Por Frederico Lyra de Carvalho, Lille 3/CEII
“Avançando um pouco o sinal, talvez percebamos que as lutas eram, de forma geral, uma tentativa desesperada de manter-se fora da camada dos excluídos, e, sendo um pouco cruel, poderíamos dizer que foi uma tentativa de garantir que a exploração do capital se mantenha ao menos nos moldes atuais. Do lado dos estudantes da Nuit Debout havia a tentativa de que ao menos as regras atuais durem e se mantenham de pé a tempo deles entrarem na roda. A grosso modo, era uma luta para não se tornar mais um daqueles que se fizeram ausentes.”
Este primeiro semestre de 2016 foi marcado por intensas lutas sociais e políticas que tomaram conta da França como um todo durante este período – segundo semestre do calendário escolar deles. Terem as lutas sido em todo o território é bastante significativo pois, para um país que gira em torno da sua capital, a capacidade de se expandir as lutas parece ser ainda mais complexas que em outros lugares. Não obstante, estas lutas apresentaram um caráter bastante paradoxal.
Por um lado, se voltarmos a 2015, são maiores do que poderíamos esperar – ainda mais tendo em mente os atentados no Charlie Hebdo no 07/01/2015 e o atentado do 13/11/2015. A França entra em 2016 em luto nacional e com Estado de Urgência decretado. Estado este que continua sendo o atual. Nem o governo, nem o que resta da esquerda, nem as direitas, nem os poucos movimentos sociais existentes, nem os sindicatos, nem a parcela não organizada da sociedade previu ou antecipou a intensidade que a coisa tomou. Se as lutas se intensificaram em quantidade e violência após as tentativas de empurrar goela abaixo uma nova lei trabalhista, não podemos negligenciar que elas já estava bastante vivas desde antes. Se o Nuit Debout foi a sua mais original forma (ver: Nuit Bout: de pé por todas as noites e Quem é o Nuit Debout? ) não dá para minimizar as greves e passeatas recheadas de conflitos com a force de l’ordre – o batalhão de choque deles se chama CRS que inclusive entrou na onda e fez a sua própria manifestação, apoiada pelo Front National, alegando que já estava cansada de estar lá, todo dia na rua, batendo em manifestantes (ver: A republique, manifestation de policiers) – por todo o país. Por outro lado, toda esta incrível mobilização talvez tenha sido menos do que pareceu. E isso vale tanto para a percepção dos seus principais atores, quanto para a de quem está longe, por exemplo, no Brasil. Possivelmente isso se deve a uma razão bem precisa: aqueles que já estão fora do jogo social eram os mesmo que estavam fora destas lutas. Os habitantes dos banlieu, os imigrantes – sobretudo negros e árabes – os desempregados e mesmo a enorme quantidade de trabalhadores precarizados se fizeram, em sua maior parte, ausentes. Se é verdade que, infelizmente, tais ausências não chegam a ser uma novidade, ao mesmo tempo, devido à intensidade e imprevisibilidade das lutas, lamenta-se ainda mais esta não-presença.
Se é verdade que uma parte da conta por esta ausência pode cair no governo e no seu aparato repressivo e na mídia (que não deve muito a brasileira), uma outra parte da explicação cai na conta dos próprios movimentos. Avançando um pouco o sinal, talvez percebamos que as lutas eram, de forma geral, uma tentativa desesperada de manter-se fora da camada dos excluídos, e, sendo um pouco cruel, poderíamos dizer que foi uma tentativa de garantir que a exploração do capital se mantenha ao menos nos moldes atuais. Do lado dos estudantes da Nuit Debout havia a tentativa de que ao menos as regras atuais durem e se mantenham de pé ao menos a tempo deles entrarem na roda. A grosso modo, era uma luta para não se tornar mais um daqueles que se fizeram ausentes.
Por fim, para este quadro há ainda um outro adendo. Com o fantasma do FN mais vivo do que nunca, não custa lembrar que em 2017 haverá eleição presidencial na França (entre 23 de abril e 07 de maio) e Marine Le Pen é uma das fortes candidatas. Vale também lembrar que de um tempo pra cá parte da propaganda do FN passou a ser dirigida para atores anteriormente não imagináveis. Incluindo imagens de muçulmanas vestindo o foulard e chamando-as para o front o FN deixa, de uma certa forma, as portas abertas para a identificação destes, que são parte significativa dos ausentes, com aqueles que antes (não mais?) eram seus inimigos declarados. Coincide com o movimento feito pelo partido pois, de um tempo para cá, o FN tem tentado se mostrar com uma máscara, digamos assim, “mais humana”. O agravamento da repressão do Estado às mulheres e à enorme comunidade muçulmana presente na França de forma geral, a completa não-integração que maior parcela dos adeptos desta religião sofrem neste país e a divisão social que só se agravou após os atentados do Charlie Hebdo, 13/11 e de Nice, facilitam ainda mais o discurso e a ambígua – ou cínica – posição do FN. E possibilita àqueles que foram durante décadas alvo de difamação e ameaças ferrenhas por parte do FN de repente, de forma paradoxal e entrópica, aderirem a ele, mesmo que por um segundo, ao se dividirem e renegarem a si próprios em função do medo e pela possibilidade vislumbrada de conseguir entrar em uma porta de antemão fechada. Não esqueçamos que já vimos antes filmes semelhantes em outras situações.
Agosto é férias geral na França. Esse intervalo também vale para as lutas. Porém, se as aulas estão programadas para voltar normalmente, nada garante que as lutas sejam retomadas. No início de setembro se dá a rentrée e aí saberemos o que ficou do semestre passado, o que tomou forma – se algo tomou – e o que evaporou. Saberá a esquerda francesa dar continuidade ao impulso dos meses anteriores e transformar, em um curto espaço de tempo, as suas lutas nas lutas daqueles que estão fora das lutas? Isso é bem diferente de traze-los para as lutas atuais.