Por Conrado Ramos via A Peste. Imagem: “Monumento ao Multiculturalismo”
Pretende-se discutir o papel da propaganda na assimilação e transformação ideológica das políticas de identidade, conhecidas sob a égide do termo multiculturalismo, na esfera da sociedade de consumo. Propõe-se a uma análise do tema que se permite localizar na tensão entre sujeito e sociedade, e que, por isso, tem por bases a psicanálise de orientação lacaniana e a teoria crítica da sociedade. Compreende-se o multiculturalismo como um sintoma das políticas pós-modernas e neoliberais que fragmentam a sociedade de consumo e multiplicam targets massificados cuja adesão cumpre à propaganda convocar, em nome das diferenças. Conclui-se que a lógica multicultural, na sociedade de consumo, compõe um totalitarismo das escolhas, tendo em vista que parte do pressuposto de que todas as escolhas estão dadas ou são possíveis dentro do próprio sistema. A escolha realmente subversiva, neste contexto, seria aquela que rompe com a própria política de identidades.
Neste trabalho [1], pretendemos discutir o papel da propaganda na assimilação e transformação ideológica das políticas de identidade – em geral conhecidas sob a égide do termo multiculturalismo – na esfera da sociedade de consumo. Propomo-nos a uma análise do tema que se permite localizar na tensão entre sujeito e sociedade, e que, por isso, tem por bases a psicanálise e a teoria crítica da sociedade.
Partimos do pressuposto de que, por um lado, o relativismo presente nas teorias de consenso – que pressupõem a realidade objetiva construída e sustentada cotidianamente a partir dos acordos e desacordos intersubjetivos, isto é, a partir da interação social cotidiana tolerante e politicamente correta entre os indivíduos membros de uma coletividade – está marcado pela ideologia do capitalismo liberal. Por outro lado, porém, o multiculturalismo passa a ser um sintoma das políticas pós-modernas e neoliberais que fragmentam a sociedade de consumo multiplicando targets massificados cuja adesão cumpre à propaganda convocar, em nome das diferenças. O multiculturalismo, assim, parece mesclar o que tem de mais avançado com o que tem de retró- grado, como, aliás, sugere Jameson (1991[1996]) quando diz que, se no modernismo ainda subsistem algumas zonas residuais da “natureza” com a qual a cultura ainda tem que se haver, no pós-modernismo “o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre” (p. 13). O mundo pós-moderno “é um mundo mais completamente humano do que o anterior, mas é um mundo no qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira ‘segunda natureza’”.
Entendemos que o espírito da queda dos universais que paira sobre as propostas multiculturais não pode, talvez, perceber o quanto ele oculta a falsa universalidade sustentada pela sociedade de consumo, ao multiplicar seus mercados. No limite da ampliação absoluta dos mercados, sua ampliação relativa associada às políticas de descartabilidade do produto e de obsolescência planejada da produção oferece as condi- ções sociais e culturais necessárias ao crescimento econômico dos donos do capital.
Parece-nos difícil, nos dias atuais, imaginar uma sociedade multicultural que não se regule pela justa distribuição do direito à comunicação e por uma concepção de realidade fundada numa construção social compartilhada e harmônica. A extração dos pólos de poder tirânico e de tradições universalizadas aparecem no horizonte como o telos de uma organização social cuja totalidade se constituiria como efeito e não como causa ou determinante da existência dos particulares diversificados. No que isso contém de uma aposta do pós-modernismo podemos encontrar também, com a merecida desconfiança, o retorno pela porta dos fundos da ideologia do capitalismo liberal calcada na construção de uma sociedade pela associação contratual de indiví- duos livres [2]. Além disso, no telos essencialmente comunicativo da sociedade multicultural não cabe pensar naquilo que a psicanálise insiste em mostrar como irredutível e resistente à simbolização plena. O ideal da comunicação transparente necessário à sociedade multicultural nega o inconsciente. Não à toa Zizek vai colocar nisso que é negado, a partir do estatuto lacaniano de real, o próprio cerne da verdadeira universalidade. Como define Dunker:
Temos assim uma figura da universalidade, o real, que está destituída de sua força habitual de determinação. Ou seja, uma noção de universalidade que não é sinônimo de um sistema como totalidade consistente sobre o qual se possa montar para dirigir a história. (2005, p. 67)
A exterioridade lógica do universal em relação ao particular ou, noutros termos, o universal como negatividade, podemos encontrar já em Adorno (1966/1992) para quem:
O objeto abre-se a uma insistência monadológica que é consciência da constelação na qual ele se encontra: a possibilidade de um mergulho no interno necessita daquilo que é externo. Mas uma tal universalidade imanente do singular é objetiva apenas como história sedimentada[3]. (p. 166)
Devemos lembrar, ainda, que Adorno situa justamente no campo da identidade, enquanto negação que é da negatividade, o fundamento da própria ideologia:
O que é é mais do que é. Esse mais não lhe é atribuído, mas lhe permanece – enquanto aquilo que lhe é recalcado – imanente. Desse modo, o não-idêntico seria a identidade pró- pria da coisa contra suas identificações. (ADORNO, 1985, apud DUARTE, 1993, p. 67)
Desse modo, se consideramos o universal como negatividade, a dinâmica das identidades do multiculturalismo pós-moderno se vê retirada do campo da dialética, a não ser que se entenda como “dialética” a escolha entre posições dadas, ou seja, a seleção, ou mesmo construção, de possibilidades identitárias diferentes dentro de um mesmo sistema de relações e regulações. De certo modo, considerar o universal como negatividade não nos permite sequer considerar a escolha entre posições divergentes, isto é, não se trata de identificarmos a ideologia à posição A ou à posição não A e formularmos uma escolha baseada na adequação à realidade, mas sim percebermos que a ideologia está na própria ilusão de que estamos escolhendo alguma coisa. Ao negarse, portanto, o universal como negatividade, ao contrário do que pode parecer, não se afirma a particularidade, mas sim se dá ao existente o estatuto falso de totalidade. A particularidade e mesmo a singularidade só podem advir da contradição, cuja forma de negação está para além da diferença e da divergência, que no fundo são negatividades aparentes, imaginárias, isto é, dispositivos de ajustamento em uma realidade na qual supostamente tudo pode ser simbolizável e tornar-se positivo.
É na esteira do universal como negatividade que podemos recorrer ao conceito lacaniano de sujeito. A respeito disso Zizek (apud SAFATLE, 2003) afirma:
[…] o sujeito é inerentemente político no sentido que “sujeito”, para mim, denota uma partícula de liberdade, já que ele não fundamenta suas raízes em uma substância firme qualquer, mas que se encontra em uma situação aberta. (p. 183)
E Safatle (ibid.) conclui ao comentar o mesmo autor:
O sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a seus papéis e identificações sociais, já que seu desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as representações de gozo. (p. 183)
Elementos dessa ontologia negativa também já estão presentes em Adorno (1955/1967) quando ele escreve que “toda imagem do humano é ideologia, salvo a negativa” (p. 84).
É por isso que, do ponto de vista da psicanálise, a suposição de que tudo pode ser positivado, isto é, simbolizável, permite-nos denunciar um processo de negação do sujeito enquanto real e nos leva ao compromisso ético de localizar seus efeitos nefastos.
Os processos de instrumentalização do gozo presentes nos enunciados da propaganda, ao pressuporem a multiplicidade de identidades, abrem espaços para a ilusão da existência de uma gigantesca gama de maneiras de gozar inscritas na cultura. Essa ilusão oculta a perda de gozo consentida por aqueles que se tornam sujeitos ao entrarem no laço social. Esse gozo perdido, então, se faz presente entre as diversas possibilidades anunciadas. Saltando de insígnia em insígnia, o que quer dizer de identidade em identidade, os sujeitos crêem na enunciação de que não há gozo que não se possa encontrar pela via do laço social. As insígnias, em suas funções fálicas, localizam o gozo, mas sempre aquele que ainda não é. Nesse sentido, a política de identidades, por encontrar no falso universal do mercado (falso porque construído historicamente e válido apenas dentro do capitalismo) seu espaço de atualização (isto é, de tornar-se atual e também ato), administra os gozos possíveis, o que produz a resignação por meio da insatisfação. A resignação insatisfeita do consumidor aponta para algo que escapa à simbolização. A insatisfação resignada, nome do mal-estar contemporâneo, é a marca da própria fratura entre a rede simbólica que se pereniza por meio da pretensa contabilidade total do gozo e o sujeito desejante que dela escapa. Por sua negatividade, esse sujeito é o verdadeiro universal que a sociedade de consumo tenta apagar fazendo-o coincidir com o indivíduo portador de identidades de gozo.
Cumpre-nos questionar, aliás, a partir da psicanálise, se o sujeito tem outra identidade que não a de seu gozo, quer esse gozo encontre ou não aparelhamentos no laço social.
A sociedade de consumo, se podemos chamá-la assim, sustenta-se na enunciação de que todas as inscrições de gozo são possíveis e, se o gozo particular de um sujeito ainda não está disponível, basta que ele aguarde, pois é certo que a ciência está cuidando de inventá-lo ou de descobri-lo. A psicanálise pôde nos ensinar aqui os efeitos segregacionistas dessa enunciação que pressupõe o lugar de um pai, mas de um pai detentor de gozo (pai real) e não uma representação da lei simbólica. Segundo Dunker (2005), Zizek nomeia esses efeitos como “rapto de gozo”:
Quando todo gozo é supostamente contabilizável, a falta em gozar, produzida estruturalmente pela irredutibilidade do objeto a a suas formas simbólicas e imaginárias, é imediatamente remetida à sua expropriação pelo vizinho mais próximo e disponível. […] O objeto da segregação torna-se assim sempre a encarnação de um gozo desproporcional, injusto e excessivo, que tipicamente marca a relação paranóica trivial com o próximo. (p. 74)
É nesse sentido que Lacan (1967/2003) articulou o fascismo como conseqüência “do remanejamento dos grupos sociais pela ciência” que objetiva a inscrição e a contabilização de todo o real do gozo, concluindo que “nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (p. 263).
Os efeitos segregacionistas dos imperativos de gozo da sociedade de consumo não podem ser desconsiderados pelas políticas de identidade, mas sua consideração pressupõe as universalidades da história e do sujeito. Aqui podemos encontrar na noção de target um valor conciliador quando as diferentes inscrições de gozo são submetidas à equivalência lógica do mercado. Mas isso traz uma inesperada sentença ao multiculturalismo: a democracia, a tolerância, a correção política, o respeito e a igualdade de direitos sustentados pelo multiculturalismo só são possíveis de fato dentro das relações abstratas e universalizantes do mercado ou, noutros termos, o multiculturalismo talvez seja um fato produzido pelo discurso da propaganda (principalmente da propaganda de si mesmo) e talvez só se sustente efetivamente nele enquanto ideal e aparência que é da sociedade de consumo. Fora dela o que encontramos são relações fora da lógica da equivalência, nas quais reaparecem os preconceitos, as segregações, os fundamentalismos, os campos de concentração…
Aliás, o caráter abstrato, aparente e mesmo virtual das teorias multiculturalistas, assim como do pensamento pós-moderno em que se sustentam, pode e deve ser concretamente remetido, enquanto ideologia que é, às razões materialistas das quais é o mero reflexo no campo das idéias. Assim, encontramos em Kurz (2002) a seguinte crítica que remete a racionalidade pós-moderna à sua correspondente lógica econômica:
O culto pós-moderno da ambivalência, da virtualidade e do “trabalho imaterial” se apaixonou pelo imperialismo norte-americano. Após o atentado terrorista de 11 de setembro, as ex-esquerdas radicais também descobriram seu amor pela bandeira estrelada e pelos “valores ocidentais” representados pelos EUA, embora esses valores não tenham substância em termos morais, assim como o capital de bolhas financeiras em termos econômicos. Mesmo em suas variantes pseudo-oposicionistas, a consciência virtualizada dos consumidores frenéticos de mercadorias pressente que sua própria forma de sujeito tem a ver com a pseudo-economia dos EUA.
Além disso, podemos encontrar em Hobsbawm (1995) indicações históricas de conflitos e diversificação étnica e racial das classes trabalhadoras, associados tanto ao desmoronamento do bloco trabalhista quanto à migração em massa de operários a partir dos anos 70. Escreve o autor que, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, “a combinação de boom secular, pleno emprego e uma sociedade de autêntico consumo de massa transformou totalmente a vida dos operários nos países desenvolvidos” (p. 301). E conclui Hobsbawm (ibid.):
[…] vários fatos importantes alargaram as fendas entre diferentes setores das classes operárias, embora isso só se tornasse evidente após o fim do pleno emprego, durante a crise econômica das décadas de 1970 e 1980, e depois da pressão do neoliberalismo sobre as políticas assistenciais e sistemas “corporativistas” de relações industriais que tinham dado substancial proteção aos setores mais fracos dos trabalhadores. Pois a ponta de cima da classe operária – os trabalhadores qualificados e supervisores – se adaptou mais facilmente à era da produção moderna de alta tecnologia, e sua posição era tal que eles podiam na verdade se beneficiar de um livre mercado, mesmo quando seus irmãos menos favorecidos perdiam terreno. (p. 301-302)
Pois bem, Hobsbawm nos dá razões suficientes para buscar na própria luta de classes a origem histórica da fragmentação e da despolitização da classe trabalhadora. Julgar que o movimento multicultural é uma invenção contemporânea decorrente da queda dos universais e da falência das ideologias é justamente esconder o que ele representa da vitória do capital sobre a força de trabalho incapaz de se enxergar como classe. Que não haja mais consciência de classe isso não quer dizer que não haja mais luta de classes, mas uma política de identidades desloca inteiramente da sociedade para a cultura o terreno das contradições, modificando-o a ponto de fazer recair a negação determinada no campo das oposições coexistentes. É nesse sentido que os pensadores da Escola de Frankfurt insistem que a crítica cultural não pode ser separada da crítica social.
Sob essa perspectiva, não podemos deixar de associar a política das identidades à mentalidade do ticket que, ao organizar os consumidores em tribos e targets, oferece uma lista de produtos a serem escolhidos em bloco. A organização do mercado em tickets é um dos mais eficientes dispositivos da indústria cultural para dar ao consumidor o reconhecimento de seu pertencimento a um grupo. É desse modo que as propagandas operam contemporaneamente ao associar às marcas, mais do que aos produtos, um ticket, isto é, uma lista de produtos, comportamentos, opiniões, emoções, enfim, um estilo. Horkheimer e Adorno (1944/1991) assim resumem os efeitos da mentalidade do ticket nos processos de juízo e identificação do consumidor:
No mundo da produção em série, a estereotipia – que é seu esquema – substitui o trabalho categorial. O juízo não se apóia mais numa síntese efetivamente realizada, mas numa cega subsunção. […] Antes, o juízo passava pela etapa da ponderação, que proporcionava certa proteção ao sujeito do juízo contra uma identificação brutal com o predicado. Na sociedade industrial avançada, ocorre uma regressão a um modo de efetuação do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, do poder de discriminação. […] O percebedor não se encontra mais presente no processo da percepção. […] A falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração. (p. 188)
A “identificação brutal com o predicado”, a categorização esquematizada das diferentes formas de vida, erguida ao estatuto do estilo, transforma, dentro da lógica do consumo, os elementos estigmatizados do ticket em um “hedonismo estetizado” (ZIZEK, 1997/2005). Em nosso entender, caberia interrogar em que medida a estetização hedonista das formas de vida não vem substituir, pela via de um encantamento deslocado, o desencantamento imposto às utopias políticas ditas do período moderno, consideradas superadas pelo pensamento pós-ideológico que fundamenta as teorias multiculturais.
O romantismo revolucionário marxista, considerado como “paixão política imatura”, viu-se substituído pelo “universo pragmático pós-ideológico ‘maduro’ de administração racional e consensos negociados” (ibid., p. 23). Tal romantismo, que era universal, fragmentou-se em estetização hedonista das formas de consumo confundidas com formas de vida.
Entre os efeitos dessa fragmentação, em nossos últimos anos, temos as crises que se repetem no capitalismo financeiro e que têm se constituído nos maiores trunfos do capital, uma vez que servem de argumento e justificativa para a suspensão das políticas sociais em nome da “salvação do mundo”. De tempos em tempos, as crises recolocam em seu lugar as demandas de grupos considerados minoritários, ameaçando-os de uma catástrofe ainda maior caso não se assujeitem ao uso messiânico do dinheiro público na salvação das instituições bancárias. Ao não perceberem que a catástrofe maior é o desamparo opressivo em que vivem, resta-lhes contentarem-se com programas nãogovernamentais e paliativos cujas mudanças mínimas alcançadas visam em última instância assegurar que nada mude verdadeiramente. A fragmentação seguida da estetização hedonista de apenas parte da força de trabalho já é suficiente para “tornar as coisas fáceis para a administração”. Citemos um breve exame de Zizek (ibid.) a respeito das crises financeiras:
[…] sempre se deve ter em mente que a conexão entre “causa” (elevação dos gastos sociais) e “efeito” (crise econômica) não é de natureza causal direta e objetiva: está sempre-já encravada em uma situação de antagonismo e luta social. O fato de uma crise “realmente advir” caso não sejam respeitados os limites traçados pelo Capital não “prova”, de modo algum, que a necessidade desses limites seja uma necessidade objetiva da vida econômica. Esse fato deve ser antes interpretado como prova da posição privilegiada do Capital na luta econômica e política, como na situação em que o parceiro mais forte ameaça que, se você fizer X, será punido com Y e, quando você faz X, de fato advém Y. (p. 20)
Ironicamente, as provas dos poderes do capital são utilizadas ideologicamente como ilustração da fragilidade do corpo social, o qual é convocado a não medir esforços para evitar o pior de um esfacelamento que já vive. A verdade do corpo social fragmentado só pode vir à tona quando o poder do capitalismo financeiro tem que parecer mentira. A união da sociedade só interessa à socialização dos prejuízos. No mais, sua fragmentação deve ser incentivada para que a privatização dos lucros não provoque um renascimento da consciência de classe. O capitalismo financeiro movido a bolhas e crises não seria possível sem o multiculturalismo: uma classe trabalhadora que pudesse compreender-se como tal jamais admitiria o uso do dinheiro que milagrosamente aparece nos cofres públicos quando se trata de socorrer bancos privados.
De acordo com Zizek (ibid.) o capital globalizado aos poucos retirou o papel colonizador do Estado-nação, transferindo-o para a empresa global, de modo que todo país passa a ver-se na condição de colonizado. O multiculturalismo é a ideologia do capitalismo global de países colonizados sem país colonizador, nos quais todas as populações se tornam nativas. Se em sua origem histórica o multiculturalismo propôs uma resistência aos nacionalismos, devemos questionar se ele hoje não estaria levando, paradoxalmente, a uma purificação dos nacionalismos enquanto afirmação de identidades primordiais esvaziadas de suas relações com princípios universais e transformadas em segunda natureza. É preciso investigar se não há, obscuramente, elementos fascistas justamente nos efeitos antifascismo propostos pelos ideais do multiculturalismo. Com a formalização crescente do Estado-nação – por força do capital globalizado e das relações de produção pós-fordistas – e a sua crescente transformação em universalidade abstrata, os indivíduos ficaram jogados à busca da reafirmação, num segundo nível, de identidades imediatas, orgânicas e espontâneas, amparados pela ficção hegemônica de uma tolerância multicultural sustentada no respeito e na proteção dados pelos direitos humanos, compreendidos de modo técnico-administrativo e não ético-universal.
A posição multicultural não é em si mesma cultural. Se todas as culturas, por merecerem consideração e respeito, devem se equivaler topologicamente, o lugar da mirada multicultural, no entanto, se coloca fora dessa equivalência. Para Zizek (ibid.) esse lugar é um “ponto vazio da universalidade”, uma “posição universal privilegiada”, um “racismo que esvazia sua própria posição de todo conteúdo positivo” (p. 33) afirmando uma superioridade. Certamente, tais considerações merecem mais reflexão, mas tendemos a pensar que o lugar supostamente ocupado pela propaganda e seus administradores de combos, tickets e targets se assemelha a esse apontado por Zizek. Por outro lado, o peso topológico da equivalência das culturas colocadas sob a aposta em um princípio de regulação consensual e comunicativa, e as conseqüências nas quais insistimos – a redução das diferenças à lógica do target na sociedade de consumo –, levam-nos a crer, não na recuperação das raízes culturais, mas na perda das mesmas: uma vez que as culturas são submetidas ao relativismo de suas posições estruturais enquanto elementos distintos entre si, isto é, um em relação ao outro, não é mais necessário que façam referências a si mesmas enquanto sentido, conteúdo e tradição. Diante disso, concordamos com a conclusão de Zizek (ibid.):
A conclusão a ser tirada é que a problemática do multiculturalismo – a coexistência híbrida de diversos mundos da vida culturais – que hoje se impõe é a forma de aparecimento do seu oposto, da presença maciça do capitalismo como sistema mundial universal: atesta a homogeneização sem precedentes do mundo contemporâneo. De fato, já que o horizonte da imaginação social não mais permite que alimentemos a idéia de que o capitalismo um dia desaparecerá – pois, como se poderia dizer, todos aceitam tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar –, é como se a energia crítica tivesse encontrado uma saída substitutiva na luta pelas diferenças culturais que deixa intacta a homogeneidade básica do sistema mundial capitalista. (p. 35)
Para exemplificarmos o crivo orgânico-relativista-estrutural ao qual a cultura, extraída do quadro de suas determinações sociais e políticas, é submetida, selecionamos alguns trechos de reconhecidos teóricos pós-modernos.
Comecemos com Jean Baudrillard (1970/2005) e sua análise dos objetos de consumo:
Raros são os objetos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objetos que os exprimam. Transformou-se a relação do consumidor ao objeto: já não se refere a tal objeto na sua utilidade específica, mas ao conjunto de objetos na sua significação total. A máquina de lavar roupa, o frigorífico, a máquina de lavar louça, etc., possuem um sentido global e diferente do que têm individualmente como utensílios. A montra [vitrine], o anúncio publicitário, a firma produtora e a marca, que desempenha aqui papel essencial, impõem a visão coerente, coletiva, de uma espécie de totalidade quase indissociável, de cadeia que deixa aparecer como série organizada de objetos simples e se manifesta como encadeamento de significantes, na medida em que se significam um ao outro como superobjeto mais complexo e arrastando o consumidor para uma série de motivações mais complexas. [colchetes nossos] (p. 17)
O mesmo caráter orgânico, estrutural e sistemático podemos encontrar em JeanFrançois Lyotard (1979/1989) em sua leitura do si enquanto experiência particular do indivíduo inserido na agonística do vínculo social pós-moderno:
O si é pouco, mas ele não está isolado, ele está inserido numa textura de relações mais complexa e mais móvel que nunca. Ele está sempre, jovem ou velho, homem ou mulher, rico ou pobre, situado em “nós” de circuitos de comunicação, nem que sejam ínfimos. É preferível dizer: situado em lugares pelos quais passam mensagens de natureza diversa. E ele nunca está, mesmo o mais desfavorecido, destituído de poder sobre as mensagens que o atravessam ao posicioná-lo, quer seja no lugar de destinador, que no de destinatário, quer no de referente. Porque o seu deslocamento em relação a estes efeitos de jogos de linguagem (compreendeu-se que é deles que se trata) é tolerável, pelo menos dentro de certos limites (sendo estes todavia vagos), e mesmo suscitado pelas regulações e sobretudo pelos reajustamentos de que o sistema se afeta a fim de melhorar as suas peformances. Pode-se mesmo dizer que o sistema pode e deve encorajar essas deslocações, por ter de lutar contra a sua própria entropia, e que uma novidade correspondente a um “lance” inesperado e ao deslocamento correlativo de tal parceiro ou de tal grupo de parceiros que se ache implicado pode trazer ao sistema o suplemento de performatividade que ele não cessa de procurar e de consumir. (p. 41)
Um terceiro exemplo que queremos dar de como a sociedade de consumo pode ser ideologicamente revertida na libertação do indivíduo, inclusive para além de seus pertencimentos culturais, podemos encontrar em Gilles Lipovetsky (1983):
Consumo de massa: a despeito da sua incontestável verdade, a fórmula não é isenta de ambigüidade. Sem dúvida, o acesso de todos ao automóvel ou à televisão, ao blue-jean e à coca-cola, as migrações sincronizadas do week-end ou do mês de Agosto designam uma uniformização dos comportamentos. Mas esquecemo-nos demasiadas vezes de considerar a face complementar e inversa do fenômeno: a acentuação das singularidades, a personalização sem precedentes dos indivíduos. A oferta em abismo do consumo desmultiplica as referências e modelos, destrói as fórmulas imperativas, exacerba o desejo do indivíduo de ser plenamente ele próprio e de gozar da vida, transforma cada um num operador permanente de seleção e de combinação livre, é um vetor de diferenciação dos seres. Diversificação extrema das condutas e gostos, amplificada ainda pela “revolução sexual”, pela dissolução das compartimentações sócio-antropológicas do sexo e da idade. A era do consumo tende a reduzir as diferenças desde sempre instituídas entre os sexos e as gerações e isso em proveito de uma hiperdiferenciação dos comportamentos individuais hoje libertados dos papéis e convenções rígidas. (p. 101)
Na mesma linha da hipermodernidade de Lipovetsky, podemos encontrar os argumentos de Pierre Lévy (1996):
A transparência crescente de um mercado cada vez mais diferenciado e personalizado permite aos produtores ajustar-se em tempo real às evoluções e à variedade da demanda. No limite, pode-se imaginar um acoplamento em fluxo tenso entre redes de “retromarketing” e fábricas flexíveis, a pilotagem da produção passando quase inteiramente às mãos dos consumidores […]. (p. 63)
Por fim, queremos ainda ilustrar a estetização da fragmentação fluida e móbil das classes sociais como superação do princípio de individualização, para o que citamos Michel Maffesoli (1985/1998):
[…] contrariamente à estabilidade do tribalismo clássico, o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, as reuniões pontuais e a dispersão. É assim que podemos descrever o espetá- culo das ruas das megalópoles modernas. O adepto do jogging, o punk, o look retro, o bom moço elegante, os “apresentadores de televisão” nos convidam a uma viagem incessante. Através de sedimentações sucessivas, se forma um ambiente estético. E é no interior desses ambientes que regularmente podem ocorrer estas “condensações instantâneas”, frágeis, mas que naquele momento são objeto de um grande investimento emocional. É esse aspecto seqüencial que permite falar de superação do princípio de individuação. (p. IV do Prefácio à segunda edição)
Cumpre notar nos exemplos citados que as contradições desaparecem em nome das diferenças compreendidas num todo funcional complexo e reticular, ou, como propõe Zizek (1997/2005), “tanto a Terra (como Gaia) quanto o mercado global são vistos como gigantescos sistemas vivos auto-regulados cuja estrutura básica é definida em termos do processo de codificação e decodificação, de transmissão de informações” (p. 22). As supostas neutralidade política do processo comunicativo e equilibração não-classista das diferenças culturais ou das particularizações de consumo revelam o apelo de tais pensamentos a uma lógica sem universais, antagonismos e negatividades. A dimensão do político desaparece por trás de concepções como estruturas complexas, circuitos de comunicação, jogos de linguagem, diversificação combinatória de vetores de diferenciação, fluxos de redes flexíveis, sedimentações sucessivas de ambientes estéticos e condensações grupais instantâneas. A cultura reduzida aos processos puramente simbólicos de deslocamento e condensação exclui quaisquer possibilidades de localização do não-idêntico e da opacidade que caracteriza o real com o qual a política deve lidar se quiser evitar seus efeitos como retorno sintomático.
A sociedade é afirmada pela composição das diferenças mais ricas numa montagem otimista e entusiasmada que faz da aparência ideológica da sociedade de consumo a realidade viva e epidêmica cuja metáfora mais justa seria a da cultura enquanto colônia de bactérias em franca proliferação. O sujeito, por sua vez, desaparece microscopicamente inserido na fermentação de gozo que essa realidade promete. A redução das singularidades, quer à personalização virtualizada, ou a sedimentações de ambientes estéticos, ou ainda a hiperdiferenciações comportamentais, revela um grande esforço para dar um mínimo de vida e uma aparência de poder de decisão às identidades resultantes das adesões aos targets oferecidos pela indústria cultural (cuja “pilotagem da produção”, a nosso ver, está longe das “mãos dos consumidores”).
Diante do reino do totalitarismo das escolhas (totalitarismo porque parte da idéia de que todas as escolhas estão dadas ou são possíveis dentro do próprio sistema) posto pela lógica multicultural, a escolha realmente subversiva seria aquela que rompe com a própria política de identidades. Vale lembrarmos aqui duas formulações que Safatle (2003) atribui a Zizek. A primeira delas diz: “contra uma política das identidades, uma política da universalidade da inadequação” (p. 184). A segunda é uma citação direta de Zizek: “a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas” (ZIZEK, apud SAFATLE, 2003, p. 185).
Não se trata, porém, de fazer dessa “paixão pelo real” (ZIZEK, 2003) um gozo pela estetização da violência, mas sim de não perder de vista, como princípio ético, que “a verdadeira política do Real não é aquela animada pela tentativa violenta de purificação de toda opacidade do social, mas é aquela feita em nome da irredutibilidade dos antagonismos que fundam a experiência do político” (SAFATLE, 2003, p. 190-191).
Sabemos que, de modo inverso, a foraclusão do político como universalidade produz efeitos de violência estetizada na forma arcaica do racismo. Segundo Zizek (1997/2005):
Neste sentido preciso, o racismo “pós-moderno” contemporâneo é o sintoma do capitalismo tardo multiculturalista, trazendo à luz a contradição inerente do projeto ideológico liberaldemocrata. A “tolerância” liberal fecha os olhos ao outro folclorizado, privado de sua substância – como a multiplicidade de “culinárias étnicas” em uma megalópole contemporânea; contudo, qualquer Outro “real” é imediatamente denunciado como “fundamentalista”, pois o cerne da alteridade (otherness) reside na regulação de seu gozo (jouissance): o “Outro real” é, por definição, “patriarcal”, “violento”, nunca o Outro de sabedoria etérea e costumes encantadores. (p. 23)
O “rapto de gozo” e suas conseqüências fascistas, desse modo, compõem um “delírio” paranóico resultante da economia libidinal da sociedade de consumo associada à administração da indústria multicultural, ambas herdeiras da histórica foraclusão fascista do antagonismo político, considerado em sua dimensão real do universal como negatividade.
[1] Trabalho apresentado no V Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, realizado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste, em 2008.
[2] Devemos lembrar, aliás, que essa armadilha não é recente e já capturou parte do movimento anarquista que se reconhece como “individualista” (Outhwaite e Bottomore, 1996).
[3] A tradução do trecho foi encontrada em Musse (s.d.). Na versão em espanhol temos: “El objeto se abre a una insistencia monadológica, cuando ésta es consciente de la constelación en que él se encuentra. La posibilidad de abismarse en el interior requiere de ese exterior. Pero una tal universalidad inmanente de lo singular existe objetivamente en forma de historia sedimentada” (p. 1).
1 comentário em “Do multiculturalismo como criação de novos targets: a política de identidades e a inscrição totalitária do gozo”
Republicou isso em iddeia cultura e pesquisae comentado:
As novas mídias não contemplam a felicidade dos homens.