Por Simon Hajdini, via Crisis and Critique, traduzido por Daniel Fabre
A fórmula geral do capital de Marx introduz o principio da repetição. O presente artigo segue inicialmente Deleuze, para quem a repetição é diretamente oposta a troca, para demonstrar como Marx não poderia concordar com tal concepção de repetição. O ponto de Marx é pensar a repetição e seu excedente para além da mera transgressão, para isso, Hajdini vale-se da lógica da pulsão e do desejo em Lacan, de forma a demonstrar a verdadeira lógica das troca de mercadorias na sociedade do Capital.
A tese segundo a qual a formula geral de Marx sobre o capital introduz o principio da repetição pode apenas parecer um lugar comum. Pois é imediatamente evidente que a formula D-M-D’ implica em repetição. Primeiro, a repetição do dinheiro como uma coisa qualitativamente homogênea, que apresenta seu ponto de partida e de chegada, e, consequentemente, também a repetição do ato de troca, que primeiro toma a forma de uma compra, uma metamorfose do dinheiro em uma mercadoria; e, em um segundo passo, a forma de uma venda, a metamorfose de uma mercadoria de volta em dinheiro. Se abstrairmos as formas da mercadoria e do dinheiro, o ato de troca efetivamente se torna uma repetição do ato de compra, que ocorre, primeiramente, como a compra de uma mercadoria com dinheiro, e, depois, como uma compra de dinheiro com uma mercadoria[1]. Mas, a tese inicial é evidente também de outra perspectiva, nomeadamente do ponto de vista da distinção entre a circulação simples de mercadorias (M-D-M) e a circulação do capital (M-D-M’), como introduzido por Marx. A circulação de mercadorias – vender para comprar, isto é, a troca de mercadorias produzidas em meio privado por dinheiro, e a troca de dinheiro por mercadorias produzidas em meio privado – forma um circulo fechado que começa com uma necessidade que, por um ato de troca redobrado, chega a (ao objeto de) sua satisfação. A satisfação da necessidade, isto é, o consumo, forma o propósito desse processo, que era para ser situado fora da circulação; e seu resultado final – uma mercadoria feita para o consumo – não serve como ponto de partida de um novo ciclo de circulação. Quando esse ciclo começa novamente, começa de nada novo.
Ao contrário da circulação simples de mercadorias, a circulação de capital (D-M-D’) forma um circulo aberto, que não começa com uma necessidade e termina com sua satisfação ou com o consumo da mercadoria, mas, ao invés, forma um processo essencialmente sem limites. Desde que o proposito da produção capitalista não é a satisfação de necessidades ou quereres mas a acumulação de capital, isto é, sua valorização – o processo de circulação não tem nenhum limite externo. Consequentemente, tão logo o dinheiro é retirado de circulação ele para de funcionar como capital, e se o capital deve reter sua forma de capital, cada ciclo de repetição do ato de troca deve passar a um outro ciclo. Ao contrário da repetição do ato de troca em um único ciclo de circulação, cujo proposito é marcado pela esfera do consumo como algo externo à esfera de circulação, testemunhamos aqui a repetição do próprio ciclo; a repetição da repetição, ou seja, a repetição do ciclo unificado de uma repetição redobrada do ato de troca: D-M-D’-M-D’’… De qualquer modo, a tese inicial de que a formula geral do capital introduz o princípio da repetição, não chega a isso. Ela permanece irredutível, tanto pela repetição do ato de troca como pela repetição do ciclo de circulação, apesar de que ambos não estão totalmente desvinculados disso.[2]
Repetição e Transgressão
Já que o proposito da produção capitalista é a valorização do valor, a troca de dinheiro por uma mercadoria, seguida pela troca de uma mercadoria por dinheiro, seria sem sentido se esse preciso momento não introduzisse uma certa diferença, nomeadamente a diferença entre a soma inicial e final de dinheiro; a diferença na magnitude do valor indicado pelo menor índice de expansão do valor (D’). Se a circulação simples de mercadoria se apoia em um equivalente de troca, que não produz nenhum excedente, a circulação de capital funciona apenas sob a condição de que um excedente atravesse em geral o equivalente de troca. E é precisamente esse objeto que propele e dá sentido ao processo de circulação, enquanto, ao mesmo tempo, funciona como uma alavanca da repetição. Assim, a repetição se apoia mais além da generalidade dos ciclos e equivalências. O nome de Marx para esse objeto de alavancagem da repetição é, obviamente, mais-valia.
Tentarei desenvolver mais esse ponto recorrendo a uma referência inesperada. “Repetição não é generalidade”, escreve Deleuze em seu famoso Diferença e Repetição:
“A generalidade apresenta duas ordens maiores: a ordem qualitativa de semelhanças e a ordem quantitativa de equivalências. Ciclos e igualdades são seus respectivos símbolos. […] Podemos ver que a repetição é uma conduta justificável e necessária apenas em relação ao que não pode ser substituído. A repetição como uma conduta e como um ponto de vista tem que ver com singularidades não-trocáveis e não-substituíveis. […] Se a troca é o critério da generalidade, o furto e o presente são aquelas da repetição. Há, então, uma diferença econômica entre os dois.”[3]
A troca é o critério da generalidade. A generalidade consiste em duas ordens maiores, aquela de semelhanças qualitativas e de equivalências quantitativas. A formula da troca de mercadorias simples (M-D-M) claramente se apoia na ordem de equivalências quantitativas. Em cada um de seus extremos, encontramos mercadorias que não se assemelham umas as outras no fim das contas, já que ambas apresentam dois diferentes valores de uso, e, então, dois diferentes meios para se satisfazer as necessidades. Além disso, essa diferença qualitativa é a precisa condição da troca. Eu apenas troco um valor de uso, ou uma coisa útil, por uma outra coisa qualitativamente útil se ela puder satisfazer uma necessidade que a primeira não podia. Mas, sob as condições da produção de mercadorias, para trocar uma coisa útil por outra, tenho que abstrair as diferenças qualitativas entre elas e reduzir essa diferença para a ordem das equivalências quantitativas. Valores de uso qualitativamente diferentes tem que ser reduzíveis a um valor de troca homogêneo. Então, a diferença qualitativa da primeira mercadoria some na indiferença quantitativa da forma-dinheiro, para adquirir, via sua mediação, a forma de uma mercadoria com um valor de uso diferente. Em termos lacanianos, esse movimento começa com uma necessidade que aponta para algum valor de uso como um objeto de satisfação particular qualitativamente especifico. Mas, pela necessidade de compreensão de seu objeto e para chegar a sua satisfação, ele deve ser articulado como um pagamento capaz – como uma necessidade de joelhos perante o significante. Ele deve ser articulado como uma demanda significante, como dinheiro, a pura imagem do valor além de seu uso. Aqui, o dinheiro funciona como um “mediador desaparecido”, um meio de circulação que perpetuamente desaparece mediando a satisfação das necessidades.
A formula D-M-D’ revela uma relação inversa das ordens de generalidade. Os dois extremos são qualitativamente parecidos, são ambos dinheiro, e, então, qualitativamente a mesma coisa. Como eu já indiquei, o dinheiro se diferencia de outras mercadorias pela incorporação das rasuras, ou da extinção, de diferenças qualitativas como tais, o afogamento de necessidades particulares na generalidade da demanda pura. E, se no primeiro caso, todo o processo se baseou na diferença qualitativa entre os dois extremos, aqui sua força pulsional é, ao contrário, a diferença quantitativa entre extremos qualitativamente homogêneos, a diferença entre a soma avançada de dinheiro (D) e a soma valorizada (D’) retirada de circulação, e imediatamente entrando em um novo ciclo de valorização. É somente assim que o valor se diferencia do dinheiro, e toma a forma de capital como valor auto-valorizável. O capital como um valor auto-valorizável é o sujeito desse processo, o sujeito que, entretanto, permanece irredutível ao dinheiro e à mercadoria, aparecendo apenas através do processo de alternação entre suas formas. Em si próprio, ele não é nada mais que esse movimento de troca, nada mas um übergreifendes subjekt, um sujeito transitivo ou, ainda melhor, um sujeito-cruzado, alternativamente tomando duas diferentes formas-valor enquanto permanece irredutível a elas. Consequentemente, o dinheiro entrando no processo de circulação não é sempre-já capital mas, terá sido capital quando tiver passado por seu movimento. Além disso, o modo temporal do futur antérieur é uma característica estrutural do capital. O capital, como um “sujeito-cruzado”, está situado no cruzamento entre o será e o terá sido, em seus intervalos. Tão logo ele se torne algo que já passou, tão logo sua natureza de intervalo ou interstício alcança sua realização, ele cessa suas funções como capital e é reduzido a mera forma-dinheiro. Dinheiro só é capital retroativamente – como o sujeito que dispara o movimento de todo o processo, o capital é o resultado retroativo de seu próprio movimento:
D → D’
$ ←
Tão logo a magnitude final do valor (D’) seja retirada de circulação – tão logo ele seja fixado na mera forma-dinheiro, então cessando sua função transitiva ou processual de valor – ele deixa de funcionar como capital. É por isso que um capitalista que retira de circulação seu capital é imediatamente transformado em um Schatzbildner, um entesourador, um avarento; é transformado em um homem rico pré-moderno, que reserva e guarda dinheiro sem possuir um único átomo de capital. O entesourador economiza dinheiro guardando-o fora da circulação; o capitalista retira de circulação para colocá-lo de volta.
Para Deleuze, a repetição é oposto direto da troca, que é sempre uma troca de equivalentes. Mas, na passagem citada acima, ele imediatamente se move na direção de ligar a repetição ao roubo e ao presente, que são retirados juntos de circulação, e, então, escapam às leis da troca e são ligados apenas através de sua transgressão: “Em todos os aspectos, a repetição é uma transgressão”, diz uma das palavras de ordem de Diferença e Repetição. A repetição ocorre em um modo de transgressão da lei, tal como a lei da troca de mercadorias considerada como troca de equivalentes; Consequentemente, para Deleuze, a universalidade singular do objeto de repetição é atingível apenas pela via da transgressão. Em contraste com Deleuze, o que está em jogo na conceitualização da repetição em Marx, até onde está assentada no incremento do valor, em puro excedente, é precisamente um modo de repetição que não é simplesmente externo à circulação, mas, antes, por meio dela. A aposta de Marx é em mostrar como uma soma de dinheiro, jogada em circulação, pode passar por um acréscimo sem minar as leis da troca de mercadorias, ou, para colocar de um modo diferente, como uma troca equivalente pode produzir um excedente-sem-equivalente como a alavanca da repetição:
A transformação do dinheiro em capital tem que ser desenvolvida na base das leis imanentes da troca de mercadorias, de tal modo que o ponto de partida é a troca de equivalentes. O dono do dinheiro, que é ainda apenas um capitalista na forma larval, precisa comprar suas mercadorias por seu valor, vendê-las por seu valor, e ainda no fim do processo retirar mais valor de circulação do que colocou no começo. Sua aparição como borboleta precisa, e não precisa, acontecer na esfera da circulação. Essas são as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta!
Para Marx, a repetição é, e não é, o oposto da circulação; consequentemente, seu objeto é a paradoxal “parte de nenhuma parte” da circulação. Este é o porque as esferas da circulação e da repetição, a articulação final do excedente como um objeto e um momentum, não são simplesmente opostas uma à outra. O excedente não é o resultado de uma transgressão; não é simplesmente um elemento externo à circulação, mas antes um elemento estimado, o local de sua alteridade interna, que evita a oposição entre troca e repetição, entre generalidade e singularidade, entre equivalência e incomensurabilidade, etc. Mas o ponto que se pode pintar de Marx não é simplesmente que, apesar da repetição como o oposto da troca, apesar dos objetos equivalentes e trocáveis, é preciso conceber ainda outro tipo de repetição, e ainda outro tipo de objeto sem um equivalente. O ponto de Marx seria mais forte aqui. Se alguém pensa o excedente sob o critério do roubo e do presente (como Deleuze o faz), não se pensa no excedente verdadeiramente. Se tentarmos apanhá-lo pela via da transgressão, ele necessariamente ilude nossa tentativa.
A repetição não pode ser reduzida ao roubo ou ao presente, que engana a economia como tal, ainda que ela possa funcionar como um suporte extra-econômico. Roubo e presente se baseiam fora da troca equivalente; eles se articulam em um objeto sem um equivalente, um objeto não-trocável e insubstituível que pode ser alcançado apenas pela via da transgressão, uma violação, um crime contra a ordem quantitativa de equivalências que determinam a troca de mercadorias. Em contraste a isso, Marx tem de explicar a possibilidade de um crime legalizado, um crime que não suspende a lei. Ele tem de levar em conta a possibilidade de roubo sob as condições da troca de equivalentes; ele tem de explicar como a equivalência pode produzir mais-valia, ou como pensar a produção de excedente além da economia do roubo e do presente. O lado inverso do problema é a redução do excedente implicado no lapso do roubo e do presente. Marx demonstra que o valor tomado pelo roubo ou dado como presente, ainda que isento das relações de troca, não forma excedente e – ao contrário do ponto de Deleuze – permanece radicalmente baseado em relações de troca, isto é, em coordenadas de generalidade e na ordem de equivalências quantitativas. O roubo é uma mera redistribuição do valor, e ainda que não seja consistente com as leis da troca, no entanto, existe apenas na esfera da circulação, que é precisamente a esfera particular da qual Deleuze tenta se livrar. O roubo não é um excedente correlato irredutível às relações de troca; ele não frustra essas relações, mas meramente as modifica em um modo que um excedente de um lado se manifesta como uma perda do outro.
Assim, a diferença entre Deleuze e Marx nos leva à distinção lacaniana entre dois paradigmas do gozo como incremento do conhecimento. Deleuze pressupõe uma relação antinômica entre significante e gozo; ele parte de sua radical incomensurabilidade. Um significante é uma entidade negativa relacional, o valor que se baseia, só, na diferença em relação a todos outros significantes. A fungibilidade das mercadorias se baseia em uma abstração significante de seus valores de uso; mercadorias são mercadorias porque elas se inserem em relações mútuas, a substância-valor de uma mercadoria particular existe apenas em sua comunicação com outras mercadorias. Pondo de outro modo, o valor é uma forma e não uma substância. No lado oposto dessa transladabilidade e fungibilidade das mercadorias como valores de troca, isto é, repetição baseada em um objeto sem equivalente, repetição concebida por Deleuze em termos de roubo e presente. Em contraste a isso, Marx concebe o gozo como um incremento no funcionamento do discurso capitalista; ele vê isso como um excedente discursivo que esta relacionado ao significante, e que implica na não transgressão dessas formas que determinam o laço social capitalista. Não é coincidência que a mais completa analise de Lacan do discurso capitalista é encontrada no seminário que marca a ja mencionada reconceitualização do gozo, como também não é coincidência que, nessa reconceitualização, Lacan se refere abundantemente a Marx, e explicitamente liga o conceito de mais-gozar com a noção marxista de mais-valor. Uma dessas teses centrais do Seminário XVII de Lacan é que o gozo não resulta da transgressão e que o capitalismo como um discurso específico de extração de mais-valia é precisamente o melhor exemplo dessa lógica.
Roubo e Presente – Fantasia e Perversão
A este ponto se poderia aventurar na tese romântica de Deleuze sobre o roubo e o presente ligando-a a uma mistificação mais profunda sobre o próprio conceito de capital, implicando em um mal-entendido paradigmático da forma do laço social. Como vimos, o capital pressupõe uma certa noção de subjetividade. Já que ele permanece irredutível aos elementos do processo de circulação (dinheiro e mercadoria), ele forma um processo de valor, uma instância de um “sujeito-cruzado” como o resultado retroativo paradoxal de seu movimento próprio. Considerando a valorização do capital, o excedente inerente do capital não pode ser explicado em termos de circulação e troca equivalente, inevitavelmente parece que a valorização do capital é ela própria auto-valorização; parece que o capital “adquiriu a habilidade oculta de adicionar valor a si próprio pela virtude de ser valor”. O conceito de capital como um sujeito-cruzado consequentemente gera uma mistificação ideologica que tem efeitos retroativos na noção de capital como um sujeito. A qualidade oculta diz respeito ao pressuposto de que o capital possui um poder intrínseco de valorização do valor, uma força produtiva de si próprio; e esse pressuposto é precisamente o que forma o específico bloqueio de conhecimento que Marx chama de fetichismo do capital. Deixe-me suplementar meu esquema:
↓ D → D’ ↑
$ ← ΔD
O esquema resume a mercadoria e vincula a avançada soma de dinheiro (D), que ainda não funciona como capital e que, do outro lado do processo de circulação reaparece enriquecido com um excedente (D’). ΔD designa o incremento de valor, que é, mais-valia, o excesso de valor sobre o valor avançado. O capital como um sujeito-cruzado ($) não é nada mais que esse movimento de circulação, o resultado retroativo que, entretanto, aparece como o agente original do processo, nomeadamente o sujeito da produção de mais-valia ou o correlato produtivo do excedente. Se nos abstrairmos da motivação subjetiva de um capitalista particular – que, para Marx, é completamente secundário, e derivado porque os capitalistas são meramente “a personificação das categorias econômicas”, personagens que aparecem no palco econômico – a soma avançada de dinheiro (D’) aparece sempre-já capital (D/$), apesar do fato de que ele se torna capital apenas como o resultado desse movimento.
Dito de outra forma, como o sujeito do processo do capital aparece como um sujeito do desejo, como uma pura diferença das duas formas-valor mediadoras, as do dinheiro e da mercadoria. Se o dinheiro é o epitome da pura demanda significante, e, portanto, a subtração da necessidade como o excedente dessa demanda significante, como um sujeito do desejo impulsionando todo o processo. O bloqueio de conhecimento, como diz Marx “o fetichismo do capital”, designa precisamente esse poder generativo do capital para conceber, como o sujeito do processo, a mais-valia sobre o valor avançado. Se nos traduzirmos o incremento de valor, ou a mais-valia (ΔD), para a álgebra lacaniana, temos a seguinte formalização:
D → D’
$ ♢ a
A circulação do capital (D → D’), seu movimento, se baseia no fetichismo do capital, pressupondo um poder generativo do capital, de seu poder produtivo inerente de mais-valia (a) pela virtude de ser valor. Esse apoio do movimento do capital tem a precisa estrutura da fantasia ($ ♢ a), que, nesse caso, não é meramente a fantasia de um capitalista, mas também diz respeito a todos os participantes da sociedade burguesa. Esse excedente de gozo por parte do Outro (Capital), que se apoia no núcleo do fetichismo do capital, assume a forma paradigmática de um presente, oposta a lógica da troca. Enquanto um presente deve ser situado fora da troca, e pensado como a pura corporificação do excesso, o fetichismo do capital designa a fantasia do capital como a geração de mais-valia em um puro ato de dar, ou transcendendo as leis da troca. O excedente como um impenetrável presente do capital se apoia no núcleo do fetichismo do capital.
Presente e roubo efetivamente formam um par privilegiado. O ocultismo do presente tem sua contra-parte no evidencialismo do roubo, que se contrapõe ao fanatismo do mercado, ou fetichismo do capital, enquanto de fato permanece em seu terreno; um fato bem indicado pelos trabalhadores de cooperativas como emblema do conhecido socialismo de mercado. Sob circunstancias normais, o evidencialismo do roubo como uma ideologia dos “trabalhadores” aparece se os salários não mais bastarem para garantir a subsistência; se tornando verdadeiramente palpável, de qualquer modo, em tempos de crise. A crise atual, de fato, iniciou a inversão do ocultismo do presente, da utopia liberal do eterno crescimento e da capacidade generativa sem fim do capital, em um evidencialismo do roubo, demonstrado como protestos de massas, palavras de ordem como “Ladrões!”, trabalhadores unidos em uma luta contra as elites políticas capitalistas corruptas. Como já mencionado, essas explosões não são sinais de uma “travessia da fantasia”, uma sobriedade em face da natureza exploratória do capital, mas, antes, designa uma virada à perversão, que, como père-version, “a versão do pai”, ou, neste caso, “o chamado do Capital”, permanece escravizado pelo próprio discurso de que tenta escapar. Este é o porque a formula de Lacan da perversão corresponde à inversão da formula da fantasia ($ ♢ a):
D → D’
a ♢ $
O perverso evidencialismo do roubo, efetivamente, recapitula o ocultismo do capital apesar do fato de que reduz sua forma mistica a sua “verdade” cinicamente iluminada e supostamente “racional”. Ambos paradigmas, o fantasmático e o perverso, de fato, se baseiam no pressuposto da relação antinômica entre a lógica da troca e a lógica do presente e do roubo. Ambos paradigmas procedem de uma relação antinômica entre o significante e o gozo, consequentemente reduzindo a acumulação de excedente à fatores completamente externos à esfera da troca, à logica da fungibilidade, ao sistema de diferenças e ciclos, à ordem qualitativa de semelhanças e a ordem quantitativa de equivalências.
O roubo é o inverso do presente; ele é o outro lado do desejo e seu suporte fantasmático. A mudança de Marx do presente e roubo para o conceito de exploração – a mudança da relação antinômica entre significante e gozo, que se apoia no regime de transgressão, ao gozo discursivo – é correlato com o distanciamento da lógica do desejo, que se apoia na fantasia, em direção a pulsão e a lógica da repetição. Roubo e presente são enraizados em uma falta, que tem de ser dada um sentido duplo. De um lado, o objeto operativo no roubo e no presente não é nada além de um correlato da falta: roubo e presente introduzem pontos locais de ausência adequada à redistribuição de valores significantes. Como tal eles não escapam da lógica da troca, a ordem significante do valor, são, antes, completamente dependentes da correlação entre os valores e os lugares de sua inscrição, sob a diferença básica do sistema de troca equivalente. Á esse respeito eles também figuram como dois nomes privilegiados pelo bloqueio de conhecimento, ou a falta constitutiva, concebida por Marx como o fetichismo do capital, que reage ao impasse da produção de excedente pela via do ocultismo da força produtiva do capital e sua inversão evidencialistica.
A relação entre o roubo e o presente e a falta tem que ser novamente torcida. Eu disse que do ponto de vista da economia simbólica, ou da troca equivalente, o roubo corrobora uma mudança de lugar, para um deslocamento. Isso aparece como uma perda por um lado e pelo outro conta como um excedente. Como Lacan aponta em seu “Seminário sobre a Carta Roubada”, as únicas coisas que estão mudando seus lugares são os significantes redobrados pelo lugar de sua inscrição como o lugar de sua ausência. Apenas o que pode substituir tem um lugar. Lugares são feitos do que está faltando. Consequentemente, os objetos do roubo e do presente são essencialmente objetos simbólicos que de nenhuma forma se esquivam da rede simbólica de transladabilidade e equivalências. Mas, mesmo que eles sejam pegos pela economia simbólica, eles efetivamente apresentam uma exceção constitutiva à suas regras. O objeto do roubo e do presente está faltando em seu lugar. Mas, no caso do roubo e do presente, esse objeto faltante em seu próprio lugar de inscrição não é apenas possível, mas necessário, o que significa que ele pertence a essência própria do do roubo e do presente. Os objetos do roubo e do presente são estruturalmente deslocados; tão logo eles apareçam já aparecem como faltantes no local de sua inscrição. O fato de estar fora do lugar os coloca além de todos outros objetos. Um objeto permanece roubado apenas pelo tempo que permanecer fora de seu lugar. Um presente é um presente apenas enquanto não for reclamado, fora do lugar e irredutível a nossas expectativas. Nesse lugar jaz a fonte de seu efeito surpresa: se um presente tiver sucesso, ele o terá porque o encontramos em um “lugar de lugar nenhum”; o encontramos sem nunca mesmo ter procurado por ele. Um presente é algo que não pode ser procurado porque não tem um lugar. Essa separação inerente dos objetos do roubo e do presente do lugar de sua inscrição não os coloca fora do simbólico, mas, ao invés, articula uma característica essencial da ordem simbólica como tal, de sua diferença, a essência do significante sendo redobrada pelo lugar de sua própria ausência. Contrário a isso, Marx retrata um objeto que esta e não esta na esfera da circulação, de uma só vez colocado e deslocado. Diferentemente dos objetos do roubo e do presente, que não estão em seus lugares, e diferentemente dos objetos significantes usuais, que estão ou não estão em seus lugares, o objeto de Marx – a mais-valia – simultaneamente está e não está em seu lugar.
A inversão evidencialistica, como mencionado acima, segue a lógica da perversão. Deixe-nos tomar o exemplo da crise. A crise capitalista aparece como uma diminuição na acumulação, ou da valorização do valor. Do ponto de vista do fetichismo do capital, consequentemente, ela aparece como uma queda no poder produtivo do capital, como a própria impotência do capital, solapando o ocultismo do presente, a premissa da potência generativa infinita do capital. Mas a premissa da impotência do capital, sua “castração”, se apoia precisamente em seu suposto poder produtivo, sua potência, e não é nada além do fetichismo do capital em sua determinação oposta (Hegeliana). Assim, o evidencialismo do roubo como a aparente oposição do ocultismo do presente é na verdade o ocultismo do presente trazido a seu extremo. A premissa que diz respeito à impotência do capital é uma mera consequência da suposição de sua potência, que, de uma forma deslocada, passa e mascara uma vez mais o ponto de sua impossibilidade. A crise, então, torna visível a falta da esfera simbólica da circulação e permanece oculta sob o véu do fetichismo do capital. O evidencialismo do roubo se apoia nesse dispositivo; e mesmo que seus slogans pareçam apontar para a “castração” do Capital, revelando sua impotência, a evocação do roubo, esse obscuro gozo, efetivamente desmente a “castração” e reintroduz no Outro o gozo do qual foi privado por um breve momento. O roubo mascara a impossibilidade do roubo. Um aparente destronamento do Outro é, no entanto, uma perversa estratégia de sua instalação; um rasgo de impossibilidade inscrito em seu próprio núcleo.
Repetição não é transgressão, o excedente não é o correlato do roubo; ao invés, eles tem o significado de uma produção discursiva concebida por Marx como a exploração capitalista. E exploração não é roubo. Ela ocorre contra o pano de fundo da troca equivalente, e mesmo que se apoie na troca de uma mercadoria muito específica, nomeadamente a força de trabalho, ela não viola as leis do mundo das mercadorias. A força de trabalho é a única mercadoria que produz um valor que excede o próprio valor da força de trabalho. Entretanto, esse excedente não é um elemento do roubo; ele é formado sob as condições da troca de equivalentes, o que significa que o trabalhador recebe do capitalista o valor total de sua mercadoria, que – justamente como o valor de qualquer outra mercadoria – é determinado pela quantidade de tempo de trabalhado socialmente necessário para sua (re)produção. Então, o fetichismo do capital, a assunção de uma força produtiva do capital, encontra seu suporte estrutural na forma específica do salário como o equivalente do valor da força de trabalho. O salario, entretanto, não aparece como tal; ele toma a forma mística do valor do trabalho (e não da força de trabalho), assim ofusca a diferença entre o tempo de trabalho necessário e o excedente; isto é, entre, por um lado, o tempo de trabalho no qual o trabalhador produz o valor que retorna a ele ou ela na forma de salário e, por outro, o excedente de tempo de trabalho, que é tempo de trabalho sem equivalente, trabalho não pago, que é o correlato da mais-valia. Se retornarmos à formula do capital dessa perspectiva, imediatamente veremos porque o capital remunerado é a forma última da aparência do fetichismo do capital. O capital remunerado, tomado em se, livra da mediação das mercadorias e se soma se soma ao movimento D-D’, no qual o dinheiro parece imediatamente produzir mais dinheiro (Geld heckendes Geld, como diz Marx). Entretanto, o que é negligenciado aqui é o fato de que o excedente, na forma de vantagem, é meramente uma parte do lucro do empresário que usou o dinheiro como capital e enriqueceu comprando força de trabalho.
Além da Parthenogenese do Capital
Após esse desvio, deixe-nos retornar ao problema da repetição e de seu objeto-excedente. O ocultismo do capital se baseia no paradigma do desejo assentado na fantasia, que, em seu núcleo, é sempre uma fantasia da fusão do sujeito com mais-gozar. Dessa forma, a fantasia introduz uma relação no lugar de uma não-relação estrutural, da impossibilidade inerente do gozo incestuoso. E o fetichismo do capital, como a suposição do poder de auto-valorização do capital, não se ergue precisamente por uma possibilidade fantasmática de um gozo incestuoso, como um suposto produto da parthenogenese, ou da concepção virgem, do capital?
Slavoj Žižek propôs que o movimento do capital corresponde precisamente ao movimento da pulsão, ou ao seu específico modo de satisfação. Desenvolvendo essa tese, ele se refere à distinção de Lacan entre o alvo e o objetivo da pulsão, que implica em uma lógica que permanece irredutível à lógica do desejo como algo que sempre se baseia na fantasia do gozo incestuoso. Como já mencionado, o propósito da circulação simples de mercadorias é a satisfação da necessidade. Essa satisfação se assenta fora da circulação, que media a consecução do objetivo de satisfação. O objeto de satisfação (uma coisa útil ou um valor de uso) forma o objeto, que é realizável pela via do processo de circulação. Em contraste com isso, o proposito da circulação do capital não é a satisfação da necessidade que é extinta com a realização do objeto de satisfação, mas antes a valorização do valor, a acumulação de excedente, que é irredutível ao objeto de satisfação. A circulação capitalista é inteiramente indiferente aos valores de uso: seu propósito não é o objeto, resultado do movimento de troca, mas esse próprio movimento enquanto objeto. O capital encontra seu propósito no próprio movimento, seu único proposito é o alvo abstraído do objetivo como objeto de satisfação. O alvo da circulação capitalista não é o objeto de satisfação (valor de uso), mas a satisfação enquanto objeto (mais-valia), para usar a formulação de Jacques-Alain Miller.
A troca simples tem sua medida na necessidade, e atinge seu objetivo quando o movimento termina com a compra do objeto de satisfação. O movimento do capital, por outro lado, livra-se da posse desse objeto (aqui, o objeto é comprado apenas para ser vendido). Ele atinge seu alvo evitando seu objetivo; ele atinge a satisfação sem atingir o objeto da satisfação. Essa separação do objetivo do alvo, essa divisão pertencente a pulsão, é o que introduz o princípio da repetição apropriado. Pois a satisfação é possível apenas sob a condição da perpétua valorização do valor. O processo é encontrado apenas quando o dinheiro (D) é valorizado, e, então, enriquecido por um excedente (D’) e esse excedente, esse suplemento excessivo da mais-valia, essa satisfação como objeto é precisamente aquilo que funciona como o objeto de repetição propriamente, repetição como a impossibilidade da repetição. Como vimos, o processo de circulação – D-M-D’ não funciona sem o excedente. Tão logo privamos esse movimento do incremento de valor, perdemos a própria repetição, que só pode operar sob a condição da discordância quantitativa entre os dois extremos (D e D’), somente sob a condição de uma “falha” na repetição, isto é, apenas ao preço da impossibilidade de afirmação.
Assim, o proposito da circulação capitalista não é dinheiro, mas o excedente como a alavanca do movimento da pulsão. Por trás das formulas propostas da fantasia ($ ♢ a) e sua inversão perversa (a ♢ $), encontramos a formula da pulsão. Além da fantasia incestuosa de uma concepção virgem do capital, de seu força produtiva, além do fetichismo do capital e sua inversão evidencialistíca-perversa, encontramos a formula da pulsão, que Lacan escreve como $ ♢ d, onde “d” figura como a demanda, a formula coloca a pulsão em um domínio estritamente além da demanda. Se uma vez mais concebermos o dinheiro como uma demanda capaz de pagamento, “d” de demanda pode ser substituído por D de dinheiro. O objetivo da pulsão do capital se assenta além do dinheiro e de sua luta por aquilo que “no dinheiro é mais que o próprio dinheiro”, o puro incremento de valor, o objeto parcial derivado de um vertiginoso, repetitivo e circular movimento:
S ♢ D’
D ← a
Essa formula faz um claro contraste à matrix fetichizada do capital, apoiada por sua fantasia parthenogenética. Dessa perspectiva devemos, uma vez mais, olhar a forma da troca simples de mercadoria, cuja suposta medida é a satisfação da necessidade, a realização do objeto de satisfação, em um claro contraste com a circulação do capital, que aponta para a satisfação como objeto além do objeto de satisfação.
A formula da circulação simples de mercadoria nunca se mantém por si mesma. Antes, ela está sempre-já de joelhos perante a outra formula, da circulação do capital. A lógica de consumo é infectada pela lógica da acumulação; uma demanda (significante) sempre-já ajoelhasse perante a necessidade, e a coloniza com uma semente de desejo. No momento em que isso é introduzido, a lógica da valorização capitalista essencialmente altera o proposito e a dinâmica da circulação simples de mercadorias, ligando-se a isso como um suplemento irredutível. “Em uma propaganda”, escreve Mladen Dolar,
toda mercadoria aparece como mais do que um mercadoria, e o objeto da propaganda é precisamente a encenação desse “mais”. Isso nos oferece uma aura intocavel que adere a materialidade da mercadoria promovida, que, entretanto, está além de seu “valor de uso”, além da necessidade que a mercadoria poderia satisfazer. A satisfação que ela oferece é precisamente a promessa de satisfação; ela nos oferece a própria promessa como satisfação, perpetuando então o desejo que ela pode sustentar apenas através de mais novas promessas.
O princípio-guia, a alavanca escondida (ou nem tanto) da realização da necessidade capaz de pagamento, nunca é simplesmente o valor de uso como tal, o objeto de satisfação, mero consumo de uma mercadoria, mas antes o excedente de sua utilidade, o “em uma mercadoria mais do que a própria mercadoria”, aquele excesso particular que está além da necessidade e que motiva o desejo consumerista. Consequentemente, a logica de valorização do capital atinge a própria esfera do consumo; o último não é simplesmente externo ao primeiro, mas, de fato, implica na continuação de sua lógica por meios diferentes. A esfera do consumo se conforma, ou se adapta, à esfera da circulação, o consumista se comporta como um capitalista, mirando não o consumo de uma mercadoria como um valor de uso, mas, ao invés, ao consumo de excedente, ao mais-consumo além dos gastos econômicos. O discurso do marketing vende excedentes, promete satisfações, que entretanto nunca são do tamanho das necessidades: a promessa de satisfação é reduzida à uma “promessa como a própria satisfação”, para citar mais uma vez a precisa formula de Mladen Dolar.
A noção de mercadoria como uma “promessa de satisfação” abre uma conexão conceitual de certa forma negligenciada. O crédito é definido precisamente como uma “promessa de pagamento”. Não seria a mercadoria uma “promessa de satisfação” ou uma “promessa de satisfazer”, uma espécie de mercadoria-crédito, que coloniza cada mercadoria com sua promessa espectral de mais-satisfação? E a propaganda não funciona como um tipo de nota promissória de marketing, desprovida de qualquer ato de compra? Em principio, as companhias de marketing funcionam como bancos, criando do nada crédito, como uma promessa de pagamento. A única diferença é que os bancos de marketing não criam dinheiro, mas mercadorias-crédito, necessidades de crédito; eles nos oferecem uma promessa de satisfação atada à forma natural de uma mercadoria como seu mais-crédito. (O consumo consiste em uma espiral de promessas: mercadorias satisfazem uma promessa de satisfação e são pagas com uma promessa de pagamento.) O termo “promessa de satisfação” engloba a logica do desejo situada no espaço comum entre promessa e cumprimento. O desejo se apoia em uma promessa de cumprimento, que, entretanto, nunca passa ao cumprimento da promessa, mantendo então o desejo estruturalmente sem cumprimento. Mas, essa dinâmica do desejo é inerentemente redobrada com a lógica da pulsão, que não se baseia na promessa de satisfação mas é satisfeita pela própria promessa:
Junto de todos novos gozos cintilantes eles sempre tentam nos pegar com o velho gozo, avarento, o excedente que não é pretendido para consumo mas para acumulação. Juntos com os adicionais – as novas vantagens e gozos – também compramos o valor negativo, isto é, o que se economiza. A economia é o excedente do excedente: o primeiro excedente aparece como “ainda mais”, encorpado no novo produto, e o segundo aparece como “ainda menos”, mesmo assim oferecendo “mais”.
A aura do mais-gozar, sua atratividade seduzindo o desejo para novas compras, estruturalmente, elimina o ato de compra, ativando assim a busca do desejo por ainda mais novos excedentes, novas promessas de uma satisfação eternamente postergada e desalocada. Aqui, entretanto, testemunhamos uma lógica diferente, um redobrando o primeiro e transformando o excedente de alavanca do desejo em objeto da pulsão. O objeto da pulsão, que não é nada além de uma incorporação literal de um vazio, é meramente uma diminuição, uma economia, decorrente do próprio movimento da troca. Justamente como crédito funciona como dinheiro, mesmo assim ele é apenas uma promessa de pagamento, então, também a promessa de satisfação já funciona como satisfação, como alavanca da satisfação da pulsão.
A dupla natureza do excedente detectado por Dolar, corresponde precisamente às formulas do presente e do roubo propostas acima. A mercadoria-crédito jaz no núcleo das mercadorias como valores de uso e promessas de mais-satisfação, uma satisfação para além da satisfação das necessidades, que tem a precisa estrutura de um presente recebido pelo cliente sem este ter pago por ele; o excedente cai no lapso do consumidor como um presente, um resultado da força produtiva do consumo:
↓ D → M’ ↑
$ ← ΔM
O esquema corresponde ao esquema do fetichismo do capital. Eu gasto dinheiro em uma mercadoria que, de qualquer forma, não é apenas um valor de uso ou uma coisa útil (M) mas também a incorporação de uma mercadoria-crédito indicada pelo pequeno índice de mais-gozar (M’), uma promessa de satisfação derivada do equivalente de troca como seu excedente (ΔM), como o “em uma mercadoria mais que uma mercadoria”. A compra é uma transformação da forma-dinheiro em forma-mercadoria de valor, que, entretanto, não apaga mas sim produz um excedente de sí próprio, o excesso de mercadoria-crédito sobre a mercadoria como um simples valor de uso. O andar de baixo do esquema é, uma vez mais, ocupado pela formula da fantasia. Assim, o andar de cima é irredutível a troca simples de mercadorias como meio de satisfação de todas necessidades; ao invés, ele sempre-já se apoia no dispositivo do desejo como seu suporte essencial, irredutível:
D → M’
$ ♢ a
Daqui, podemos nos mover ao segundo passo proposto por Dolar, que reduz essa qualidade impalpável das mercadorias em reserva. Essa alteração corresponde precisamente a passagem da lógica do presente à lógica do roubo, ou da formula do fetishismo do capital à sua inversão perversa:
D → M’
ΔM ♢ $
Comprar não significa simplesmente gastar dinheiro; a compra efetivamente funciona como um investimento nas reservas. Dinheiro não é simplesmente gasto para comprar uma mercadoria (M) mas é, ao mesmo tempo, adiantamento pela reserva, pelo pequeno excedente pertencente à forma-crédito de uma mercadoria (M’). No ato de troca, a forma-dinheiro é transformada em forma-mercadoria (D → M’); essa transformação ocorre sob as condições da troca equivalente, que significa que em princípio o comprador paga o verdadeiro valor de uma mercadoria; mas, nessa mesma passagem, um excedente é produzido, um excedente na forma de uma pura reserva (ΔM). A qualidade-excedente de uma mercadoria, marcada pelo pequeno índice (M’), é diretamente incorporada na reserva que foi feita do Outro como se fosse em um roubo elegante:
D → M’
a ♢ $
Consequentemente, o movimento do ato de troca não forma um circulo fechado de necessidade e satisfação; ao invés, forma um circulo aberto duplo. Esse circulo é atravessado por dois processos: a economia do desejo sustentada pela promessa de satisfação e o desabrochar do circulo da necessidade pela via de se estar inerentemente insatisfeito; e uma economia perversa de acumulação de reservas como um fim em si mesmo forçando-nos à perpétua renovação do ato de troca. Entretanto, justamente como o objeto do capital é irredutível a uma soma particular de dinheiro adicionada ao dinheiro avançado, como ele luta por valorização infinita, assim também o proposito da produção de reservas é irredutível à soma reservada e incorporada na forma-dinheiro, ao passo que luta por seu mero aumento, um aumento em reservas. Assim, a pulsão consumerista deve ser situada para além das necessidades:
S ♢ M’
D ← a
O objetivo do consumo se baseia além da mercadoria, e além da reserva, lutando pelo incremento, o objeto parcial derivado da própria circulação de troca. Uma vez mais, no próprio núcleo da troca equivalente está a repetição, como a impossibilidade de repetição, repetição como o bloqueio da informação, simbolizada pela impossibilidade de traduzir a forma-dinheiro (D) em forma-mercadoria (M) sem um resto (a).
[1] “Se alguém negligenciar a distinção formal entre comprar e vender, comprará uma mercadoria com dinheiro e depois compra dinheiro com uma mercadoria.” (Marx 1976, p. 248)
[2] “A circulação simples de mercadorias “vender para comprar” é um meio de uma forma de lidar com com um propósito desconectado da circulação, nomeadamente, a apropriação de valores de usos, a satisfação de vontades. A circulação de dinheiro como capital, ao contrário, é um fim em si mesmo, pois a expansão do valor ocorre apenas com esse movimento constantemente renovado. A circulação de capital não tem limites. (Ibid, p.253)
[3] Deleuze 1994, p.1
[4] A tradução do movimento de troca na circulação simples de mercadorias em termos lacanianos assinala imediatamente que o que esta em questão nisso permanece irretudível à simples satisfação de necessidades. A intervenção do significante introduz nesse movimento a instância do desejo, então, essencialmente o transformando. Aqui, encontramos o problema que Wolfgang Fritz Haug desenvolveu nos anos 70 em sua famosa Critica da Estética Mercadológica. Haug soma ao par natureza e valor da forma mercadoria de Marx a categoria da forma-estética, que é irredutívelmente atada às mercadorias como valores de uso. Mercadorias nunca satisfazem meras necessidades: aquilo que nos atraí para o consumo é precisamente o excedente de demanda (significante) sobre a necessidade, o excedente que aber o espaço do desejo. Voltarei a esse ponto.
[5] “Pois o dinheiro é precisamente a forma convertida das mercadorias, na qual seus valores de uso particulares foram extintos.” (Marx, 1976, p. 251)
[6] Ibid., p. 255
[7] O aumento incessável do valor, que o miserável busca lograr economizando seu dinheiro, é atingido pelo melhor dos capitalistas pelo meio de jogar seu dinheiro mais e mais em circulação”. O verbo ingles “to save”, diz Marx, “significa tanto reservar como resgatar. A antinomia entre o entesourador e o capitalista viu uma nova fase na atual crise, ao passo que condições favoráveis para a acumulação de capital foram criadas. A crise destronou capitalistas para meros pobres ou entesouradores, enquanto a miséria dos estados é uma suposição para salvar os capitalistas de seu buraco.
[8] Repetição “é por natureza transgressão ou exceção, sempre revelando uma singularidade oposta aos particulares subsumidos sob as leis, um universal oposto às generalidades que deram ensejo ao crescimento das leis.” (Deleuze 1994, p. 3 e 5). Aqui, Deleuze aparece proximo de Bataille, que se opõe ao excessivo desperdicio do consumo racional.
[9] Marx 1976, p. 268.
[10] “Na esfera da circulação, a valorização poderia ser possível apenas se a mercadoria é comprada por um preço abaixo e vendida por um acima. nesse caso, a soma de valor aventada pode ser aumentada, mas um ganho capitalista só é possivel se outro capitalista perder o mesmo tanto. Ao nível da sociedade como um todo, a soma de valor não mudou; ela simplesmente foi redistribuída, justamente como se um simples ato de roubo tivesse ocorrido.” (Heinrich 2012, p. 90)
[11] Pelos varios paradigmas de gozo nos ensinos de Lacan, ver Miller 1999.
[12] “Pondo de outra forma, a linguagem é uma forma e não uma substância.” (Sausurre 2011, p. 122)
[13] Quem estuda Marx costuma parar com suspeita sobre a caracterização do capitalismo como um discurso. Se abstrairmos dos mal-entendidos terminológicos, a critica usualmente se volta para clamar que para parear o capitalismo com o discurso é negligenciar sua dimensão histórica. Mas isso é precisamente o que Marx faz. Seu objetivo no Capital não é desenvolver uma teoria de um tipo especifico de capitalismo mas explicar as leis do capitalismo como tal, as formas fundamentais do capitalismo enquanto laço social. Essas leis são, é claro, históricas, meramente no sentido de que elas só se mantem operando no capitalismo, seja liderada pelos asiáticos ou quaisquer outros valores.
[14] Ver Lacan 2007.
[15] Marx 1976, p. 255.
[16] Com essa abstração nos efetivamente pegamos a formula do capital. Essa abstração não muda nosso argumento mas faz ele mais fácil para dispor o fetiche do capital em sua forma mais pura.
[17] “a forma completa desse processo (de circulação do capital) é (D-M-D’), onde D’ = D + ΔD, a soma original com um incremento. Esse incremento ou excesso sobre o valor original eu chamo ‘mais-valia’”. (Ibid., p. 251)
[18] Ibid., p. 92.
[19] O presente e o roubo são categorias essenciais da corrupção; na qual ambas se tornam inseparáveis.
[20] ?
[21] Veja a nota de roda pé 10, acima.
[22] Lacan 2006, p. 17.
[23] Não posso deixar de mencionar nesse ponto que em Diferença e Repetição Deleuze efetivamente vai além do romantismo inicial de roubo e presente, movendo-se para uma conceitualização da repetição que é muito proxima da que Marx desenvolve. O que Deleuze chama “objeto virtual” ou “objeto=x” corresponde ao conceito lacaniano de objeto petit a, que, como Real, ilude a lógica do Simbolico (ver Deleuze 1994, p. 102)
[24] “Em Freud um fetiche esconde a falta (‘castração” ao redor da qual a rede simbólica é articulada” (Zizek 1989, p. 49).
[25] A versão desenvolvida da formula do capital (D-D’) é então a seguinte: D-D-M-D’-D’’. A empresta dinheiro para B, que agora financia o processo de produção, adquirindo lucro (D’) e desse lucro repagando à A sua parte (D’’) (Ver Heinrich 2012, p. 155)
[26] Ver Zizek 2006, p. 61 e Lacan 1998.
[27] “A pulsão busca satisfação. O objeto que corresponde à pulsão é satisfação como objeto”. (Miller 1996, p. 313)
[28] Para essa precisa estrutura de negatividade implicada em repetição como impossibilidade de repetição (afirmativa), ver meu artigo (Hajdini 2014)
[29] —
[30] O leitor perceberá talvez que a primeira dessas três formulas propostas nesse artigo guarda relação com a matrix lacaniana do discurso do mestre. Eu não reivindico que o discurso do capitalismo é reduzivel ao discurso do mestre. Eu sim reivindico que chegamos a tal equação cada vez que sucumbimos ao ocultismo do fetiche do capital (e a sua mistificação da forma-salário). Eu insinuo isso no começo da presente secção dizendo que o romantismo de Deleuze do roubo e do presente implica em um certo mal-entendido paradigmático da forma do laço social. De qualquer modo, o deslocamento perverso dos elementos da fanstasia nos deu uma matrix que é irredutível a qualquer laço social, apenas de funcionar como seu suporte inerente. Essa é a fonte da insuficiência proposta pelo programa.
[31] Dolar 2012, p. 42.
[32] Ibid. p. 44.
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