Por Costa Douzinas, via Near Futures Online, traduzido por Miguel Almeida
A Esquerda no Poder? Quatro palavras atrativas. Contudo, o elemento aqui mais importante é o ponto de interrogação no final. Pois o que é que significa a Esquerda hoje enquanto ideologia e visão, como organização e partido, como movimento e governo? Não existe uma resposta única ou simples.
Não dispomos de uma receita ou de um manual a tirar da estante, de modo a ajustar à situação grega e a aplicá-los. Alguns debates recentes sobre a Grécia na Esquerda internacional têm-se vindo a caracterizar por um certo esquerdismo infantil, o qual veio a tornar o “Grexit” – um retorno ao dracma e até mesmo uma saída da UE em si – como o teste de tornassol[1] do radicalismo. Foi criado um “medidor de Esquerda”: qualquer um que não aceite o Grexit como o Santo Graal da ideologia de Esquerda é denunciado como “traidor”, “vendido”, etc. Este tipo de ataque costumava ser a taxa usualmente cobrada pelos velhos marxistas e comunistas nas lutas fratricidas do século vinte. Todavia, os repetidos falhanços teóricos e derrotas políticas dos últimos cinquenta anos deveriam ter ensinado à Esquerda que – ao invés de citar Marx e de repetir mantras autossatisfatórios – é mais importante deslindar o que Marx haveria de dizer hoje perante a difícil situação em que se encontram a Grécia e a Europa contemporâneas.
“Contradição” é o nome da Esquerda no Poder
As incertezas teóricas e políticas tornam-se mais duras quando a Esquerda chega ao Poder. Aliás, quando a Esquerda é eleita para formar governo. Poder e governo não são sinónimos. A estrutura do Poder grego dificilmente deu atenção ao governo Syriza. O primeiro governo Syriza (janeiro – agosto 2015) deu por vezes a impressão de ser como um coelho imobilizado pelos poderosos faróis de um camião[2] iminente. O camião da Troika – o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e (agora Quádrupla) os credores europeus – é uma poderosa Santa Aliança. Em troca dos empréstimos concedidos à Grécia e a outros países endividados, impôs pré-condições neoliberais de reformas sociais e económicas. Como resultado, a Grécia encontra-se numa posição de quase-protetorado, um país de soberania limitada.
Os Ministros do “primeiro governo de Esquerda” relatam que têm que agir como um “governo no exílio”. Eles ficaram reféns de funcionários públicos no topo de carreira, que se opõem às suas políticas (existentes ou vindouras), e de funcionários em início de carreira, acostumados a esforços mínimos e indiferentes a uma governança eficiente e efetiva. Os Ministros foram (e continuam a ser) debelados por altos dirigentes que acreditavam que o governo Syriza seria um curto “intervalo de Esquerda” no longo domínio da ala Direita e dos seus parceiros sociais-democratas. Foi-lhes negado o acesso a ficheiros e informações necessários para a implementação do seu programa político e viram as suas diretivas serem frustradas por funcionários relutantes em implementá-las. Como corolário, e em parte devido a uma preparação incompleta, o governo concentrou-se em demasia nas negociações com os credores[3] e de modo insuficiente na resolução das privações e degradações da vida quotidiana.
Mas será que há um modo de fazer governo de “Esquerda”? É uma questão difícil, não só porque não temos uma resposta, mas também porque nem sequer temos uma pergunta plenamente esmiuçada. Não há um precedente na Europa Ocidental. O governo deve experimentar, correr riscos, usar a imaginação do partido e do movimento, particularmente a das jovens mulheres e homens que o hão apoiado de modo consistente. Temos que aprender a andar saltando para a água.
A Esquerda no Poder, no enquadramento internacional, europeu e doméstico, correntemente hostil, é um projeto marcado por uma série de paradoxos e de contradições. A sua expressão central é esta: quando um partido de Esquerda radical toma o leme do Estado, depara-se com uma instituição hostil organizada para frustrar os seus planos. A teoria política e jurídica marxista tem considerado o Estado e o Direito como antagónicos à Esquerda, tanto em forma como em conteúdo. É isto que está na base do argumento de que o Direito irá “desaparecer” no comunismo. Como consequência disto, a relação entre instituições e a Esquerda em sociedades democráticas não tem sido suficientemente explorada. O mais perto que a Esquerda esteve de desenvolver uma estratégia para tal situação sem precedentes foi a ideia de Nikos Poulantzas[4] de estar simultaneamente dentro e fora do Estado, controlando-o bem como agindo contra ele. “Contradição é o nome da Esquerda no governo”.
Esta contradição-geral toma uma forma mais específica no caso grego. Para a ala Direita da oposição e para a comunicação social do Poder e das estruturas instituídas[5], é um paradoxo e um escândalo que os Ministros do Syriza, sotto voce[6], e que o partido, aberta e orgulhosamente, proclamem a sua oposição às diretivas políticas que são obrigados a implementar, no seguimento do acordo de 12 de julho e do memorando neoliberal que lhes foram impostos. O partido tem repetidamente lançado apelos ao povo para que participe em manifestações contra a austeridade contínua, e apela aos seus membros para que marchem juntamente com os protestantes contra as medidas governamentais. Os políticos da oposição, perplexos, tomam tal abordagem como a prova derradeira do comportamento louco, quase esquizofrénico, do Syriza. Para os políticos do establishment, o papel do partido no governo é o de apoiar os seus Ministros e o de atuar como uma correia de transmissão que popularize e legitime programas políticos e distribua patrocínios em pequena escala. Todavia, um partido de Esquerda deve sempre manter uma distância do seu governo, criticando as suas políticas quando estas se afastam das convicções ideológicas partilhadas. Na corrente situação grega, em que o governo é mantido refém de poderes domésticos e estrangeiros hostis, o apoio crítico e até mesmo a oposição são pragmaticamente inevitáveis e ideologicamente necessários.
Governar em tal situação implica resiliência e compromisso; envolve compromisso ideológico acompanhado por revezes políticos. Partido e governo devem perseverar nas suas tarefas, perdendo batalhas, mas preparando-se para a vitória na guerra. Uma ótica do senso-comum acredita que as contradições fomentam a queda inevitável do Syriza. Todavia, a contradição não é uma mera condição debilitante. Estar em contradição, negociar uma solução para uma aporia, proporciona uma oportunidade dialética. Um governo de Esquerda sob tutela estrangeira, que é responsável por uma sociedade imbuída com ideologia neoliberal, uma economia enfraquecida, e um Estado ineficaz e corrupto, tem que manobrar o seu caminho para fora da contradição distinguindo entre temporalidades diferentes e prioridades temáticas.
A versão política do paradoxo é algo diferente. O Syriza encontra-se na estranha posição de uma vitória política arrancada de uma derrota ideológica. A oposição ultraesquerdista advoga que o Syriza traiu os seus próprios valores, mas a resposta é brutalmente simples. As pessoas não votaram no Syriza quando este era apenas um partido de Esquerda radical de oposição. Antes de 2012, quando a sua ideologia de Esquerda, retórica e membros ainda estavam intactos, o Syriza obteve no máximo 5% dos votos em eleições. Em janeiro de 2015 as pessoas votaram em massa no Syriza (granjeou 37%); no referendo de julho de 2015, o voto no “Não” alcançou os 62 %, sendo o Syriza o único partido a apoiá-lo; e nas eleições de setembro de 2015 o Syriza obteve uma vez mais uma porção massiva (36% dos votos). Três vitórias eleitorais sucessivas num curto período de 9 meses é um sucesso sem precedentes internacionais e não pode ser apenas atribuído às credenciais de Esquerda do Syriza. A vitória eleitoral não emergiu da hegemonia ideológica da ala Direita já estabelecida e dos partidos sociais-democratas, que governaram o país durante quarenta anos – emergiu contra tal hegemonia. Compreender as causas e as limitações desta vitória, e tornar os votos em unidade de forças e consciência coletiva será o fator decisivo para o futuro do Syriza.
Um breve relato sobre a ascensão do Syriza
Mas estou a adiantar-me demasiado. Como é que chegámos aqui? Pouco antes das eleições de 2012, as quais marcaram o início da ascensão do Syriza, a revista Forbes publicou um texto de Bill Frezza intitulado “Dêem aos gregos o que eles merecem: Comunismo”[7]. No artigo argumentava-se que o mundo carecia de um novo comunismo em ação e que não havia melhor candidato do que a Grécia. “Expulsem-nos da UE, estanquem o fluxo de euros grátis e depois recostem-se confortavelmente e apreciem a destruição da Esquerda por uma geração.” Foi o primeiro exemplo publicado do que ficou conhecido como o “pequeno intervalo de Esquerda”. Deixem-nos chegar ao Poder, tenham a certeza de que falham e, por essa razão, exterminem a Esquerda na Europa.
Terá sido isto que sucedeu? A resposta é simultaneamente sim e não. Imediatamente após a eleição do Syriza a 25 de janeiro de 2015 foi posto em ação um coup d’état[8] pós-moderno.[9] O governo foi eleito com um mandato claro para pôr fim à austeridade. Durante 2009, quando tiveram lugar o primeiro empréstimo de resgate e o seu indissociável memorando, as políticas de austeridade foram levadas a cabo em duas frentes: austeridade fiscal e depreciação interna. A austeridade fiscal foi prosseguida através da redução da despesa pública, da privatização de ativos-chave do Estado e do aumento da receita tributária. Uma grande quantidade de funcionários públicos foi dispensada e os serviços sociais foram dilacerados, ficando o sistema de saúde particularmente incapaz de ver cumpridos os seus requisitos mínimos. A crise humanitária que se seguiu está bem documentada. A lógica dos credores visava gerar superavit orçamental primário, o qual não seria usado para dinamizar a economia estagnada, mas para pagar a dívida em ascensão. O governo anterior havia aceite a obrigação de criar excedentes anuais de até 5% do PIB nos sete anos seguintes, uma meta que nenhum governo ousou tentar ou conseguiu atingir desde a Roménia de Ceauşescu.
A depreciação interna foi operada através da repetida redução salarial do sector privado e da abolição de grande parte da legislação laboral que protegia os trabalhadores, tal como a contratação coletiva. Ao mesmo tempo, os reiterados aumentos da carga fiscal, incluindo os impostos de taxa regressiva[10] sobre a propriedade imóvel, significavam que o sangramento da economia havia atingido níveis sem precedentes. De acordo com o argumento do FMI, a depauperização da classe trabalhadora levaria ao aumento da competitividade e seria uma ajuda para o crescimento económico. Todavia o resultado foi um abjeto falhanço económico. A economia contraiu-se em 26%, o desemprego disparou para os 27% – com o desemprego jovem a chegar aos 60% –, e mais de 3 milhões de pessoas ficaram abaixo ou na linha de pobreza. O FMI admitiu alguns anos mais tarde que havia subestimado o cálculo dos efeitos adversos da austeridade na economia – o chamado multiplicador fiscal – por um fator de três.
É neste ambiente que em janeiro de 2015 os gregos elegeram o Syriza – um partido comprometido em reverter aquelas políticas. Seguiu-se um período de negociação com as instituições europeias e os credores. Todavia estas não foram negociações em sentido próprio. O enorme fosso de Poder entre os recursos e ideologia das duas partes tornaram as conversações brutalmente assimétricas. Tenho apelidado estas “negociações” de coup[11] europeu, uma tentativa de executar uma “mudança de regime” usando bancos ao invés de tanques. Os riscos económicos para os credores eram e ainda são relativamente pequenos: a economia grega representa apenas 2% do PIB europeu, pelo que isto não justifica o risco de uma quebra de relações, particularmente após o enorme fluxo migratório de 2015, quando a Grécia acolheu mais de 850.000 refugiados e imigrantes. O princípio da precaução da teoria do risco, inscrito no DNA europeu, demanda que os efeitos imprevisíveis do Grexit nas economias europeia e mundial devam ser evitados. Se o colapso do Lehman Brothers criou uma tamanha crise, um Grexit foi considerado ainda mais perigoso.
A ameaça percetível de um sucesso do Syriza e de um corte na dívida grega, repetidamente declarada como insustentável pelo FMI, é política, não económica. As elites europeias receiam que a atitude anti-austeridade assumida pelo povo e governo gregos contagie o Sul da Europa. O voto anti-austeridade escocês; os resultados das eleições portuguesa e espanhola; os resultados das sondagens do Sinn Fein; e a eleição de Jeremy Corbyn como líder do Partido Trabalhista britânico – tudo indica que as pessoas começaram a mexer-se. O governo Syriza encabeçou o ataque ao mantra neoliberal do “não há alternativa”. Seguiu-se uma arca de virtude (movendo-se ao longo do Mediterrâneo e mais a Norte na periferia europeia), uma arca que ameaça a posição hegemónica. “Há um outro caminho”: é isto que o Syriza e a Esquerda afirmam. Os mercados não estão acima das pessoas, a democracia deve ser estendida e aprofundada, os bens públicos não devem ser privatizados e devemos parar a transferência massiva de capital dos pobres para os ricos.
Mesmo uma história de sucesso limitado, deste ponto de vista, indicaria que as pessoas podem lutar contra as probabilidades. A União Europeia e o FMI receavam que o contágio político do Syriza se espalhasse pela Europa. Imediatamente após a vitória histórica de janeiro de 2015, a primeira para a Esquerda radical na Europa, foi iniciado um plano de destabilização. O objetivo era claro: ou se derrubava o governo, se este não aceitasse as condições onerosas impostas sobre a Grécia; ou se humilhava o governo de tal maneira que seria impossível manter o partido e o governo juntos. Foram muitos os sinais desta tentativa de “mudança de regime”. Todas as artes arcanas de desinformação e de fazer pressão foram colocadas em prática. Os Gregos foram encorajados a levantar as suas poupanças de modo a criar uma corrida aos bancos. O estrangulamento fiscal foi seguido pelo gotejamento da já reduzida liquidez bancária, que fez lembrar às pessoas a tortura chinesa com gotas de água. Após a convocação do referendo de julho, era inevitável que a certa altura se cancelassem todos os empréstimos e ajudas financeiras e se impusessem controlos de capital.
De cada vez que o governo grego apresentou uma proposta política para resolver o problema da sustentabilidade da dívida a longo-termo, foi requerido que esta fosse avaliada pelos tecnocratas europeus. De cada vez que as autoridades gregas regressavam com cálculos detalhados, os credores desafiavam o enquadramento político subjacente. O FMI insistiu no endurecimento da depreciação interna, mas pediu uma redução da dívida para que esta fosse viável. Os Europeus foram mais sensíveis ao mandato democrático do Syriza, mas não se mostraram favoráveis a uma negociação para aligeirar a dívida. Apanhado entre a Cila do aumento permanente da dívida (em que os novos empréstimos eram usados para pagar a dívida anterior) e o Caríbdis[12] da austeridade galopante, o Syriza ficou sem espaço de negociação.
As jogadas para criar pressão foram características do impasse. Na quinta-feira de 18 de julho, enquanto o Primeiro-Ministro Alexis Tsipras estava na Rússia, a Reuters noticiou uma fuga de informação por um membro do conselho do BCE, segundo o qual os balcões dos bancos poderiam não abrir na segunda-feira seguinte. Foi um sinal claro, instigando as pessoas a levantar as suas poupanças na sexta-feira – um aviso e uma promessa auto-realizável, que poderia até mesmo ser considerada uma ofensa criminal. Eu estava a jantar com altos quadros do Syriza quando a notícia foi lançada. Fiquei surpreendido e agradado com a sua reação calma e controlada. Eles decidiram não atribuir demasiada ênfase à fuga de informação e minimizar os ataques sequentes. Não houve uma corrida aos bancos na sexta-feira de manhã.
A 25 de junho a Grécia propôs um novo conjunto de propostas orçamentais. Estas eram um grande retrocesso face ao manifesto do Syriza e iam deveras ao encontro da posição dos credores. O governo aceitou as exigências fiscais, cortando nas despesas públicas e aumentando impostos, apontando para um total de 7.9 mil milhões de euros de prejuízo para a economia. Por outro lado, o novo encargo estava distribuído de um modo mais justo. 70% dos novos impostos seriam suportados pela parte mais rica da sociedade, dado que se aumentou a taxa de tributação das empresas de 26% para 29% e se criou um imposto único para empresas com lucros superiores a meio milhão de euros. Pela primeira vez, estas propostas foram recebidas pelos credores, que as declararam como uma base válida para um acordo. Contudo, imediatamente depois, quatro dias antes do fim do corrente programa financeiro, os credores aumentaram o montante exigido, sangrando adicionalmente a economia em mais de 11 mil milhões de euros e revertendo as prioridades ao impor o grosso das novas exigências sobre a parte mais pobre da sociedade.
A proposta foi apresentada como um acordo de “pegar ou largar”. Angela Merkel apelidou-o de “generoso”, enquanto que Donald Tusk, o Presidente do Conselho Europeu, declarou que “o jogo acabou”. Tornou-se claro que as “negociações” seriam concluídas apenas se o governo aceitasse a chantagem e abandonasse a sua ideologia, bem como as suas promessas para com o povo grego. Perante este enquadramento, Tsipras convocou o referendo de 5 de julho, apelando às pessoas para que rejeitassem a chantagem dos credores.
O referendo de 5 de julho foi um caso sem precedentes de democracia em ação. Combinou formas de democracia institucional e popular, direta. Nessa impressionante semana, a máquina partidária do Syriza foi mobilizada tarde e relutantemente. A vitória de 62% foi obtida pelas pessoas comuns, muitas das quais adotaram o voto no “Não” de um modo discreto, mas determinado. Políticos europeus, incluindo o Presidente do Parlamento Europeu e o Chanceler do Tesouro britânico, avisaram os Gregos das lúgubres consequências de um voto no “Não”. Os meios de comunicação gregos foram inundados com predições fatalistas caso o povo rejeitasse a oferta. Organizações de sondagens, de modo negligente e quiçá fraudulento, prediziam uma votação no “Sim”, e apenas na sexta-feira prévia ao referendo é que mudaram a sua previsão para uma pequena vitória do voto no “Não”. As pessoas, já enfadadas dos meios de comunicação hostis, tornaram-se “tímidas votantes no Não”, deixando sem resposta quem levava a cabo as sondagens ou desvelando as suas intenções de voto. As pessoas não reagiam abertamente enquanto eu fazia campanha pelo “Não” em Atenas, apenas para secretamente me piscarem o olho um minuto depois, após tomarem precauções para não serem vistos. Foi um caso de cidadãos contra o Poder, uma das poucas ocasiões em que um vasto conjunto de pessoas primeiro ludibriou os seus “superiores” e depois lhes mostrou uma clara falta de respeito.
Após o referendo, o Primeiro-Ministro Tsipras retornou a Bruxelas com a esperança de que o mandato popular lhe permitisse negociar um acordo melhor em troca de um terceiro empréstimo. Viu-se perante uma chantagem de proporções sem precedentes. Foi-lhe oferecido um terceiro empréstimo de 84 mil milhões de euros, acompanhados por uma série de pré-requisitos severos e punitivos, contrários à ideologia e ao manifesto do Syriza; ou, em alternativa, era-lhe presenteada uma saída da zona euro. A capitulação ou o Grexit eram as duas propostas em oferta, igualmente más. Era um dilema trágico, bem conhecido das clássicas tragédias gregas. O Syriza não podia nem aceitar nem rejeitar a chantagem, pois comprometeria ou a sua identidade política e ideologia, ou a sobrevivência do país e do governo. Era uma aporia típica, uma inabilidade em passar através da boca aberta de Cila e as garras agressivas de Caríbdis. A escolha era entre falhar à confiança depositada pelas pessoas que haviam acreditado no Syriza e comprometer a sua sobrevivência e sustento. Tsipras negociou com os líderes europeus durante dezassete horas e aceitou um acordo incontornável que, apesar de ser muito melhor que aquele que foi oferecido na semana anterior, não deixava de ser uma continuação clara da agenda neoliberal.
A escolha não era entre manter-se fiel a princípios e o dever de um governo para agir de modo responsável. Era o que cada governo faz numa base diária, nomeadamente um cálculo pragmático e utilitário de consequências prováveis. O Grexit, rejeitado em termos sólidos pelos Gregos em repetidas sondagens, teria sido catastrófico. Mesmo os apoiantes mais convictos concordavam que o seu impacto imediato iria deteriorar ainda mais a situação económica de um país que já havia sofrido uma queda de 25% do PIB, tinha 27% da população ativa desempregada, 65% da juventude em tal situação, e quase uma descida de 50% no rendimento familiar. Ao contrário da Argentina, a Grécia não podia promover a sua recuperação económica através da exportação de bens. A sua balança comercial negativa é dominada pela importação de petróleo, alimentos e medicamentos, cujo preço de retalho teria disparado no início da depreciação proporcionada por uma moeda nacional pós-euro. Tal como reconheceu Costas Lapavitsas, um proponente dogmático do Grexit, não era possível calcular atempadamente o tempo que duraria a recessão pós-Grexit. Esta poderia atingir os dezoito meses e teria que ser mitigada através do racionamento de bens básicos. Racionar combustível, leite, carne e medicamentos básicos, algo que havia acontecido durante a ocupação nazi, teria sido a carta de suicídio mais célere para um governo de Esquerda. Os protestos de tachos e panelas da classe média contra o Presidente Allende no Chile ou as repetidas tentativas para expulsar o Presidente Chávez são recordações arrepiantes dos poderes limitados que tem um governo que agiu contra os interesses de classes bem sedimentadas.
Mas era ainda pior que isto. No mês de maio precedente, os negociadores gregos ficaram a par de que as autoridades alemãs estavam a preparar um plano para excluir a Grécia da zona euro. O plano do Ministro das Finanças alemão, Schäuble, trazido à luz durante as negociações de julho, já havia chegado a um nível plenamente operacional. A Grécia seria expulsa da zona euro por um período inicial de cinco anos, sendo que seria oferecida alguma assistência financeira de modo a lidar com a expectável catástrofe humanitária. A estratégia de negociação do governo estava em frangalhos. Não só os Alemães não receavam os efeitos adversos do Grexit, como esta era a sua solução preferida. É neste contexto que devemos analisar brevemente a problemática estratégia negocial do Syriza promovida pelo Ministro das Finanças Yanis Varoufakis e sua equipa.
Varoufakis desenvolveu duas linhas de negociação. A primeira baseava-se na convicção de que se a Grécia arrastasse as negociações – ao início de modo implícito e depois explicitamente com a ameaça do Grexit –, os Europeus iriam decerto refrear [as suas exigências] por preocupação com as implicações de uma possível rutura da zona euro para a economia europeia e mundial. Era uma assunção razoável, apoiada por diversos economistas (maioritariamente americanos) e think-tanks[13] que preconizavam um armagedão económico caso a Grécia abandonasse o euro. O cenário catastrófico era conhecido da UE e do BCE, os quais, ao invés do governo grego, começaram a tomar medidas defensivas no caso de suceder um Grexit propositado ou por defeito. O fracasso da estratégia de Varoufakis tornou-se aparente em maio, quando Atenas protelou o pagamento de uma tranche ao FMI cujo prazo de pagamento findara. A imprensa e o governo gregos aguardavam então uma queda considerável do mercado bolsista internacional e o agravamento do rating[14] de crédito de países vulneráveis como Espanha, Portugal e Itália. Contudo, a flexibilização quantitativa[15] promovida por Mario Draghi, Presidente do BCE, sendo uma de um conjunto de medidas preventivas, levou a que o receio dos mercados financeiros ficasse apaziguado.
Contudo isto não alterou a estratégia grega. Durante algum tempo, Varoufakis jogou com a tática tradicional de uma linha de resistência contra forças superiores, advogada por Clausewitz e adotada pelos movimentos de guerrilha. Mas após os bancos elevarem as suas linhas de defesa, o tempo começou a correr contra a Grécia. O acordo existente entre o Estado grego e os credores estava na iminência de se extinguir no fim de junho, permitindo que o BCE cessasse o financiamento gota-a-gota que mantinha os bancos à tona de água. Varoufakis manteve o jogo passivo, não apreciando que os postes da baliza tivessem sido movidos. Quando se tornou claro que Wolfgang Schäuble havia desenvolvido uma estratégia para excluir a Grécia da zona Euro, a principal ficha de Varoufakis no jogo de poker com os europeus havia sido roubada pela oposição, tornando-se uma arma poderosa contra a Grécia.
Este grave erro de cálculo foi possível dada a inexperiência dos negociadores, com o contributo de um segundo erro. A Esquerda procura sempre elaborar uma análise concreta da situação concreta, anotando o pleno balanço de forças. Os cosmopolitas, por outro lado, acreditam que bons argumentos, posições ponderadas e os valores iluministas da democracia e da solidariedade podem ser bem-sucedidos contra oponentes materialmente superiores e contra os interesses explicitamente políticos e ideológicos da ortodoxia neoliberal. Podemos apelidar isto de ilusão habermasiana: a crença de que algo como uma situação discursiva ideal existe na política internacional e permitirá que a razão e a boa-vontade prevaleçam.[16] As apostas eram (e ainda são) enormes para a Grécia, mas não são insignificantes para os poderes dominantes. A vitória do Syriza abriu a possibilidade de que um sentimento de anti-austeridade se alastrasse em outros estados do Sul. O sonho de que Espanha, Portugal ou Itália virassem à Esquerda era o pesadelo da Alemanha e da Holanda. Os Gregos tinham que ser parados por razões mais políticas do que económicas, pois havia que conter o contágio de Esquerda pelo Mediterrâneo oriental. A capitulação do Chipre sob um governo nominalmente comunista era também vista como um modelo para disciplinar a Grécia.
Mas a equipe liderada por Varoufakis já havia perdido. À semelhança de todas as posições de negociação que confiam exclusivamente em bons argumentos, valores e princípios, esta estratégia estava condenada a falhar. As esmagadoras forças anti-Esquerda, o erro de cálculo quanto ao receio europeu pelo sucesso do Syriza, e a ingenuidade liberal, combinada com a ausência de estratégias alternativas, conduziram à derrota. Todavia o referendo mudou o jogo político, se não mesmo as negociações.
O apelo ao referendo e a irredutível vitória no “Não” colocaram o Syriza, o governo e o Primeiro-Ministro Tsipras – que havia convocado o referendo contra todas as probabilidades – mais próximo das pessoas do que alguma vez [haviam estado] na história grega recente. Depois do referendo e apesar da derrota aquando a imposição ao governo do terceiro memorando neoliberal, que conduziu a uma divisão no partido, a vitória eleitoral do Syriza estava assegurada. A oposição e os analistas interpretaram mal o elo que tamanha votação – cruzando linhas partidárias, ideológicas e de classe – cria entre um líder e o povo. A chantagem e a consequente derrota nas negociações de julho foram infligidas sem dúvida para que os Gregos considerassem [os responsáveis d]o Syriza como, na pior das hipóteses, traidores e vira-casacas, ou, na melhor, como hipócritas. Tal fazia parte da estratégia do intervalo de Esquerda para “Apanhar o Tsipras”. Este estratagema foi finalmente abandonado nas eleições de setembro, quando o Syriza obteve quase a mesma percentagem de votos que as tidas nas eleições triunfantes de janeiro.
A derrota em vitória
Não há dúvida de que o terceiro memorando, no qual os deputados do Syriza ajudaram a votar para que tivesse força legal, implica um conjunto de medidas reacionárias e socialmente injustas. Enquanto que o acordo de julho é melhor que aquele apresentado a Tsipras em junho (dado que diminuía o fardo na economia em 20 mil milhões de euros), não há dúvida de que o governo Syriza perdeu. Contudo, a pretensão de que o intervalo de Esquerda havia findado, que o Syriza “traiu”, se “vendeu” ou foi cooptado pela ortodoxia neoliberal é absurda. A questão mantém-se, não obstante: depois das eleições de setembro, estará ainda o governo do Syriza na Esquerda radical? Eu experiencio uma enorme dificuldade existencial ao votar em medidas contra as quais fiz campanha, por escrito e presencialmente. Apenas o tempo dirá se a chantagem levou o Syriza a rumar para a Direita, ou se só forçou o partido a uma retirada temporária. Permitam-me repetir: não temos uma definição de um manual a dizer o que significa “Esquerda radical” no séc. XXI e, consequentemente, do que é que se trata a “governamentalidade[17] de Esquerda”.
O Syriza precisa de experimentar, usando a imaginação popular e correndo riscos, de modo a desenvolver um programa predicado de autênticos valores de Esquerda. Mas isto não é suficiente. O governo deve tentar reformar um sector estadual disfuncional, ineficaz, ideologicamente hostil e frequentemente corrupto. Ao mesmo tempo, deve dar nova energia aos movimentos sociais que o levaram ao poder e criar facilidades para [despertar] a dinâmica social dormente. As pessoas votaram repetidamente no Syriza, mas o domínio eleitoral não implica a hegemonia política. Pelo contrário, o neoliberalismo minou comunidades e atomizou a sociedade. Planear um futuro socialista é um enigma que põe à prova as mentes mais brilhantes e os corações mais ardentes. E nós temos que lidar com isso aqui e agora.
O Syriza precisa de tornar a derrota em vitória, como notou Athena Athanasiou.[18] Temos que assumir a derrota na batalha, mas preparar-nos para a longa guerra. Slavoj Žižek defendeu que “a verdadeira coragem não é imaginar uma alternativa, mas aceitar as consequências do facto de não haver uma alternativa claramente discernível: o sonho de uma alternativa é um sinal de cobardia teorética, funciona como um fetiche que nos impede de pensar até às últimas instâncias sobre o impasse que a nossa difícil situação impõe.”[19] Este é um primeiro passo necessário. Todavia, a contradição entre a ideologia do Syriza e o memorando neoliberal não conduz necessariamente a stasis[20] e rendição. As medidas que implementam o acordo são o reconhecimento material da derrota. Mas a contradição é a sala das máquinas da dialética política.
Permitam-me principiar com o partido. Ele deve continuar a sua oposição de princípios e fundamentos ao neoliberalismo, assumindo uma distância amigável – mas crítica – do governo, pressionando-o a adotar à primeira oportunidade as medidas keynesianas necessárias para reiniciar a economia. No que respeita ao governo, este deve acelerar as negociações com os credores sobre a redução do peso insustentável da dívida. A denúncia das medidas impostas pelos Ministros manifesta a natureza contraditória e agonista de uma governamentalidade de Esquerda numa sociedade capitalista, como bem atentou Stathis Gourgouris.[21] Nada é mais radical e escandaloso do que um governo que proclama o seu desacordo com as medidas que tem que implementar, acusa-as de serem o resultado de chantagem e desenvolve um programa paralelo para mitigar as suas consequências. Governamentalidade de Esquerda significa que essas distância crítica, dissidência interna e até mesmo resistência ativa fazem parte da estratégia de negociação do governo, sendo o necessário corretivo no baloiço entre rutura e assimilação. Permitam-me repetir: contradição é o nome de um governo de Esquerda que nada num mar de capitalismo neoliberal.
Temporalidades políticas
Um comentário comum da imprensa é que o tempo político tem sido “denso” por causa do contínuo desenrolar de eventos dramáticos. Mas o tempo também tem sido alongado. Em fins de janeiro de 2016, quando se celebrava o primeiro aniversário da vitória eleitoral de 2015, já as memórias se começavam a desvanecer. Muitos sentiram que 2015 foi um ano que durou por dez. Se seguirmos a lógica das temporalidades contraídas ou estendidas, 2015 foi o ano mais longo, fascinante e difícil das nossas vidas. O tempo, rápido ou lento, longo ou denso, constitui a dimensão na qual a aposta de Esquerda será ganha ou perdida.
O tempo político e o pessoal não estão unidos nem são uniformes. São multidimensionais e fragmentados. Os [militantes] radicais do Syriza, os deputados no Parlamento e os membros do governo vivem simultaneamente em três temporalidades diferentes, três círculos concêntricos, que tanto estão sobrepostos como são conflituantes. O círculo mais interior e pequeno é o tempo do Presente: o tempo de um governo de Esquerda que, por causa do acordo de julho, tem que legislar e aplicar as medidas recessivas e socialmente injustas que ideologicamente rejeita. É um tempo “denso” e difícil para aqueles a quem se pede que implementem [medidas] contra as quais lutaram. Cobre o período que vai das eleições de setembro de 2015 a abril de 2016, quando a Esquerda é mantida refém dos credores e o país é um quase protetorado dos europeus e do FMI.
É um tempo de pânico político e de histeria pessoal. A comunicação social está cheia de conspirações para destituir o governo, cheia de intriga e apostasia, cheia de destruição e catástrofes iminentes. É construído um falso estado de emergência, com Ministros e outros apoiantes de Esquerda a serem acusados de nepotismo, evasão fiscal e todos os tipos de delitos e pecados. O bombardeamento é implacável. A gratificação instantânea, a exigência pueril à satisfação imediata, tornou-se uma catástrofe instantânea, um infantilismo político que funciona através da multiplicação de falsos rumores e de ataques sem fundamento, visando o derrube do governo. Políticos da ala Direita – ajudados por alguns esquerdistas extraparlamentares – projetam os seus próprios falhanços nos seus oponentes, sem qualquer preocupação com o dano infligido sobre as medidas políticas e a posição internacional do país. Quando se prova que a mais recente acusação é uma mentira, segue-se uma retração, pouco divulgada, de modo a proteger legalmente os difamantes, e move-se o alvo para a próxima vítima.
A estratégia é clara. Governo, partido e movimento estão no seu estádio mais fraco nos inícios de 2016. A legislação para a reforma necessária do sistema de pensões e a cobrança aos agricultores que não haviam pago impostos no passado hão criado uma atmosfera febril. A oposição tem esperança que a maioria parlamentar de três [deputados] se desfaça. Os deputados do Syriza, por seu lado, experienciam graves questões existenciais e problemas de consciência. Se a resiliência dos deputados do Syriza se mantiver e o governo se aguentar bem durante o período da Páscoa, a sua sobrevivência está assegurada. A parada para o Syriza é: seis meses ou dez anos no governo.
O dilema existencial não se pode dissipar. Mas pode ser suavizado com a ativação de duas outras temporalidades, que existem como vestígios de futuridade no tempo presente. O segundo tempo é mais lento e mais longo. É o tempo do programa “paralelo” montado pelo governo para mitigar os efeitos do memorando. É o período do incremento de medidas políticas com uma clara orientação de Esquerda. Algumas já foram introduzidas, enquanto outras ainda estão a ser desenvolvidas. Incluem a atribuição de cidadania a imigrantes, o reconhecimento da união de gays e lésbicas, o fim da perseguição aos objetores de consciência e aos que evitam o serviço militar obrigatório, a implementação da avaliação recíproca de funcionários públicos, e legislar uma série de medidas de apoio aos desempregados e às falanges mais depauperadas da população. A governamentalidade de Esquerda envolve planeamento cuidado e preparação de reformas estaduais, mas também improviso e ajustes, tornando-se ao mesmo tempo brutalmente pragmática e guiada intransigentemente por princípios. As medidas devem ser aplicadas em grande proximidade com o partido e os movimentos sociais, tendo suporte na investigação científica. É porque o Syriza é um governo político que deve angariar o máximo de apoio tecnocrático possível.
Este é um plano de termo médio de três a cinco anos. É uma síntese dialética que visa defender e proteger os mais desfavorecidos através de uma redução gradual das desigualdades e da expansão e aprofundamento da democracia. Na sua primeira fase, o programa mantém e estende as medidas anteriormente implementadas para aplacar a crise humanitária. Em boa verdade, já espreitam os desafios dos eventos sempre inesperados, a contingência e imprevisibilidade do que pode vir a acontecer.
Por fim, o tempo da visão radical de Esquerda é o mais longo de todos. Começou em janeiro de 2015 e estende-se pelo horizonte vigente. Os seus vestígios mais débeis, manifestos no agora, operam por entre e contra as medidas políticas impostas. É o tempo do ideal, da visão socialista que começou, mas não tem um fim visível ou previsível. É o tempo mais longo e mais lento de um programa que deve mobilizar constantemente o apoio e legitimidade populares.
O memorando é a ordem simbólica do Syriza. É o que impõe a distribuição dos membros do governo, do parlamento e do partido nas suas posições correntes de agentes involuntários, à pequena escala, do capital europeu. O programa da transformação social, por outro lado, é a ordem do imaginário.[22] Permite-nos continuar por convicção e atuando no agora em nome do “ainda não” ou do “a devir”,[23] os quais redefinem a nossa presente difícil situação como o [momento] precursor necessário de um futuro socialista. O Syriza precisa de resiliência e resistência, enquanto as três temporalidades progridem a diferentes velocidades e os três programas entram em conflito. O Syriza apenas chegará à segunda temporalidade da governança de Esquerda e à terceira da visão de Esquerda se contínua e simultaneamente implementar e debilitar as medidas políticas [neoliberais] acordadas. Somente quando se começar a revelar esta terceira temporalidade, liberta do severo ataque neoliberal, é que o vero programa da Esquerda do séc. XXI emergirá. [Este] é um caso de escapar para o futuro, agindo agora a partir da perspetiva de um futuro perfeito, do que terá sido. Neste sentido, o futuro torna-se um fator ativo do nosso presente.
Socialismo democrático no séc. XXI
Estará o Syriza preparado? Poderá ter sucesso? Há atos para os quais te podes preparar e outros que inesperadamente te atingem, como um milagre ou um terramoto. Nunca estás preparado para te apaixonar ou para começar uma revolução. A decisão, o ato, atingi-te na cabeça: os Franceses chamam-lhe coup de foudre[24]; em Inglês, fall in love[25]. O ato é como uma loucura, é algo que te recruta, ao qual não podes resistir, que assume controlo. O Syriza foi adotado pelas pessoas como o sujeito da mudança radical e apenas pode aceitar o desafio. É uma aposta histórica; o seu resultado não é algo garantido.
Para Marx, o comunismo surge historicamente como um movimento político ou como uma ideia: chamemos-lhe o horizonte comunista, que transcende e politiciza as suas próprias expressões históricas, abandonado a trajetória teleológica. Esta ideia interpela sujeitos, sobredetermina relações sociais e promete um humanismo radical que una as pessoas, bem como as pessoas e a natureza. A transformação social visada pelo Syriza, a longo termo, procura chegar ao socialismo democrático do séc. XXI. O partido e as medidas do governo, nos difíceis tempos presentes – no tempo da governamentalidade de Esquerda, e no tempo sempre-presente da visão de Esquerda –, são uma viagem constante, navegando em direção ao horizonte da igualdade e da democracia. Pode-se apelidar tal ideia de «isodemocracia», parafraseando e desenvolvendo a «igualiberdade»[26] de Etienne Balibar.
Enquanto horizonte, a isodemocracia é uma linha divisória, um arco que se move e afasta conforme nos aproximamos. Isto não sucede porque a isodemocracia é uma utopia futura, um ideal não-realizável. Um horizonte mantém-se aberto e inatingível, mas é integrado como um farol que guia a nossa prática quotidiana. É uma espécie de ideia regulativa. Toda a aplicação ou instanciação abre para uma extensão adicional, e densifica, muda tanto o objetivo estratégico como o sujeito político. A isodemocracia não é destarte um telos[27], um estádio terminal, ou o propósito e fim da teleologia histórica ou enteléquia[28]. Não iremos bradar a certa altura: “aqui estamos, atingimos o horizonte, fomos bem-sucedidos”. Pelo contrário, o horizonte existe aqui e agora, incorporado em todas as relações e em todas as lutas, em todas as vitórias, mas também nas nossas derrotas. Nós falhámos, nós vamos tentar outra vez e vamos falhar melhor da próxima vez. [E] porque falhámos melhor, estaremos agora no limiar do sucesso.
Se o horizonte é a forma, o seu conteúdo é duplo: igualdade e democracia. Em primeiro, há o axioma da igualdade e a luta pela redução da desigualdade. Enquanto a liberdade é passível de vários tipos de interpretação incompatíveis (tais como a liberdade de escolher, de cada um se tornar a si próprio num pequeno empreendimento capitalista), a fundação do argumento da igualdade é simples. Cada um conta como um e não mais do que como um. Um governo de Esquerda concretiza este axioma e torna-o operacional. Aprofundar a igualdade conduz também à liberdade enquanto autonomia existencial. Não há liberdade sem igualdade, nem igualdade sem liberdade.
Em segundo, há a democracia. O neoliberalismo subordina a política à economia, o governo à governança, o debate e o conflito políticos a verdades científicas. As preferências do mercado são impostas às pessoas e os governos transformam-se em agências de coleta para os mercados e os bancos. A democracia fica empobrecida e as instituições representativas tornam-se serviçais anémicas do capitalismo insaciável. Neste contexto, a isodemocracia significa a repolitização da política e a democratização da sociedade. A Esquerda propõe o recurso a referendos, a possibilidade de revocação de deputados e outros em cargos eleitos, e quotas de género e raciais. Mas quando se granjeiam tais reformas institucionais, descobre-se que a democratização formal não é suficiente. Deve passar de um método formal para uma forma de vida; por outras palavras, deve transpor as medidas políticas centrais para a vida económica, social, cultural e pessoal. A democracia também é um horizonte que continua a evoluir conforme nos aproximamos dela. Assim que o princípio geral se concretiza e transforma, o horizonte toma as cores e matizes do arco-íris, um tom mais denso e um espectro mais alargado. Passamos [da fase] de reforçar um princípio que foi tornado oco para o reconhecimento de que o princípio em si tem um alcance limitado. Ele precisa de ser universalizado e aprofundado de modo a ser operacional. A democracia estende-se assim do estádio da política central e de método de agregação de votos para a vida quotidiana. Neste processo de extensão e aprofundamento, a democracia institucional é suplementada por formas diretas e não-representativas. Os serviços e os poderes são gradualmente subtraídos à potestade estatal e transferidos para as deliberações e modos de tomada de decisão dos cidadãos. Isto seria o significado contemporâneo da dissolução do Estado.
O partido de Esquerda radical pode ter sucesso nesta missão histórica se tiver uma forma flexível, se as suas fronteiras forem porosas, a sua vida interna completamente transparente. Um partido torna-se um intelecto coletivo quando abandona a segurança da atividade rotineira e se torna um laboratório de experimentação de estruturas, ideais e métodos. Valores e objetivos são atingidos se acompanhados por pragmatismo no que toca aos meios. O partido carece de lealdade inabalável na igualdade; a democracia e o pragmatismo flexível são os seus instrumentos. Tome-se o caso das políticas sociais. É delimitado um objetivo: pôr cobro à crise humanitária, por exemplo. Se for cumprido, este primeiro sucesso conduz imediatamente ao passo seguinte. O axioma da igualdade dá forma a novas políticas que fecham gradualmente o fosso [económico] e expõe o reino das ideias de Esquerda àqueles que escapam da armadilha da pobreza. Todas as reivindicações, todos os sucessos, tornam-se um degrau numa longa marcha e uma pré-condição para o próximo objetivo, ainda mais radical. O horizonte afasta-se e de novo proporciona a direção da próxima etapa, para uma maior radicalização. Nesta luta, tanto o objetivo como o sujeito estão em contínua mudança, transformando-se ao longo do trajeto. Pelo contrário, stasis[29] e imobilidade levam inexoravelmente à reintegração no antigo regime. E o mesmo se pode dizer do Estado de Direito. A criação de um Estado de Direito moderno é uma exigência radical e um pré-requisito para o socialismo democrático. A reivindicação de que o Estado de Direito cumpre as suas promessas, de que os direitos e prerrogativas existentes são feitas cumprir, é um requisito mínimo. Contudo, logo de seguida, descobre-se que para realizar tal promessa básica, o Direito deve passar do procedimentalismo e dos direitos individuais para a igualdade substantiva. Desta forma, a igualdade e a democracia tornam-se mais profundas e enriquecidas, operando a isodemocracia como o método dialético da realidade.
O futuro da Europa está a ser jogado correntemente na Grécia. Será ou a catástrofe do neoliberalismo, da austeridade e da condição pós-democrática, ou a primeira grande vitória da resistência. Irá mostrar que a resistência e a luta podem ganhar, que a vitória não é um sonho utópico. Esta luta envolve tanto a urna de votos como a rua. Não poderá existir um governo de Esquerda sem mobilização social, e não poderão haver vitórias duradouras para as campanhas de solidariedade e para os movimentos sociais sem uma mudança de governo.
O socialismo, a transformação radical, não é mais do que a insistência e a perseverança face à nossa decisão inicial de nos dedicarmos ao axioma da igualdade e da democracia. De uma perspetiva de futuro, a nossa resolução original parecerá bem fundada e fundacional, apesar de na realidade ser tão necessária quanto é contingente. É assim que acontecem as grandes histórias de amor e as revoluções. Depois de ocorrerem, são consideradas necessárias, pré-determinadas e indispensáveis. Mas se se chega ao “rendez vous”[30] alguns minutos mais tarde, ou se se delega a mudança em outros – em políticos, especialistas ou membros das organizações –, então o que estava predestinado torna-se uma oportunidade perdida, uma história de amor que nunca será experienciada. É o nosso dever político e moral ir ao encontro do alvo do nosso desejo.
Irá o Syriza ajudar a mudar o paradigma dominante na Grécia e na Europa? A sua vitória já provocou uma falha no modelo dominante. Uma mudança de paradigma pode acontecer se as pessoas em Londres, Paris, Madrid e Roma se aperceberem que o molde dominante falhou e deve ser substituído, na raiz e nas ramificações, por um novo modelo. A Europa terá que escolher entre os desastres da austeridade e a esperança de uma nova comunidade. Os sinais são otimistas.
Costas Douzinas é deputado no Parlamento Helénico, Professor de Direito e Diretor do Instituto Birkbeck para as Humanidades, da Universidade de Londres.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Indicador de pH solúvel em água, proveniente de certos líquenes. O teste com papel de tornassol torna-o vermelho em contacto com soluções de baixo pH (ácidas) e azul com soluções de alto pH (básicas) (N.T.).
[2] “Juggernaut” no original: termo do Inglês britânico derivado do sânscrito “Jagannātha”, alusivo às imponentes carruagens hindus de uso litúrgico, dais quais se afirma que eram usadas para atropelar os crentes em sacrifício. O termo tem assim um significado alegórico, alusivo a uma força imensa que é incontrolável (N.T.).
[3] “Lenders” no original: aqueles que “emprestam” dinheiro visando a obtenção de lucros – pelo que o termo jurídico português equivalente de “mutuantes” seria tecnicamente incorreto (N.T.).
[4] Filósofo e sociólogo marxista grego (1936-1979) que se destaca pela complexa análise do funcionamento do Estado capitalista e seus suportes ideológicos, bem como das ditaduras vintecentistas do Sul da Europa (N.T.).
[5] “Establishment” no original (N.T.).
[6] Em Italiano no original: “em voz baixa” (N.T.).
[7] In <http://www.forbes.com/sites/billfrezza/2011/07/19/give-greece-what-it-deserves-communism/>.
[8] Em Francês no original: “golpe de Estado” (N.T.).
[9] In <https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/costas-douzinas/very-european-coup>.
[10] Um imposto é considerado regressivo se a taxa média baixa quando o rendimento aumenta (N.T.).
[11] Em Francês no original (N.T.).
[12] Cila e Caríbdis são mormente representados como dois monstros marinhos da mitologia grega; a expressão tem o sentido correspondente à de “estar entre a espada e a parede” (N.T.).
[13] Em Inglês no original (N.T.).
[14] Em Inglês no original (N.T.).
[15] “Quantitative easing” no original: criação pelos bancos centrais de quantidades assinaláveis de dinheiro novo, por regra de índole eletrónica, visando estimular a economia pela contração de novos empréstimos (N.T.).
[16] De acordo com a Teoria da Ação Comunicativa do filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-), promove-se a busca de consensos entre os interlocutores, colocados o mais proximamente possível de uma situação ideal de discurso, assente destarte numa racionalidade comunicativa marcada por uma índole procedimental (N.T.).
[17] «Governamentalidade» é um termo assaz complexo, desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), na sua genealogia sobre a Política e a Arte de Governar. Diz respeito não só às instituições e procedimentos atinentes ao Governo; como aos mecanismos e disciplinas de exercício de soberania; como ainda à evolução do tipo de governação existente na Idade Média europeia até ao surgimento do Estado administrativo Moderno (N.T.).
[18] In <https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/athena-athanasiou/performative-dialectics-of-defeat-europe-and-european-left-afte>.
[19] In <http://www.newstatesman.com/world-affairs/2015/07/slavoj-i-ek-greece-courage-hopelessness>.
[20] Em Grego no original, termo que expressa a ideia de impasse político, ligado à guerra civil, em que ambas as partes do conflito detêm o mesmo poder e, portanto, se anulam (N.T.).
[21] In <https://www.opendemocracy.net/can-europe-make-it/stathis-gourgouris/syriza-problem-radical-democracy-and-left-governmentality-in-g>.
[22] Costas Douzinas faz-se valer da tríade terminológica cunhada pelo psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), composta pelas ordens do Real, do Simbólico e do Imaginário (N.T.).
[23] O Autor alude à teorização emancipatória da Utopia propugnada pelo filósofo marxista alemão Ernst Bloch (1885-1977), o qual encarava a contínua construção do socialismo/comunismo tomando o Futuro como o horizonte temporal nuclear (N.T.).
[24] Em Francês no original: um golpe (“coup”) de um relâmpago (“foudre”), usualmente traduzido como “amor à primeira vista” (N.T.).
[25] Literalmente, “cair no amor” (N.T.)
[26] A expressão francesa original é “égaliberté”, expressando aquele filósofo francês comunista (1942-) a ideia de “igualdade-na-liberdade” (N.T.).
[27] Em Grego no original: “fim”, “finalidade” (N.T.).
[28] De acordo com a filosofia aristotélica, a enteléquia diz respeito ao estado do ser “em ato”, plenamente realizado, distinto pois do modo de ser “em potência” (N.T.).
[29] Em Grego no original (N.T.).
[30] Em Francês no original: o “ponto de encontro” (N.T.).