”, que até aqui apenas logrou mobilizar a pequena-burguesia progressista e as mais tradicionais e petistas organizações populares, parece ser bem mais candente na cabeça do Sr. Antônio Augusto do que no cotidiano da classe trabalhadora e demais setores populares.

Entre convencer as massas trabalhadoras a sair de sua imobilidade em nome de um governo indefensável e de uma democracia burguesa, ou estimular a classe trabalhadora a organizar seu poder de classe para conquistar o socialismo; entre dar aulas de constitucionalismo e legislação processual, para ver se então o proletariado passa a se indignar mais com as manobras da direita, ou realizar a propaganda da teoria revolucionária do proletariado; alguém que se autodeclara comunista não deveria ter qualquer sombra de dúvida de qual é a sua tática!


MATUS, Carlos. Estratégias políticas: chimpanzé, Maquiavel e Gandhi. São Paulo: Edições Fundap, 1996.

A Estratégia e a tática da Revolução Socialista no Brasil: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=7378:a-estrategia-e-a-tatica-da-revolucao-socialista-no-brasil&catid=133:xv-congresso

Estratégia e da Tática do PCB: http://www.pcb.org.br/portal/docs/estrategia.pdf

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