O dia da marmota

Por Sandino Nuñez, via La diaria, traduzido por Daniel Fabre

No presente artigo Sandino Nuñez debate a questão da democracia eleitoral buruguesa, baseada nos meios de comunicação, e sua lógica característica vinculada à forma dinheiro. Para Sandino, Donald Trump, candidato a presidente pelo partido republicano dos EUA, seria a própria personificação dessa lógica, intimamente ligada à democracia e ao capitalismo. “Em suma, o circo já não é mais uma coisa que distrai o povo dos assuntos públicos, mas justamente a lógica pela qual os assuntos públicos são apresentados ao povo. E agora, nessa lógica, o povo se chama massa.”


A democracia eleitoral, a democracia de massas ou a democracia dos meios de comunicação tem registrado em seu genoma, desde antes do mundo ser mundo, a cara de Donald Trump. O que devemos combater não é o advento de estranhos, certos personagens que consideramos perigosos ou excessivos; o que devemos combater é a lógica que os produz e aperfeiçoa, e essa lógica não é senão a própria democracia eleitoral de meios e massas. O circo e o espetáculo, clássico recurso de diversão e distração em relação às questões propriamente políticas, não é agora senão a lógica da própria política. Esporte, competição, números e porcentagens, o momento de orgasmo quando os adversários se medem na arena como galinhos de briga: alguém vai ganhar e alguém vai perder. Especialistas, politologos, entrevistadores, sociólogos, publicitários, assessores de imagem e administradores do visível são um exemplo muito claro de jornalismo esportivo. Dentro desse gênero, podemos batizar como “as grandes profecias do óbvio”, eles vivem de suas observações e medições, seus cálculos de probabilidade, de esticar indefinidamente as prévias e de aquecer o ambiente para, em seguida, preencher o vazio do período refratário com intervenções epilogais que glosam, comentam, analisam e voltam a nos dizer o que todos nós já sabemos, porque tudo já recomeçou.

Em suma, o circo já não é mais uma coisa que distrai o povo dos assuntos públicos, mas justamente a lógica pela qual os assuntos públicos são apresentados ao povo. E agora, nessa lógica, o povo se chama massa. O ideal desportivo da política neste estado de excitação e exacerbação permanente é o wrestling: híbrido um pouco psicótico entre luta e simulacro que expande indefinidamente em um reality show o momento do confronto e o perímetro do ring. (Pois o momento de glória nunca foi governar ou reinar, isso é óbvio, e nem sequer é o sonho de nos sentar no trono do poder sorrindo gratos aos céus). Donald Trump é um wrestler, e o que mais poderia ser? É uma espécie de superstar, sempre disfarçado e de possuído por seu boneco. Desce da limo quase que correndo para os fãs e câmeras, ensaia uma coreografia breve e contida de luta ou desafio que arranca gritos, aplausos e gargalhadas: Estou aqui para chutar alguns traseiros. Com a sua inacreditável e sobrenatural presença (Pastor evangélico? Vendedor de seguros?) Trump encarna plenamente a lógica espetacular da democracia eleitoral. Ele é o seu destino, o filho provinciano que melhor conquistou o mundo global do dinheiro. Em vão tratarão de corrigir seus sinais hipertróficos com a sobriedade dos modelitos de grife de Hillary Clinton, ou seu ar de familiaridade e conforto com a administração e o poder burocrático. O wrestler, o anjo da democracia midiática, é um outsider, não tem nada a ver e nem quer ter nada a ver com a administração ou com o estado. Além disso, existe nesse limbo infantil o que encarna a versão HD de um lutador, sua caricatura. Aí o cara pode liberar toda a densidade disso que os americanos chamam uncorrectness (“the idiot’s way of saying incorrectness”, diz o Urban Dictionary): xenofobia, racismo, machismo, provincianismo, ignorância, infantilidade. Mas não deixe que a terminação “ismo” o confunda: aqui não parece haver nada de ideologia. Seu ideal vem da nitidez, do alto pixelado: é um ideal técnico, um ideal imposto pela câmera, pela TV, pela atmosfera histerógena desesperadora de não ser senão ao ser filmado, exibido, transmitido. A lógica dos meios de comunicação já não pode viver sem os gestinhos de poder, sem as caras hiperexpressivas “à la” Pixar, sem frases de alto impacto, sem as “ideias-força”. Mas como o menino invisível de Mystery Men, que tem a propriedade redundante e paradoxal de se tornar invisível quando ninguém o vê, nada pode voltar aos trilhos. Portanto, não há nenhuma diferença entre um fascista e alguém que interpreta um personagem fascista para abastecer a economia do wrestling. O louco e o perigoso estavam aí desde sempre: ninguém tinha levado muito a sério, porque ninguém capaz de julgamento iria levá-lo a sério, e isso é precisamente o que explica que esteja aí, que tenha chegado e onde chegou. Chegou protegido pelo animus iocandi, mas aí está: um macaco fumando sobre um barril de pólvora. Ninguém acredita nas lutas ou no wrestling, todos sabemos que são bonecos e personagens, e certamente fora do palco são camaradas que se dão bem e jantam juntos. Mas um dia vemos um ator na rua e gritamos “traidor” porque bancou o Brutus no palco. É como quando jogamos com uma criança e fazemos de nossa mão uma aranha ou um polvo que aparece de repente para assustá-lo: ele sabe que não é uma aranha e, no entanto, está atento, nervoso, assustado – e então que entendemos que nós, adultos , também. Todos são, de certo modo, mas o wrestler uruguaio por excelência é, sem dúvida, Mujica: ainda me lembro de ouvir um certo intelectual montevideano não mujiquista, cujo argumento para votar em Mujica era que “as coisas iam ser mais divertidas” ou que “iria-se quebrar a mediocridade cinzenta da política”, etecetera.

Trump poderá ganhar ou não. Mas já ganhou, sempre já ganhou. Entendo, por uma espécie de pudor supersticioso, que com estas coisas é melhor não brincar, mas às vezes algo em mim deseja sua vitória: todo esse gigantesco circo que clama por Trump, em última análise, merece Trump, merece experimentar o real desta ficção. Pois o correlato deste monstro da mídia que começa a afligir democratas e liberais é a massa da estatística, com suas bandeirinhas, seus bonés e cartazes, vivendo seu perpétuo 4 de julho. E ambos se reconhecem e desejam profundamente: um a imagem do outro devolvida pelo espelho da mídia. O ar da democracia eleitoral pode ser completamente preenchido com figuras terríveis ou inócuas: não importa, ninguém os distingue. Aparecem Mujica ou Trump, figuras incorretas de alta definição, mas também, e sobretudo, Macri ou Lacalle Pou, ou Bordaberry, anjos infantis e insubstanciais da reconciliação e da bondade, que cantarolam e dançam o som abstrato e quase psicótico da verborragia contemporânea: positiva, propositiva, valores, tolerância, respeito. Os dois últimos fracassaram eleitoralmente, mas o primeiro não. E isso é o menos importante, em suma: pois se uma cabeça oca incapaz de dizer qualquer coisa que não sejam obviedades ou clichês vence as eleições nacionais, o que deveria nos preocupar não é tenham ganhado (isso nos mete em um problema prático, por assim dizer), senão que tenham sido elegidos, que sejam elegíveis. Essa é a verdadeira catástrofe: a lógica estrutural que liga a massa eleitoral com o seu objeto de desejo.

Então, proponho pensar com certa ingenuidade necessária ou inevitável. Sabemos que por trás Trump, Macri, Lacalle, etc., há dinheiro, interesses, privilégios, grupos de poder e pressão, capitais, compromissos, dívidas e inclusive ideologias, visões filosóficas, perfis de classe e blablablá. Mas também sabemos que este fundo não é tão claro ou tão nítido nas chamadas esquerdas eleitorais e isso complica o raciocínio: as esquerdas terminam por serem mais funcionais, mais ajustadas ao ideal técnico das democracias administrativas, de gestão ou gerencia do capital (como se a lógica do capital fosse um saber do real). Mas, paradoxalmente, isso também põe a esquerda mais perto de uma intervenção no espaço público, uma intervenção técnica e angelical que limpe um pouco este ar absurdo, carnavalizado e circense que já arrastou as formas institucionais da política. Então quero sugerir algumas mudanças no jogo eleitoral, cuja superficialidade ou ingenuidade poderia ser apenas aparente. Temos que acabar com vergonhoso curso ilimitado da campanha eleitoral. Temos que extirpar esse tumor nocivo e obsceno. Em princípio, devemos conseguir a reunificação dessa metástase espalhadas instâncias eleitorais: internas, presidenciais, legislativas, municipais. Certamente temos que abolir o segundo turno das votações (temos que recuperar certa dignidade intelectual que nos permita separar o jogo da realidade: se a lógica é a do aumento do jogo e da competição, para poder ir muitas vezes a 18, excitadíssimos com nossas bandeirinhas, poderíamos acrescentar à votação uma espécie de play-off ou tie-break). Assim, a rigor, não haverá campanhas eleitorais, no sentido mais positivo e bobo do termo. Não haverá propaganda eleitoral. Não haverá cartazes, nem logotipos, nem heráldica, nem jingles, nem slogans. Estarão proibidos. E a mais ínfima profanação do espaço público (incluindo o espaço eletrônico virtual) será sancionada com propaganda eleitoral. Os candidatos ou partidos poderão expor ou explicar (ou mesmo expressar) seus programas ou suas tendências, gratuitamente, em espaços pautados (e distribuídos igualitariamente, de forma independente do tamanho ou do potencial eleitoral do partido ou candidato) na imprensa (televisão, mídia impressa, rádios, meios eletrônicos). Mas ninguém poderá cobrar por serviços relacionados a campanha eleitoral. Merecemos um mundo no qual não tenhamos que suportar a violência dos outdoors com caras bonitinhas, sonhadoras, graves, comprometidas ou responsáveis dos candidatos ou a agressividade do volume, das musiquinhas, dos jingles,  das frases e dos slogans, a invasão de palavrinhas e pequenas canções (tuites) cansativas, absurdas e irresponsáveis (“pense positivo”, “ei, vote no Ney”, “Abreu cresce”, “o futuro é agora”, “o Uruguai queremos todos”, “prepare seu coração”, “vamos Uruguai”, etc.). A maturidade intelectual de uma sociedade deveria ser medida em termos de sua capacidade de limpar o político-público desta invasão estúpida do privado e do imaginário pelo mercado. Merecemos uma sociedade em que uma ideia (política, no caso) não esteja empurrada, urgida, endividada com a ansiedade competitiva, com a necessidade de agradar ou de impressionar, ou de ser divertida ou hipernítida, ou de se resignar a não exigir mais que um par de minutos de atenção débil do disperso mental que a dirige. Por outro lado, e para apresentar as coisas de uma fase prática: quem gostaria de calcular as quantidades obscenas de dinheiro que correm a cada quatro anos por detrás dos votos, das listas, das caravanas, das cobranças publicitárias na TV, rádio ou imprensa, dos pesquisadores e seus macacos sábios em PowerPoint, das agências de publicidade, dos assessores e criadores, dos jingleiros e poetas, designers gráficos, do papel, dos impressos, do aluguel ou da compra de locais ou carros ou ônibus, dos contingentes de não-militantes que distribuem listas ou penduram cartazes?

O voto, isso que tendemos a associar espontaneamente com o civilismo e com a maturidade pública, etc., é na verdade a forma dinheiro do mundo da democracia eleitoral de meios e massas: se muda por tudo porque não significa nada. E esse fetiche não será abolido com estas medidas, isto está claro. Algum dia teremos (não se trata de um “algum dia” empírico) uma prática política que não seja entendida em termos eleitorais, partidários, ou de Estado, ou que não esteja degradada como um simples meio ou uma técnica instrumental para conquistar algum objetivo. Mas enquanto isso, a formalidade ingênua dessas medidas – inclusive sua retórica explícita de interdito e proibição – aponta diretamente para um jogo e um mercado que já adquiriu faz tempo uma certa autonomia, alegre e festeira, mas ao mesmo tempo empresarial, tende a psicotizar o mito de refundação do social a cada quatro anos, como na anedota de O dia da marmota – quer dizer, nem sequer nos permite pensá-lo como mito, para poder criticá-lo: faz muito barulho. Então suponho que é necessário atacar esse ponto: talvez repercuta em outros pontos, e logo em mais outros. Já vivemos em uma bonita e plena sociedade em que tomar A Bastilha é uma metáfora de ir fazer compras em um shopping center em uma espécie de coreografia que liga amorosamente todo o bairro e toda a cidade. Agora pensemos que essa idiotice é exatamente a mesma quando vamos votar.


Para saber mais sobre o autor: Capital sem Capitalismo parte I e parte II

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1 comentário em “O dia da marmota”

  1. Extremamente rebuscado, cheio de poréns finalizando com um conteúdo censuratório da liberdade. Este artigo não está inserido no direito à liberdade, de decidir por sí, mas mostra, claramente, que está a serviço de uma agenda marxista. Lamentável perca de tempo.

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