Por Christoph Cox e Alenka Zupančič, via Cabinet Magazine, traduzido por Daniel Alves Teixeira
“Aqui, novamente, o termo “mal radical” não se refere a algum conteúdo empírico de nossas ações ou à “quantidade de mal” causado por elas. Na minha visão, é completamente errado relacionar essa noção kantiana a exemplos tais como o Holocausto,
assassinatos em massa, massacres, e assim por diante. O mal radical não é algum ato mais horrível; sua “radicalidade” está ligada ao fato de que renunciamos a possibilidade de agir a partir de princípios. É radical porque ele perverte as raízes de toda conduta ética possível, e não porque ela toma a forma de algum crime terrível. Eu disse antes que a principal função da noção kantiana do bem é manter aberto o espaço para o incondicional ou, para usar outra palavra, para a liberdade. O mal radical poderia ser definido como aquele que fecha este espaço.”
Christoph Cox: Nos últimos anos, temos visto um acentuado retorno à “questão do mal” entre filósofos e teóricos da psicanálise. Existe algo sobre o nosso momento histórico que nos obriga a repensar o que o “mal” pode significar? Ou é a questão do mal perene, algo reprimido que continua a voltar e afirmar a si mesma?
Alenka Zupančič: A necessidade teórica de repensar o conceito do mal está ligada ao interesse mais geral na questão da ética. Em grande medida, este interesse é polêmico: A forma como a palavra “ética” tem sido usado recentemente no discurso público está fadada a provocar algumas náuseas teóricas e conceituais. Ela é usada tanto para fundamentar alguma decisão política ou legal que ninguém está disposto a assumir plenamente, ou então para manter vigilância sobre certos desenvolvimentos (da ciência, por exemplo) que parecem se mover muito mais rapidamente do que os nossos conceitos “morais” se movem. Para colocá-lo de forma simples, “ética” é pensado como algo estritamente restritivo; algo que, nas confusões e perturbações de nossa sociedade, marca um lugar para os nossos medos íntimos. Na filosofia bem como na psicanálise, ocorreu uma revolta conceitual contra esta noção de ética. A questão do mal e suas possíveis definições surgiu como reação a este quadro conceitual mais amplo.
O fato de que algo continua voltando normalmente significa que estamos lidando com uma conjunção do impossível e do necessário. O mal parece ser um candidato perfeito para tal conjunção. Porque é que este retorno está acontecendo hoje? O melhor que posso fazer para dar uma resposta geral a esta pergunta é salientar que os acontecimentos políticos, econômicos e tecnológicos do passado recente tem tido um impacto importante na nossa noção de “impossível.” O impossível tem, por assim dizer, perdido os seus direitos. No plano econômico parece como se o que antes era conhecido como uma impossibilidade econômica (ou seja, os limites que uma determinada ordem econômica coloca aos nossos projetos, bem como para a nossa vida em geral) está sendo redefinido como uma espécie de impossibilidade física ou lei natural (ou seja, como algo que não pode ser alterado de alguma forma). A explosão de novas tecnologias inspira algo que poderíamos chamar de um “otimismo desesperado.” Neste nível, parece que quase tudo é possível, mas de uma maneira que nos faz sentir que nenhuma destas possibilidades contém o que Lacan chama de Real, uma “condição absoluta” que poderia pegar e manter o nosso desejo mais do que por apenas um momento passageiro. No plano político, a queda do comunismo fez as democracias ocidentais perderem de vista suas próprias contradições e todas as alternativas são declaradas impossíveis. Então, se considerarmos tudo isso, o que você chama de retorno à questão do mal pode ser um caminho para o impossível nos lembrar de que nós ainda não acabamos com a sua necessidade.
A categoria filosófica do mal também pode introduzir alguma distância e reflexão sobre o que é – e sempre foi – uma ligação intrínseca entre o mal e o imaginário. O mal sempre foi um objeto de fascinação, com toda a ambiguidade e ambivalência que a caracterizam. A fascinação poderia ser caracterizada como sendo o sentimento estético do estado de contradição. Ela implica, ao mesmo tempo, atração e repulsão. O “Mal” não é apenas algo que abominamos mais do que qualquer outra coisa; é também algo que consegue agarrar nosso desejo. Pode-se até mesmo dizer que a única coisa que faz de um determinado objeto ou fenômeno “mal” é precisamente o fato de que ele dá corpo a esta ambiguidade do desejo e da repulsa. A ligação entre o “mal” (no uso comum desta palavra) e o imaginário surge do fato de que estamos lidando precisamente com algo que não tem nenhuma imagem. Isto não é tão paradoxal como pode parecer. Falando estritamente – e aqui eu estou desenhando mais em psicanálise lacaniana do que na filosofia – o registro imaginário é em si uma resposta à falta da Imagem. Quanto mais esta falta ou ausência é onerosa, mais frenética é a produção de imagens. Mas também (e aqui voltamos à questão do mal), quanto mais perto uma imagem chega de ocupar o próprio lugar da falta da imagem, maior será seu poder de fascínio.
Dentro da realidade tal como ela é constituída através do que Lacan chama o Imaginário e os mecanismos Simbólicos, há um “lugar da falta da Imagem”, que é simbolicamente designada como tal. Isso quer dizer que o próprio mecanismo de representação coloca seus próprios limites e designa um certo além ao qual se refere como “irrepresentável”. Neste caso, podemos dizer que o lugar de algo que não tem nenhuma imagem é designado simbolicamente; e é essa mesma designação que dota o que quer que se encontre neste lugar com o poder especial de fascínio. Uma vez que este irrepresentável é geralmente associado com a transgressão dos limites dados pelo Simbólico, ele é espontaneamente percebido como “mal”, ou pelo menos como perturbador. Vamos pegar um exemplo: Quando se trata de histórias que trazem em uma distinção clara entre o “bem” e “mal” e seu conflito, não somos apenas mais fascinados pelos personagens “maus”; é claro também que a força da história depende da força do personagem “mau”. Porque isto é assim? A resposta comum é que o “bom” é sempre de alguma forma raso, enquanto que o “mal” exibe uma intrigante complexidade. Mas o que exatamente é essa complexidade? Certamente não é sobre alguns motivos ou razões mais profundas pelos quais este “mal” é “mal”. No momento em que recebemos qualquer tipo de explicação, psicológica ou de outro tipo, de porque alguém é “mau”, o encanto é quebrado, por assim dizer. A complexidade e profundidade de personagens “maus” está relacionada ao fato de que eles parecem não ter outra razão para fazer o que eles estão fazendo senão a diversão (ou rancor) que tiram disso. Nesse sentido, eles são tão “rasos” quanto podem ser. Mas, ao mesmo tempo, essa falta de profundidade pode ela mesma se tornar algo palpável, uma presença mais maciça e opressiva. Nessas histórias, bem como no que constitui o imaginário individual ou coletivo, o mal é geralmente precisamente isto: o que empresta a sua “face” a algum vazio perturbador ” para além da representação.”
O ponto importante de lembrar aqui é que este “vazio” é estrutural e não empírico. Não é algum espaço vazio ou terra de ninguém que poderia ser gradualmente reduzida a nada ou conquistado pelo avanço do conhecimento e da ciência. O fato de que a própria ciência pode funcionar como a personificação ou o agente do mal é significativo o suficiente a este respeito. Tomemos o exemplo recente da Dolly, ou da clonagem em geral. É claro que aqui estamos lidando com uma transgressão flagrante dos limites do nosso universo simbólico. Neste exemplo, também podemos entender o que faz a diferença entre imagem e Imagem. A Dolly parece com qualquer outra ovelha; sua “imagem” é como a imagem de uma ovelha qualquer. E, no entanto, seu lugar no simbólico, ou antes, o fato de que não há lugar estabelecido para tal ser na ordem simbólica dada, dota a sua imagem com um “brilho” especial.
Portanto, a primeira coisa importante que a perspectiva filosófica (bem como a psicanalítica) pode trazer para a questão do mal é estabelecer e manter a diferença entre este vazio, que é um efeito da estrutura, e as imagens que vêm para representá-lo ou incorporá-lo. Não confundir os dois é o primeiro passo em qualquer análise de fenômenos que são referidos como “maus”.
CC: Estou interessado na ideia de que “o mal não tem imagem.” Em nosso reservatório de imagens, há uma imagem adequada do mal? Existe uma imagem do mal que “ocupa o próprio lugar da falta da Imagem”? Essas imagens que vêm à mente (monstros, o rosto de Hitler, representações do diabo) sempre parecem de alguma forma inadequada?
AZ: Vamos começar com Hitler. Provavelmente não é coincidência que os dois melhores filmes sobre Hitler sejam comédias: Ser ou não ser de Lubitsch e O Grande Ditador de Chaplin. A imagem de Hitler é engraçada. É engraçada porque é tão inadequada. No filme de Chaplin, a imagem de Hitler é a mesma que a do barbeiro judeu, o que é precisamente o ponto. Imagens de monstros e demônios são inadequados porque elas tentam “ilustrar” o mal. O ponto não é que o mal real não pode ser ilustrado ou representado, mas que nós temos a tendência de chamar de “mal” precisamente aquilo que não é representado em uma determinada representação. Quanto à questão de saber se existe uma imagem do mal que ocupa o próprio lugar da falta da Imagem, eu diria que sim, existe. É o que poderíamos chamar de ” sublime esplendor”, “brilho”, “deslumbre”, “fulgor”, ou “aura”. Ele pertence ao registro imaginário, embora não seja uma imagem, no sentido estrito da palavra; ao contrário, é o que faz com que uma determinada imagem “brilhe” e se destaque. Pode-se dizer que isso é um efeito do Real sobre a nossa imaginação, o último véu ou “tela” que nos separa do Real impossível.
Em Ser ou Não Ser, Lubitsch fornece um bom exemplo da “imagem que ocupa o próprio lugar da falta da Imagem”. No início do filme, há uma cena brilhante em que um grupo de atores está ensaiando uma peça de teatro que apresenta Hitler. O diretor está reclamando sobre a aparência do ator que interpreta Hitler, dizendo que sua maquiagem é ruim e que ele não se parece de forma alguma com Hitler. Ele também diz que o que ele vê na frente dele é apenas um homem comum. A cena continua, e o diretor está tentando desesperadamente nomear o “algo mais” misterioso que distingue a aparência de Hitler da aparência do ator que está na frente dele. Pode-se dizer que ele está tentando nomear o “mal” que distingue Hitler deste homem que, na verdade, até se parece muito com Hitler. Ele está procurando e procurando, e, finalmente, ele percebe uma fotografia de Hitler na parede, e triunfantemente exclama: “É isso! Isto é o que Hitler parece!” “Mas, senhor”, responde o ator, “essa foto foi tirada de mim.” Desnecessário dizer que nós como espectadores fomos bastante tomados pelo entusiasmo do diretor que viu na foto algo muito diferente deste pobre ator. Agora, eu diria que provavelmente não há “imagem” melhor da falta de imagem do que esta “coisa” que o diretor (mas também nós mesmos) “viu” no quadro da parede e que fez toda a diferença entre a fotografia e o ator. Deve-se ressaltar, no entanto, que este fenómeno não está ligado exclusivamente à questão do mal, mas à questão do “irrepresentável” em geral.
CC: Por que é que o mal captura a imaginação, mas o bem não? A ética parece estar ligada à ideia de que o bem é atraente, aliada do belo e, como tal, algo que solicita nosso desejo. Mas, como você sugere, o oposto é talvez mais plausível. A combinação de atração e repulsão que encontramos no mal parece, perversamente, mais atraente para nós. O que isso nos diz sobre nosso desejo e sobre a natureza do mal e do bem?
AZ: Aqui eu me volto para a ética kantiana, que rompe totalmente com a ideia de que o bem é atraente e, como tal, pode solicitar o nosso desejo. Kant chama esse tipo de atração – este tipo de causalidade – “patológica” ou não-ética. Mais ainda, Kant rejeita a própria ideia de que a ética pode ser fundada em qualquer noção do bem. Na ética kantiana, nós começamos com uma lei incondicional que não se baseia em qualquer noção pré-estabelecida do bem. A singularidade desta lei reside no fato de que ele não nos diz o que devemos ou não devemos fazer, mas só nos refere à universalidade que nós mesmos supostamente trazemos com nossa ação: “Aja somente de acordo com a máxima que você pode ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal “, diz a famosa formulação do imperativo categórico de Kant. A única definição do “bem” na ética kantiana é a de uma ação que, em primeiro lugar, satisfaz essa demanda do universal e, em segundo lugar, tem essa demanda por sua única motivação. A noção kantiana do bem não tem nenhum outro conteúdo. Somente uma ação que é realizada de acordo com a lei (moral) e só por causa da lei é “boa”. Se eu agir de acordo com qualquer outra inclinação (simpatia, compaixão, medo, desejo de reconhecimento, etc.), minha ação não pode ser chamada de ética (ou “boa”). O mal-estar que este aspecto da teoria kantiana muitas vezes provoca surge do fato de que ele rejeita como “não-éticos” não só os motivos egoístas, mas também os altruístas. Kant não afirma que o altruísmo não pode ser verdadeiro ou que ele sempre máscara algum egoísmo mais profundo. Ele simplesmente insiste no fato de que a ética não é uma questão de motivos inferiores ou superiores, mas uma questão de princípios.
CC: Lembro que, no famoso exemplo de Hannah Arendt, funcionários nazistas como Eichmann tomaram a si mesmos como kantianos a este respeito: eles alegaram agir simplesmente com base em princípios, sem qualquer consideração pelas consequências empíricas de suas ações. De que forma isso é uma perversão de Kant?
AZ: Esta atitude é “perversa” no mais estrito sentido clínico do termo: o sujeito aqui assumiu o papel de um mero instrumento da Vontade do Outro. Em relação a Kant, eu gostaria apenas de salientar o seguinte ponto, que já foi marcado por Slavoj Zizek: na ética kantiana, somos responsáveis por aquilo que nós nos referimos como o nosso dever. A lei moral não é algo que possa nos livrar de toda a responsabilidade por nossas ações; pelo contrário, nos torna responsáveis não só por nossas ações, mas também – e acima de tudo – pelos princípios sobre os quais agimos
Voltando à questão do bem, o que é mais intrigante na concepção da ética de Kant é que, estritamente falando, não há nenhuma razão (ou necessidade) para o bem ser bem. O bem não tem conteúdo empírico em que a sua bondade poderia ser fundada. O bem é bem para si mesmo; é bem porque é bem. Com esta concepção, Kant revolucionou o campo da ética. Ao separar a noção de bem de todo conteúdo positivo, preservando-o apenas como algo que mantém aberto o espaço para o incondicional, ele realizou várias coisas importantes. Aquela que deve nos interessar nessa discussão é que ele minou a oposição clássica entre o bem e o mal. Na minha leitura de Kant, isto está relacionado com o fato de que a lei moral não é algo que alguém possa transgredir. Pode-se falhar em agir “de acordo com o princípio e apenas por causa do princípio”; mas essa falha não pode ser chamada de uma transgressão. Isto tem algumas consequências importantes para a noção kantiana do mal. Deixe-me esboçar brevemente esta noção.
Kant identifica três modos diferentes do “mal”. Os dois primeiros referem-se precisamente ao fato de que falhamos em agir “de acordo com a lei (moral) e só por causa da lei.” Um detalhe técnico que vai nos ajudar a seguir o argumento de Kant: Kant chama de “legal” aquelas ações que são executadas em conformidade com a lei, e “ética” aqueles que são também realizadas apenas por causa da lei. Agora, se falhamos em agir “eticamente”, isso pode acontecer ou porque nos submetemos a motivos que nos levam para longe do curso “legal” da ação, ou porque nosso curso de ação, “legal” em si mesmo, é motivada por algo além da lei (moral). Um exemplo: Digamos que alguém está tentando me fazer dar um falso testemunho contra alguém de quem quer se livrar, e ele ameaça me ferir se eu me recusar. Se eu dar o falso testemunho, porque eu quero evitar ser ferido, isto implica a primeira configuração descrita acima. Mas também pode acontecer que eu me recuso a dar o falso testemunho, porque, por exemplo, eu tenho medo de ser punido por Deus. O que significa que eu faço a coisa certa pelas razões (Kant diria “patológica”) erradas. Minha ação é “legal”, mas não é “ética” ou “boa”. Pode-se ver imediatamente que esses dois modos de “mal” têm pouco a ver com o que nós normalmente chamamos de “mal”. Nesses casos, o “mal” simplesmente nomeia o fato de o “bem” não ter tido lugar.
Kant avança para formular um terceiro modo do mal, que ele chama de “mal radical”. Uma maneira simples de definir esta noção é que ela refere-se ao fato de que nós desistimos da própria possibilidade do bem. Ou seja, nós desistimos da própria ideia de que outra coisa além de nossas inclinações e interesses poderia ditar a nossa conduta. Aqui, novamente, o termo “mal radical” não se refere a algum conteúdo empírico de nossas ações ou à “quantidade de mal” causado por elas. Na minha visão, é completamente errado relacionar essa noção kantiana a exemplos tais como o Holocausto, assassinatos em massa, massacres, e assim por diante. O mal radical não é algum ato mais horrível; sua “radicalidade” está ligada ao fato de que renunciamos a possibilidade de agir a partir de princípios. É radical porque ele perverte as raízes de toda conduta ética possível, e não porque ela toma a forma de algum crime terrível. Eu disse antes que a principal função da noção kantiana do bem é manter aberto o espaço para o incondicional ou, para usar outra palavra, para a liberdade. O mal radical poderia ser definido como aquele que fecha este espaço.
CC: É a sua conclusão, então, que a nossa “ideologia ética contemporânea” é “radicalmente má”, na medida em que desiste da ideia do “impossível”, de qualquer coisa além do empírico?
AZ: Precisamente. É digno de nota que na Crítica da Razão Prática (1788), quando Kant fala do “empirismo na moral”, ele descreve esse empirismo exatamente com as mesmas palavras que mais tarde ele usa para descrever o “mal radical” (A religião dentro dos limites da simples razão [1793]). Um homem radicalmente mal não é alguém cuja única motivação é fazer “coisas ruins”, ou alguém que não poderia se importar menos com a lei. É, antes, alguém que voluntariamente está em conformidade com a lei, desde que ele possa obter o mínimo de benefício com isso. Na teoria kantiana (que tem pouco a ver com o que eu estava falando anteriormente em termos de “Imaginário coletivo ou individual do mal”) o mal radical refere-se apenas a duas coisas. Refere-se, em primeiro lugar, ao fato de que nossas inclinações são as únicas causas determinantes de nossas ações e, em segundo, ao fato de termos consentido que o funcionamento das inclinações são os únicos possíveis motivos de nossas ações. Este consentimento ou decisão é, na verdade, uma questão de princípio. Mas isso não implica que fazemos “coisas más” (no sentido de ações que não estejam em conformidade com a lei moral) fora dos princípios. Isso implica que, como princípio, nossas inclinações são os critérios exclusivos sobre os quais decidimos o curso de nossas ações. Estas ações podem muito bem ser “legais” no sentido kantiano da palavra. Eles podem muito bem estar em conformidade com a lei. Não precisa haver nada “horrível” sobre elas.
Eu deveria, talvez, apontar que há ainda uma quarta noção de mal sobre a qual Kant fala: o chamado “mal diabólico”. Dentro do arquitetônica da razão prática, o mal diabólico é a contraparte conceitual do bem supremo. Kant afirma que o mal diabólico é conceitualmente necessário, mas empiricamente impossível. Na minha opinião, deve-se antes dizer que esta noção é conceitualmente redundante, uma vez que, estritamente falando, ela implica nada além do que já está implícito na noção do bem supremo. Aqui eu estou eu, por assim dizer, indo com Kant contra Kant. Deixe-me explicar. De acordo com Kant, o “mal diabólico” ocorreria se tivéssemos de elevar a oposição à lei moral ao nível de uma máxima. Neste caso a máxima seria contra a lei não apenas negativamente (como é no caso do mal radical), mas diretamente. Isto implicaria, por exemplo, que nós estaríamos prontos para agir de forma contrária à lei moral, mesmo que isso significasse agir contrariamente a todas as nossas inclinações, contra nosso próprio interesse e ao nosso bem-estar. Nós transformaríamos em princípio agir contra a lei moral e manteríamos este princípio frente a qualquer coisa (quer dizer, mesmo que isso significasse a nossa própria morte).
A dificuldade que ocorre neste conceito de mal diabólico reside na sua própria definição: O mal diabólico ocorreria se elevarmos a oposição à lei moral ao nível de uma máxima (um princípio ou uma lei). O que está errado com esta definição? Dado o conceito kantiano da lei moral – que não é uma lei que diz que “faça isso” ou “faça aquilo”, mas uma lei enigmática que só nos ordena a agir em conformidade com o dever e só por causa do dever – a seguinte objeção aparece: Se a oposição à lei moral fosse elevada a uma máxima ou princípio, ela já não seria mais uma oposição à lei moral; ela seria a própria lei moral. Neste nível, nenhuma oposição é possível. Não é possível opor-se à lei moral no nível da lei (moral). Nada pode se opor à lei moral em princípio (ou seja, por razões não-patológicas), sem que ela própria se torne uma lei moral. Agir sem permitir que incentivos patológicos influenciem nossas ações é fazer o bem. Em relação a esta definição do bem, o mal (diabólico) teria então de ser definido da seguinte forma: É mal se opor, sem permitir que incentivos patológicos influenciem suas ações, à ações que não permitem que qualquer incentivo patológicos influencie suas ações. E isto é apenas absurdo.
CC: No começo, em sua discussão sobre o mal e a imagem, você descreveu o “mal” como ocupando o espaço do impossível. No entanto, em sua opinião, “o impossível” também é precisamente o espaço da ética. O que é, então, a relação entre o mal e o impossível, o mal e a ética?
AZ: Durante toda nossa entrevista, tenho falado sobre o mal em dois níveis diferentes: uma é a teoria kantiana do mal; a outra é a questão do que nós geralmente tendemos a chamar de “mal”. Sua pergunta está relacionada com este segundo nível.
Eu concordaria que o espaço da ética e o espaço do “mal” se encontram em torno da questão do impossível. No entanto, o “impossível” não deve ser entendido aqui simplesmente como algo que não pode acontecer (empiricamente), embora (como sujeitos éticos) nós não devêssemos nunca desistir dele. Eu acredito que se deve reformular o conceito do impossível, que é predominante em Kant, em termos do que Lacan chama de “Real como impossível.” O ponto de identificação do Real de Lacan não é que o real não pode acontecer. Pelo contrário, todo o ponto do conceito lacaniano do real é que o impossível acontece. Isto é o que poderia ser tão traumático, perturbador, despedaçante – mas também engraçado – sobre o Real. O real acontece precisamente como o impossível. Não é algo que acontece quando queremos, ou tentamos faze-lo acontecer, ou que pode se esperar, ou quando estamos prontos para ele. Ele sempre acontece na hora errada e no lugar errado. É sempre algo que não se encaixa na (estabelecida ou antecipada) imagem. O real como impossível significa que não há tempo ou lugar certo ou para ele, e não que é impossível que ele aconteça. Esta noção do impossível como “o impossível que acontece” é o cerne do espaço da ética. Não há nada de “mal” no impossível; a questão é como percebemos os seus efeitos, muitas vezes destruidores. A ligação que você aponta entre o impossível e o mal surge do fato de que temos a tendência de perceber, ou de definir, o próprio “impossível que acontece”, como (automaticamente) mal. Se alguém tomar essa identificação do mal com o impossível como a definição do mal, então eu iria de fato estar inclinada a dizer, “Vida longa ao mal!”