Por Frederico Lyra de Carvalho via Analytica
Neste artigo discutimos as possibilidades da escuta e de uma música comunista. Contra o que chamamos de paradigma da escuta condominial, defenderemos a tese de que a escuta deve ser intrinsecamente dialética na sua relação entre indivíduo e coletivo. Em seguida sugeriremos o que seria esta música comunista e como ela pode nos aparecer.
Normalmente, quando a música e o comunismo são colocadas em paralelo, discutimos algumas manifestações bastante precisas desta arte. Ou falamos de canções engajadas, que carregam um teor político explícito nas suas letras, que tomam partido em situações precisas ou que se tornaram símbolo de um momento chave da história política de um determinado lugar, ou todas estas situações simultaneamente. É o caso, por exemplo, de Chico Buarque com os seus hinos de contestação à ditadura “Vai Passar” ou “Cale-se”, Bezerra da Silva cantando a favela e o morro carioca em “Eu sou Favela” ou “Vida de Operário” ou Luiz Gonzaga evocando a vida dos retirantes nordestinos em “Pau de Arara”. Uma outra possibilidade seria de estudarmos canções cantadas em eventos políticos e que carregam em si o mesmo simbolismo, por exemplo, de uma bandeira vermelha. O caso mais emblemático é o do Hino da Internacional Comunista, cuja letra foi escrita por Eugene Pottier em 1871 e colocada em música por Pierre Degeyter em 1888, ambos franceses, e que possui em torno de 105 versões nas mais diversas línguas [1]. Este é um caso singular de uma música que se torna universal transmitindo uma mesma Ideia para os mais diversos povos e, que de tão conhecida, bastaria um camarada assobiar a melodia para sabermos quem ele é. Uma terceira possibilidade é a de estudarmos a relação de um músico (ou grupo) com um determinado meio social. Seria o caso, por exemplo, de estudarmos Mano Brown e os Racionais MC’S em relação com a comunidade negra habitante das favelas paulistas ou da relação entre Canibal (Devotos) com o Alto Zé do Pinho, morro onde ele vive desde criança e localizado na zona norte da cidade do Recife.
Evidentemente são todas abordagens interessantes e fundamentais que devem ser estudadas com a maior profundidade. Porém, sustentamos que no primeiro caso, em que normalmente apenas as letras das músicas são colocadas em discussão, teríamos um estudo de poesia e não propriamente da música. Discutindo o significado e a mensagem da letra, a sintaxe e o seu discurso estaremos refletindo em um outro plano artístico, igualmente primordial, mas diferente. Seria um estudo no domínio da organização das palavras – da linguagem – e não da organização dos sons – musical. No segundo caso, tendo como parâmetro as quatro condições da filosofia avançadas pelo filosofo Alain Badiou, uma música como a Internacional estaria mais próxima da condição política do que da condição arte. Tal música tem a força de encarnar de forma imanente uma verdade política – o Comunismo – de tal forma que não manifesta qualquer traço de verdade artística. Em outras palavras, a sua singularidade enquanto música se manifesta no campo político em detrimento do artístico e não em uma espécie de hibridação das duas condições: uma arte-política ou política-artística. O que, à priori, não apresenta nenhum problema, afinal, se uma bandeira vermelha pode ser política, uma música-não-artistica [2] também pode o ser. Neste caso a sua força está presente no simbolismo que porta e não na música que o carrega. Mesmo que admitamos que a Internacional nos apareça como sendo uma música-política o conteúdo por ela transmitido é político e não artístico e mesmo ela se manifestando na forma de música ela pertence à condição da política pois é lá que reside a sua força, é neste campo que ela é singular. A música é só um suporte para a verdade política que a poesia carrega. É fato que é um suporte que retroativamente se tornou indispensável, pois não sabemos se apenas na forma de poesia este texto teria a força que tem. Ao mesmo tempo, sem ser um suporte para esta poesia ela seria apenas mais uma música. A grosso modo, se nem a música nem a poesia possuem verdades artísticas possíveis de se sustentar por si só, nos parece claro e cabível de de afirmar que a sua verdade está na política. Pois como condição política ela possui um vigor e verdade que continua atravessando o tempo. A terceira situação descrita, por sua vez, se aproxima muito mais de um estudo sociológico do que musical ou artístico. Em tal situação estaríamos falando das relações sociais entre pessoas, grupos e meios e não exatamente da música. Discutiríamos como um determinado grupo ou artista pode ajudar a articular o seu meio em uma configuração que ultrapassa e muito o nível exclusivamente musical. Em tal relação a música está inserida em um complexo muito mais amplo que, de certa forma, a torna apenas mais um elemento de um todo e não um objeto propriamente singular. Ela termina sendo um catalizador para uma série de ações e problemas à serem refletidos uns em relação aos outros. Sob tal perspectiva o mais importante não é a música que determinado artista faz, mas o que ele faz com a sua música.
Aqui não há julgamento de valor estético. Poderíamos e nada nos impediria de falar de maneira precisa da escuta e de todas as músicas referidas acima. Porém, não é essa nem a abordagem mais comum feita por outros estudiosos e nem a proposição deste trabalho. Imaginamos que a maioria dos estudiosos se deteriam nos pontos que assinalamos mais acima. Inclusive, algumas destas hipóteses de trabalho acima levantadas como possíveis estudos não foram ainda devidamente analisados e, no nosso ponto de vista, deveriam ser. Em todo caso, também não falaremos de uma música supostamente comunista que teria sido feita após a década de 30 na União Soviética (lembrando sempre que durante os anos 20 a criação artística neste país foi das mais importantes da sua época no mundo), na China ou no Leste Europeu do pós-segunda guerra mundial, pois, como diria Adorno (2011), “mais vale o desaparecimento da arte que o realismo socialista” (p. 85). Lembraríamos também das abordagens feitas pelos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek em seus livros sobre o compositor Richard Wagner, respectivamente: Cinqleçonssurle ‘cas’ Wagner (Cinco lições sobre o ‘caso’ Wagner) e Variation Wagner (Variações Wagner). Ambos defendem que sobretudo a ópera Parsifal deste compositor deveria ser incluída na tradição da esquerda radical e que interpretações de que esta música carregaria uma espécie de “proto-fascismo” defendidas por toda uma tradição musicológica estariam completamente equivocadas e devem ser abandonadas em prol de um olhar mais progressista em direção à música de Wagner. São livros importantes e que tentam recuperar um compositor da mais alta relevância cuja obra foi controversamente “amaldiçoada” sobretudo desde que foi apropriada e instrumentalizada pelo III Reich. Todavia, ambas as publicações tem como enfoque o enredo, a mise-en-scène das óperas e o espaço que a discussão sobre Wagner ocupa na tradição filosófica, mas pouco falam do nosso objeto: da música propriamente dita
Neste artigo vamos tentar abordar a música composta apenas de sons organizados que não faz apelo à palavra e nem serve de suporte simbiótico para uma representação extra-musical: a música instrumental. É importante destacar que falamos de apelo à palavra, pois, como diria Adorno (2007), “hoje em dia esquecemos que a voz era um material” (p. 25) musical. A voz é um instrumento como qualquer outro, cuja única diferença é a de que nascemos com ele. A voz não precisa apenas transmitir uma mensagem sob a forma de uma linguagem inteligível, pode também transmitir sons organizados [3]. Além disso, quando falamos de “música instrumental” não estamos fazendo alusão a nenhuma cultura ou espaço geográfico específico, este é, literalmente, um termo genérico que engloba toda e qualquer música que funcione por si só, se apoiando apenas na sua combinação de sons [4].
Porém, tão importante quanto falarmos desta música é falarmos da forma da escuta musical e é por essa prática que vamos iniciar. Sendo a escuta a atividade humana pela qual recebemos e interagimos com a música, se torna urgente a reflexão e crítica sobre a forma predominante com que esta se dá no mundo atual, para em seguida discutirmos alternativas para tal escuta. A condição da possibilidade da música e uma música comunista está intrinsecamente ligada à sua forma de escuta.
Paradigma da escuta condominial
A escuta padrão na atual sociedade é aquela em que colocamos um fone de ouvido ligado no nosso mp3-player ou no celular para em seguida sairmos andando pela rua, tomarmos um ônibus ou pegamos uma carona em um automóvel carregando a música conosco o tempo todo, durante toda a jornada e, por que não, mesmo no conforto do lar. Esta é uma escuta condominial. Escuta onde o fone é muro para os nossos ouvidos e com ele portando não
somos mais perturbados pelos sons ao nosso redor. É a nossa proteção contra o incomodo do outro, pois “a lógica do condomínio tem por premissa justamente excluir o que está fora dos seus muros, portanto, no fundo, não há nada para pensar na tensão entre esse local murado e o seu exterior” (Dunker, 2015, p. 52). É um mecanismo de defesa, como nos diz Dunker. Neste caso, porém, são muros voltados contra os ruídos do mundo exterior, do barulho dos grandes centros urbanos e, por que não, do barulho insuportável do vizinho, ou mesmo de um parente próximo. De uma forma contraditória “a nova fase da consciência musical das massas é definida pela hostilidade ao prazer dentro do prazer” (Adorno, 2007, p. 18). Ao anular os nossos ouvidos para o ambiente que nos cerca, anulamos também a possibilidade de refleti-lo com um dos nossos sentidos: a audição. A prática condominial de se ouvir música o tempo todo anula qualquer efeito ou razão de ser da música, todo e qualquer efeito sensível da audição. Ao mesmo tempo, essa forma de escuta relega a música “ao segundo plano, por detrás do aparelho que serve a manifesta-la” (Adorno, 2007, p. 46) e ela se torna, enquanto fundo sonoro, objeto de uma “apercepção” (Adorno, 2007, p. 10). Como o compositor John Cage já havia percebido, para a escuta musical ser completa a música precisa se misturar ao ambiente, ao ruído e à indeterminação que a mescla com o entorno e a expõe. O contraste entre os sons ambientes e o sons musicais deve ser claro para todo ouvinte, pois se é verdade que tudo pode virar música, nem tudo o é. O local onde ela acontece seja o quarto ou a maior sala de concerto é fundamental para a sua realização. Além disso, para apreciar a música devemos viver desconectados dela, usufruir de momentos de silêncio e de momentos não musicais. Diríamos inclusive que a maior parte do tempo deve ser não-musical. A música é uma exceção de momentos singulares.
Individualidade da escuta
Para o compositor e teórico François Nicolas a escuta musical é sempre imprevista. Uma aventura. A escuta musical não é exatamente um conhecimento adquirido, não é uma linguagem, ela é latente e aleatória e está ao alcance de todos. A escuta procede desta forma mesmo no mais habituado dos ouvintes. Paradoxalmente, talvez um dos problemas da escuta seria o de tentarmos demasiadamente entender ao invés de apenas escutar o que ouvimos. Esse mal entendido termina afastando parte potencial dos ouvintes que por acharem que “não entendem” nada de música não podem escutar determinadas músicas, que algumas delas são só para “os iniciados” ou que só “em outra vida poderão apreciar determinadas músicas”. Sendo toda escuta intrinsecamente surpreendente, nada disso faz sentido. Toda música é para todos. Estão equivocados todos os que não a percebem e não a propagam desta maneira. Segundo Nicolas (2014), para pensar a escuta devemos colocar a música como horizonte máximo sensível e inteligível de forma materialista e não-transcendental. A escuta se desenrola em uma “fresta da memória ao invés de abastecida de lembranças” (p. 252) e isto “então configura o contraste no qual toda música se traça” (p. 252). Esta negatividade intrínseca à escuta musical “constitui não apenas um ponto não apenas musicalmente não-presente como não-apresentável” (p. 252). Nicolas também sugere que a escuta poderia ser uma “escuta flutuante” inspirada no conceito de “atenção flutuante” avançado pelo psicanalista Theodor Reik. Esta seria uma mistura de escuta passiva e ativa que não buscaria a tudo entender mas sim seguir um fio processual discursivo, uma “pista que o ponto de subjetivação abriu” (p. 113) e que permitiria orientar
a nossa escuta. É importante frisar que em tal ação o sujeito constituído não é o público, nem o compositor ou intérprete, mas a própria música.
A filósofa Anne Boissière (2005) sugere que a psicanálise converge com a filosofia da arte em um ponto que se situaria “no nível de uma teoria da fisionomia que reconhece a não imediatez na relação entre aparência e expressão” (p. 97). Este nível, se transformado em método de interpretação “faz aparecer o que não aparecia imediatamente, colocando em causa a imediatez da expressão que decola da aparência primeira” (p. 97). Podemos por exemplo, a partir de Boissière, imaginar uma escuta próxima da forma com que Freud analisa o Moisés de Michelangelo, onde Freud observa a dimensão conflitual dos detalhes com o todo da obra e não busca uma resposta em uma suposta hermenêutica em tal matéria. Ao contrário, ele entende que mesmo se concreta, a obra nos deixa uma série de elementos em aberto e indeterminados na sua concretude. Analogamente, a escuta deixa em toda música uma série de elementos sob estrita indeterminação, o que automaticamente pede uma escuta, que abre uma nova fresta e clama por uma repetição, sempre diferente, do processo. A música é o sujeito da escuta, não procurar entendê-la não significa também apenas aceitá-la indiferentemente. A escuta deve ouvir a oposição entre os detalhes e o todo, ser conduzida por um fio que revela o discurso da música, mas sem jamais esquecer que na subjetivação desta, e talvez isto seja o mais importante, na fresta aberta da escuta, algo vai ficar irresoluto.
Coletividade da escuta
Adorno (1962) lembra que “toda música, sem exceção, provém de práticas coletivas do culto e da dança” (p. 28), e mesmo, nos recorda ele, que atualmente estejamos cada vez mais rompendo com essa coletividade, ela “diz ‘nós’ lá mesmo onde ela vive, unicamente na imaginação do compositor sem alcançar nenhum outro ser vivo” (p. 28). Neste momento porém, ela apenas se anuncia, para se tornar efetiva ela precisa se manifestar no plano sonoro enquanto música. É verdade também que “mesmo o discurso mais solitário do artista com efeito vive ainda do paradoxo que consiste a falar aos homens graças à solidão, renunciando a uma comunicação rotineira” (Adorno, 1962, p. 31). Esta escuta de resistência, importante no mundo atual, não é a escuta que vislumbramos em um mundo do comum. Porém, é importante frisar que esta é a forma que parte substancial da música criada no mundo, na atualidade, tem encontrado para se tornar viva. Na falta da percepção comum de que a música nada comunica,o recolhimento na solidão de quem a cria e escuta mantém parte significativa dela viva e, mais do que nunca, pertinente e essencial. É desta que mais precisamos. Uma escuta comum e coletiva da música não está na ordem do dia. Vivemos do paradoxo de termos potencialmente todas as músicas já registradas em fonograma ao nosso alcance mas, nos trancando em nossos condomínios, preferirmos não nos arriscar nas aventuras da escuta para além dos nossos muros. O paradigma do medo como afeto dominante no mundo contemporâneo, não por acaso, também pode ser encontrado na nossa relação com a arte musical. Há uma irreconciliável contradição entre o nós dito pela música e a escuta condominial
Dialética coletiva e individual da escuta
A escuta é coletiva e individual ao mesmo tempo. Coletiva pois deve ser realizada em locais possíveis de reunir um grupo de pessoas que juntas realizarão esta atividade. Para isso não precisamos reinventar a roda: bares, teatros, estádios de futebol, botecos, praça, pouco importa, são todos locais válidos, importantes e adequados. Além disso, não podemos nem devemos voltar atrás na tecnologia, essa escuta pode muito bem ser mecânica. Esta também pode ser coletiva e social – quem nunca comprou (ou fez download) um disco novo e chamou os amigos para tomar uma cerveja escutando-o? A música, porém, é sobretudo uma atividade humana e as imperfeições de qualquer performance aliadas aos imprevistos do ambiente em que esta ocorre são parte intrínseca da música. A performance também é uma aventura repleta de casualidades tanto para quem a executa quanto para quem a escuta. Paradoxalmente, a escuta também é individual, não nega o indivíduo. Cada pessoa recebe a música de uma forma própria. Não é algo preestabelecido. Não há duas escutas iguais. Ela é sempre subjetiva. Uma mesma música é um universo diferente para cada indivíduo. É falso o que a indústria cultural faz-nos acreditar, repetindo que cada música deve ser recebida e escutada de uma maneira específica ou que ela deve carregar consigo simbologias e significados exteriores a si própria, pois como Adorno (2007) já havia percebido há muitos anos “a liquidação do indivíduo é a verdadeira assinatura da nova situação musical” (p. 21). A música nos une no ritual coletivo da sua performance e nos separa na individualidade da nossa escuta. Ela não distingue sexos, origens, idades, profissões, classes sociais. Ela não carrega nada consigo, além de si própria. Segundo Zizek (2011), “devemos descaradamente endossar uma forma de imersão total no corpo social, uma compartilhada e ritualística performance social” (p. 371) como um “veículo para uma autoafirmação da coletividade” (Jameson, 1994, p. 125, citado por Zizek, 2011, p. 371). Parafraseando Marx (1998), a música “é um produto coletivo e não pode ser colocado em movimento que por uma atividade comum de numerosos membros da sociedade, em última análise pela atividade comum de todos os membros da sociedade” (p. 93). A música é um exemplo de uma criação que articula de maneira processual e dialética a dimensão do coletivo e individual. Uma mesma música integra um coletivo, é partilhada por todos aqueles que a recebem e é, simultaneamente, um universo singular para cada ouvinte.
Música instrumental
A música instrumental não fala apenas dela, mas não diz nada além da expressão sonora a ela inerente, “uma obra é pouco e raramente determinada pelo que gostaríamos que ela fosse” (Adorno, 2011, p. 94). Ela não serve para nada, pois “purificada de um fim em si, ela sofre com a sua inutilidade não menos que os bens de consumo sofrem por estarem subordinados a um fim” (Adorno, 1962, p. 32). Ela, assim como o proletariado, não possui nenhuma identidade à priori, “não tem pátria” (Marx & Engels, 1998, p. 98). Qualquer dedução a partir da escuta da origem geográfica ou social de determinada música instrumental pressupõe um conhecimento anterior de uma certa combinação rítmica ou melódica, ou mesmo de um certo “espirito” da música, para que esta possa ser associada a um local ou povo. O que não relativiza de forma alguma o fato de em cada canto do globo terrestre haver uma manifestação diferente dessa modalidade de música. Se compreendermos que no primeiro contato com ela, ela está nua e não-identificada ela é automaticamente universal e vai nos falar pelo que ela essencialmente é: música instrumental. Desta forma, o primeiro encontro é sempre de estranhamento e pressupõe que a escuta crie ela própria através da sua combinação sonora o caminho impenetrável do seu deciframento. O ouvinte deve “acordar uma igual atenção aos dois lados, à expressão de um pensamento sem dúvida indeterminado, mas real, e à estrutura musical” (Hegel, 1997, p. 395). Devemos ouvir a música materializar o que aqueles sons dizem, se dar conta de que não dizem nada, de que “só sem imagens seria possível pensar o objeto plenamente” (Adorno, 2009, p. 176) e que por isso mesmo ela pode ser libertadora, “ela é suscetível de reverter a vida de um homem, de reorientá-la de parte a parte” (Nicolas, 2014, p. 253). A música instrumental é simbólica na sua materialidade, imaginária na sua capacidade de transmitir uma mensagem musical e real na dimensão de que esta mensagem não é nada além de música. Como nos disse Adorno (2011), “pelo simples fato de existirem, as obras postulam a existência de uma realidade inexistente, e elas em consequência entram em conflito com a realidade inexistente deste” (p. 92).
Conclusão
Desta forma, sem de modo algum rejeitar duas formas maiores da criação humana que são as músicas que carregam consigo uma poesia ou as que estão atreladas a uma representação, a música instrumental pela sua extrema indeterminação, inutilidade imanente e capacidade de tanto expressar sem nada de preciso dizer, nos parece ser a materialização da música que carrega consigo um maior potencial emancipador. Talvez, em um primeiro momento, isso pareça muito genérico e aberto, demasiado abstrato. Não deixa de ser verdade, pois a música é matéria abstrata. Mas isso não pode limitar a nossa imaginação pois, na nossa situação política atual, na atual situação da música e da sua escuta, acreditamos que o que a música pode, como nos diz Jappe (2011) em relação à arte de uma forma geral, é “mostrar aos indivíduos um mundo superior” (p. 247) e “vislumbrar modos de vida mais elevados e essenciais” (p. 247). Mundo e modo de vida totalmente indeterminados. A dificuldade ou mesmo impossibilidade em dizer precisamente o que seria ou não uma música comunista é que ela não pode vir antes da sociedade onde ela será criada. Escutando-a podemos inventar esta. Essa música “promete o que não é e pretende objetivamente, bem que indiretamente, que se isso aparece, isso deve ser igualmente possível” (Adorno, 2011, p. 123). De sorte que, retomando a expressão de Zizek, o que a música pode nos dar, anunciando-o através da sua escuta, são sinais do futuro.
[1] Informação retirada do site: http://www.antiwarsongs.org/canzone.php?id=2003&lang=en
[2] Um outro caso mais evidente – mas na direção oposta – seria uma música para propaganda, o famoso jingle.
[3] Aqui vale uma primeira ressalva. Obviamente não estamos relativisando, de nenhuma forma, o valor estético das óperas, canções, diversas formas de cânticos religiosos, nem as diversas formas de balé e suas variantes. O objetivo deste artigo não é discutir a escuta de uma das inúmeras modalidades musicais que acreditamos ser a mais pertinente para refletirmos sobre a possibilidade de uma música e escuta comunista. Esperamos que em um futuro mundo comunista tenhamos ainda mais canções, operas e balés e, por que não, cânticos religiosos.
[4] Aqui vale uma outra ressalva. Embora não seja de forma alguma o objetivo desse estudo, acreditamos que a música, assim como as outras artes, pode expressar uma verdade artística. Mas nem toda música (na verdade uma minoria destas) atinge tal status, que, enfatizo, não vêm carregado de nenhum à priori geográfico, cultural e temporal.
Referências
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Boissière, A. (2005). L’immersion dans le détail comme méthode de l’interpretation de la culture: un possible rapprochement entre Adorno et Freud. In OLIVE, Jean-Paul (Orgs.) Expérience et fragment dans l’esthétique musicale d’Adorno. (pp. 87-118). Paris: Harmattan.
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original publicada em 2010).
_______. (2010). Variation Wagner. (1ª ed.). Paris: Nous.
1 comentário em “Por uma escuta e música Comunista”
Muito instigante o texto principalmente para o contexto político que estamos vivendo.