Por Gabriel Landi Fazzio
Quando Temer alega que a Reforma Trabalhista está adiada para 2017, trata-se de uma declaração de guerra. Mas, diferente do que a mídia dá a entender, o ataque à jornada de trabalho não busca o seu aumento: busca sua quebra.
Ao longo do último dia 08/09, uma série de notícias repercutiram o anúncio do governo Temer sobre suas mais novas propostas de “reforma” trabalhista: os contratos de trabalho “por produtividade” e “por tempo”. Todas as notícias apenas ecoam a fraseologia modernizante do Ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira: as reformas focam em ampliar a “segurança jurídica, criação de novas oportunidades de ocupação de renda e consolidação de direitos”. A omissão de qualquer menção à crise econômica mundial e nacional pode levar ao engano uma pessoa menos atenta[1]. Mas, se analisamos mais detidamente as propostas, qualquer dúvida sobre sua natureza se dissipa.
Quando os representantes do governo alegam que a Reforma Trabalhista está adiada para o 2º semestre de 2017, devemos ouvir uma declaração de guerra: significa o comprometimento absoluto deste governo para com o aumento das margens legais para a exploração do trabalho, apenas buscando evitar acumular desde já um desgaste público em torno do tema – enquanto tem outros ataques tão importantes a fazer contra a classe trabalhadora. A verdade é que mesmo antes de 2017 a Reforma Trabalhista já se engatilha, seja pela iniciativa judicial ou pela tramitação de projetos de lei. Dividimos a análise das propostas de Temer/CNI em duas partes: primeiro, quanto às mudanças nos contratos individuais de trabalho, e depois poderemos nos deburçar sobre as mudanças em matérias sindical.
O contrato por produtividade
A Folha dá dois exemplos, para explicar ambos contratos: o de um “profissional que coloque azulejos”, que poderá agora ser contratado tanto “pelo produto final, ou seja, a colocação de azulejos” quanto pela “quantidade de horas necessárias para que o serviço final fique pronto”. Outro exemplo do contrato por produtividade seria “o caso do médico, que poderá ser contratado por procedimento realizado”.
Os exemplos ajudam a eliminar qualquer identificação entre essa proposta e o já existente contrato de trabalho a prazo determinado, utilizado amplamente na construção civil sob a modalidade de contratação por obra certa. Enquanto, no modelo já existente, a contratação se vincula ao todo de uma obra, o modelo de contrato por produtividade permite contratar de maneira fracionada o trabalho. Tomemos o caso dos “azulejos” mencionado pela Folha: hoje, é possível contratar um profissional que coloque azulejos por prazo determinado, por exemplo, por quanto tempo leve a finalização de determinada edificação. No novo modelo, por outro lado, o prazo da contratação pode ser inclusive inferior, e o que importa não é a finalização geral da obra (a colocação de todos os azulejos), mas a colocação por parede, ou por andar, ou por metragem. O modelo, portanto, flexibiliza ainda mais a relação de emprego, e sequer se prende propriamente a um prazo determinado.
Desmancha-se, de pronto, um dos mais recorrentes argumentos da reforma trabalhista: de que seria preciso criar alternativas à velha regulamentação uma vez que muitas novas atividades “não se encaixam”, em especial ligadas às novas tecnologias que permitem formas distintas de trabalho remoto e flexível. Mas, ora, a única coisa flexível no caso dos exemplos da alvenaria e das cirurgias é a margem de lucro dos empregadores. Seria custoso argumentar que qualquer coisa nos exemplos dados tem a ver com mudanças técnicas profundas nos ramos da produção mencionados.
Qual o ganho em segurança jurídica em questão, se potencialmente qualquer atividade produtiva pode de uma hora para outra, por negociação coletiva ou por opção do empregador (para os novos contratos) passar a ser abrangida por esse tipo de contrato? Que novas oportunidades de ocupação se criam, senão às custas da redução dos postos de trabalhos oferecidos hoje como de emprego por prazo indeterminado, cuja regulamentação garante ao trabalhador condições mais seguras e estáveis de venda da sua força de trabalho? Quando o Ministro fala em “consolidação de direitos”, não deixa de falar a verdade, mas omite quais direitos: afinal, o que se pretende é justamente legalizar as fraudes já existentes ao contrato de trabalho, mediante a chamada “pejotização” e outras modalidades. A consolidação do direito à menor responsabilização do empregador frente ao empregado.
Na verdade, o que está em debate nessa proposta é aproximar cada vez mais um contrato empregatício das formas de um contrato de prestação de serviços. Trata-se muito mais um retorno às formas de contratação pré-trabalhistas do que uma “modernização”.
O contrato intermitente, ou, zero hora
O segundo caso merece ainda mais destaque e críticas. O tal contrato de trabalho “por tempo” já havia tido seu nome próprio revelado pelo Valor Econômico no dia 02/09: contrato de trabalho intermitente. “Aquele em que a prestação de serviço depende da sazonalidade. Seria uma resposta a empresas e setores que passam por períodos de baixo movimento ou inatividade […]. É o caso de hotelaria e empresas do ramo de eventos, por exemplo. Conhecido como trabalho intermitente, esse tipo de contrato ainda precisa de regulamentação.”
Tal proposta foi levantada pela primeira vez quando da apresentação do PL 3785/2012. “O contrato de trabalho intermitente é aquele em que a prestação de serviços será descontínua, podendo compreender períodos determinados em dia ou hora, e alternar prestação de serviços e folgas, independentemente do tipo de atividade do empregado ou do empregador. […] O contrato de trabalho intermitente poderá ser objeto de convenção ou acordo coletivo de trabalho quanto aos demais aspectos não regulamentados por esta lei.” A proposta parecia feita de improviso, sequer apontando as alterações necessárias à CLT. Os “reformadores”, contudo, aprenderam sua lição, e em 2016 passa a tramitar o PLS 218/16, que, acrescentando a modalidade às hipóteses do artigo 443 da CLT, versa:
“Art. 452-A. São requisitos do contrato de trabalho intermitente: I – previsão em contrato de trabalho, acordo ou convenção coletiva de trabalho.”
O Globo esclarece melhor o significado da proposta: um contrato “por número de horas”, uma forma de permitir que empregadores possam contratar com jornada inferior à estipulada pela CLT e pagar direitos proporcionais a esse valor.” Nesses casos, o salário proporcional ao número de horas trabalhadas, bem como o cálculo das férias, 13º salário e FGTS. Tudo isso, é claro, em nome de “aperfeiçoar a legislação trabalhista”, tornar as regras menos “subjetivas”. Tudo em nome da segurança jurídica.
Aparentemente, contudo, os defensores de tais propostas consideram secundária a preservação da segurança jurídica trabalhista, plasmada no artigo 468 da CLT [2], base positiva dos princípios da proteção, da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, da condição mais benéfica, enfim, um dispositivo legal nada secundário! Em tempos em que tramita justamente a proposta do PL 4962/2016, que estabelece aos sindicatos poder para negociar o rebaixamento dos direitos de suas categorias a patamares inferiores que os da legislação, não deveria ser surpreendente que a fale-se tanto em negociação coletiva quando se fala no trabalho intermitente: a curto prazo seremos brindados com a possibilidade de uma série de categorias estabelecerem a modificação dos contratos de seus trabalhadores do atual modelo para este novo, mais flexível e precário.
O modelo do contrato de trabalho intermitente já existe em Portugal, sob o mesmo nome, desde a promulgação do Código do Trabalho em 2009. No país, a modalidade contratual foi responsável pela crescente precarização das relações de trabalho. O caso inglês é ainda mais expressivo: no país vigora há décadas o chamado “contrato de trabalho zero hora”, no qual o trabalhador vive em constante sobreaviso, se qualquer garantia do número de horas que trabalhará mensalmente e, por conseguinte, de sua remuneração. E o que concluem os ingleses dessa terrível experiência? Que “a verdade é que os contratos ‘zero horas’ estão muito longe de servirem apenas a estudantes ou pessoas que desejam trabalhar algumas horas por semana, finalidade para que teriam sido criados.”
E senão vejamos, que finalidades alega o Ministro Ronaldo Nogueira? Segundo o Zero Hora, “os técnicos acreditam que esse tipo de contrato vai beneficiar principalmente estudantes e aposentados que precisem complementar sua renda”. Um leitor que tomasse de boa-fé tal afirmação poderia pensar que os supostos “técnicos” deixaram de fazer sua lição de casa, afinal.
O que constatamos aqui? Que, à diferença do modelo britânico, o governo Temer não pretende implementar um modelo que exclua absolutamente os trabalhadores do gozo do direito a férias, por exemplo, mas um que modele esse direito proporcionalmente à intermitência do contrato. Quanto equilíbrio, quanta equivalência, quanta justiça! Os advogados e juízes trabalhistas nada tem a temer: terão mais trabalho do que nunca. Quem tem algo a perder, como sempre, é a classe trabalhadora, que se verá em condições ainda mais precárias de trabalho.
A polêmica da jornada de trabalho
Quando refletimos sobre o significado real dessa modalidade contratual, o suposto “aumento da jornada de trabalho para 12 horas” alardeado é, na verdade, uma cortina de fumaça, que concentra as críticas justamente no avesso da proposta.
O Ministro Ronaldo Nogueira frisou, por diversas vezes, que se preservará o limite de 44 horas semanais de trabalho, com mais a possibilidade de realização de mais 4 horas extraordinárias semanais. A proposta seria que, no bojo da elevação do negociado sobre o legislado, a jornada diária pudesse ser ampliada para compreender um total de 8 horas normais mais 4 extraordinárias ao menos uma vez por semana.
Mas, se tivermos em vista o paralelo com o contrato britânico “zero hora”, perceberemos que o que se busca é menos a realização dessa possibilidade e mais a sua garantia. Assim, será possível que um trabalhador sob contrato intermitente labore 12 horas em um dia – bem como que labore 4, ou 2, ou nenhuma. Tudo dependerá da vontade e necessidade do empregador. O Zero Hora explica bem a situação:
“No [contrato de trabalho] intermitente, a jornada de trabalho será menor do que as 44 horas previstas na legislação atual. […] O trabalho intermitente, por sua vez, é acionado pelo empregador conforme a necessidade. Um técnico do governo exemplifica: o dono de um buffet pode ter um vínculo desse tipo com uma equipe de garçons e cozinheiros. Nos fins de semana em que houver festa, os trabalhadores são chamados. Quando não houver, o empresário não terá custo”. Leia-se: e o trabalhador não receberá salário.
É com esse passe de mágica que o governo Temer pretende “gerar empregos”: na verdade, maquiando as estatísticas do desemprego através da proliferação de contratos de trabalho intermitentes, com jornadas e salários menores, permitindo um maior número de contratações.
Quem assistiu ao filme “Queimada” não poderá se esquecer do ensinamento do personagem de Marlon Brando sobre as vantagens comparativas, para os senhores, do trabalho assalariado em relação ao trabalho escravo. Podemos nos tranquilizar com a falar do Ministro do Trabalho, de que o aumento da jornada para 12 horas diárias, 6 dias por semana, seria “voltar à escravidão”: em verdade, quanto mais tempo da vida do trabalhador for livremente seu para passar fome, tanto melhor ao patrão.
[1] A esse respeito já buscamos apontar anteriormente as relações entre as “reformas” trabalhistas mundo afora e o atual estágio da crise capitalista. Vide em http://www.crivelli.com.br/blog/?p=483
[2] “Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Parágrafo único – Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança.”
O artigo em questão é atacado não só pela proposta conhecida como “negociado sobre legislado”, que permite ao sindicato rebaixar pela via da negociação os direitos da categoria que representa, mas também por propostas como a da “multifuncionalidade”, plasmada no PLS 190/2016. (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125664)