Por Douglas Rodrigues Barros
No presente artigo, apresentado na Semana de Orientação Filosófica e Acadêmica (SoFIA 2016) da UNIFESP, o autor aborda como os simpósios e eventos acadêmicos em geral se tornaram em uma espécie de “fast-food”, desnutridos de debates aprofundados e de compromisso com a construção do conhecimento. Sob a luz de Hegel, Zizek e Adorno, o autor tece uma vigorosa e aprofundada crítica ao modelo atual no qual as “universidades começam a funcionar como empresas lucrativas submetendo estudantes a uma produtividade vazia de sentido”.
Dado o curtíssimo espaço de tempo dessa exposição, não resta outra coisa senão a provocação: Ariano Suassuna em uma de suas palestras dizia algo verdadeiramente sábio. Ele dizia, mais ou menos, o seguinte: “Eu gosto da mentira, porque sou escritor. No Brasil a mentira resolve problemas insolúveis do nosso trato social, por exemplo; quando chamamos alguém para ir na nossa casa e a pessoa responde que dará um jeito de ir, sabemos que a pessoa não vai, e a pessoa em questão sabe que sabemos que ela não irá. Portanto, a pessoa sabe que está mentindo e nós sabemos que ela está mentindo e a pessoa sabe que sabemos que ela está mentindo, e, no entanto, todos nessa relação agem como se não soubessem da verdade”. Naturalmente, trata-se de um modo obsceno de relação social construída historicamente que muito tem a dizer sobre como se estrutura nossas relações.
O mesmo pode ser dito em um evento no qual cada pessoa tem quinze minutos de fala para expor um tema filosófico pesquisado: quando descobrimos que só temos quinze minutos para falar, reduzimos nossa análise instantaneamente e sabemos que esta nada acrescentará ao ouvinte. Do mesmo modo, o ouvinte sabe que nada acrescentará para ele. Portanto, sabemos que estamos mentindo e os ouvintes sabem que estamos mentindo, e nós sabemos que o ouvinte sabe que estamos mentindo para ele.
Nesse sentido, o Brasil pode ser considerado a vanguarda de um sentido específico da categoria de ideologia. Minha crítica não se dirige aos organizadores do evento, isso seria um tanto frívolo. O conceito de ilusão socialmente necessária que apresento aqui não é aquele que se tornou senso comum em grande parte do marxismo tradicional, a saber; uma simples ilusão na qual subjaz uma firme realidade objetiva que se oculta por trás dela.
Como demonstra Hegel na busca desiludida da figura do entendimento, quando a consciência busca olhar o que há por trás de suas afirmações, se depara apenas consigo mesma; vê que não há nada a não ser a realidade da vida que a fundamentou. Isso significa que a ideologia está na forma social e não na consciência dos agentes que a promovem.
Para citar Žižek:
A ilusão não está do lado do conhecimento, ela já está no lado da realidade mesmo, no que as pessoas fazem. O que eles não sabem é que sua realidade social mesma, sua atividade, é guiada por uma ilusão, por uma inversão fetichista. O que eles obliteram, o que eles apreendem erroneamente, não é a realidade, mas a ilusão que está estruturando sua realidade, sua atividade social real. Eles sabem muito bem como as coisas realmente são, mas eles agem como se não soubessem (ZIZEK, 1989, p.32)
Ora, esse fast-food filosófico que se tornou os simpósios pró-forma só revelam a nulidade de um sistema fracassado fomentado pelo eu-empresa propugnado pelo neoliberalismo desde finais de 1970. Eu-lattes, Tu-lattes, nós Lattessismo.
Minha tese de doutorado procura investigar justamente essa passagem para o eu-empresa como um sintoma do fracasso da experiência de liberdade. Analiso o trabalho refletindo sobre seus limites. Como dizia Marcuse em Razão e Revolução (2004, p.255): “a análise da forma dominante de trabalho é, simultaneamente, uma análise das premissas da sua abolição”.
Trata-se, pois, de refletir se para Hegel é, possível, Instituir uma nova forma de sociabilidade que não esteja respaldada pelo trabalho. É preciso lembrar que o conceito de trabalho surge, para Hegel, como uma submissão da “consciência-de-si”, que passa a ter seu desejo refreado. É no surgimento do conceito de trabalho que se anuncia o que Hegel denomina “o ser independente”, ou, ainda, a “coisidade”.
É preciso ressaltar que o trabalho emergirá como um mediador de relações entre as consciências e a vida, que agora passará por sua mediação. Pode-se afirmar que, com o trabalho, sujeito e objeto coincidem, ou, em termos hegelianos, a atitude mediadora do trabalho une a oposição – sujeito/objeto – que antes era unida pela imediata satisfação do desejo.
Vemos então que sujeito e objeto se unem numa atividade que em primeiro momento é alienada e, num segundo momento, retorna como atividade cumulativa. No trabalho o ato negativo impresso pela atividade formante (bildende Tätigkeit) se desdobra em dois pontos: na transformação sofrida pelo objeto e, ao mesmo tempo, na transformação do desejo, que agora está refreado.
Nesse sentido, ao mediar a coisa, o trabalho em Hegel efetua uma espécie de desdobramento do objeto. Para a consciência, que agora refreou seu desejo, resta-lhe então a busca de si. Em termos mais gerais, não podendo mais tranquilizar-se diretamente pelo consumo do objeto, a consciência inicia um autorreconhecimento de si por meio da mediação que faz com o objeto. E é no trabalho que essa busca de si ocorrerá. Ademais, é nessa busca que emerge, para Hegel, o surgimento da ideia de sujeito.
O trabalho realiza assim uma transfiguração (Verklären) do objeto cujo sujeito – responsável por essa transformação – imprime a ele seu meio-termo, ou melhor, a sua experiência. Ora, se há sujeito, acrescenta Hegel, há conceito. Dessa forma, há uma duplicidade recíproca que caracteriza o trabalho, qual seja: por um lado, ele é refreamento do desejo, sujeição à exterioridade que impulsiona uma busca de si; por outro, a consciência só atinge tais fins imprimindo no objeto a própria consciência, o que significa uma abstratização de sua atividade formante.
Há implicitamente nisso uma dialética existente entre liberdade e necessidade. Como a consciência tem seu desejo refreado – o que significa que a carência continua – e a única maneira de alcançar satisfação é através da mediação com o objeto, o desejo se torna consciência, na medida em que reconhece a carência e refreia seu impulso. Desse modo, como a consciência transforma o objeto numa relação de reciprocidade em que cessa a oposição, o desejo, por assim dizer, demora-se na coisa. A liberdade torna-se, então, algo só alcançado pela possibilidade de transformação do objeto, ou seja, pelo trabalho.
E, aqui, chegamos aos críticos termos de Adorno, que diz: “Dado que nada é sabido que não tenha passado pelo trabalho, o trabalho se torna, acertada e desacertadamente, absoluto, e a desgraça (Unheil) se torna salvação (Heil)”[1].
A própria alteração do desejo, sua transfiguração de desejo imediato para refreado, modifica as articulações da relação entre a consciência e o objeto. Entretanto, há ainda um aspecto existente entre o trabalho e a consciência que é a própria vida. Adorno, com sua argúcia, detecta que “é por isso que Hegel não pode […] ler o Espírito como um aspecto isolado do trabalho, mas deve, ao contrário, dissolver o trabalho como um momento do Espírito” (ADORNO, 2013, p. 98).
O trabalho, nesse sentido pode ser entendido como forma mesmo do entendimento, nesse caso, explicitado pela percepção de entidades separadas em oposição umas às outras (cisão entre desejo e trabalho/liberdade e necessidade), enquanto sua superação é o passo da razão que identifica a identidade dos opostos e o supera na atividade formante cumulativa. Em síntese é possível identificar uma superação da categoria do trabalho tendo em vista que ele aparece como um momento evanescente do espírito. O desdobramento da atividade formante, que em sua abstratização separa as esferas do trabalho manual e trabalho teórico, efetiva aquilo que Marx mais tarde vai chamar de produtividade capitalista. A marcha do Espírito conduziria para o reino da liberdade (preguiça)?
Ora, nessa produtividade ou atividade formante cumulativa se instaura uma possibilidade de superação, mas esta não se dá automaticamente como bem sabemos. Hegel em seus Jenenses da Filosofia do Espírito chega há algumas conclusões radicais que demonstram a perspectiva de uma Aufhebung (superação) para além da Atividade formante.
É preciso ter em vista que o trabalho modela e organiza o mundo objetivo utilizando a coisidade como meio permanente de perpetuação da vida. Foi Hegel quem primeiro chegou à conclusão de que as várias relações sociais que erigem as instituições se originam pela organização do trabalho social. Já há em suas análises juvenis a ideia de um trabalho geral que visa a produção para o mercado.
É justamente esse trabalho geral o responsável pela crescente disparidade da riqueza entre os homens. Por isso, Hegel deixa claro que:
“O quadro geral da sociedade é um quadro no qual o sistema de necessidade é um sistema de mutua dependência física”, diz Marcuse e continua (2004, p. 61), “O trabalho do indivíduo fracassa no esforço para garantir aquilo que suas necessidades exigem. Uma força estranha ao indivíduo, diante da qual ele é impotente, determina se, sim ou não, serão satisfeitas suas necessidades. O valor do produto do trabalho é independente do indivíduo e está sujeito a constante alteração. O próprio sistema de governo é igualmente anárquico. Quem governa é a totalidade de necessidades, cega e inconsciente, e as maneiras de satisfazê-las”.
Trabalho e estrutura de mercado se imbricam na estruturação de uma sociedade inconsciente e cega. Ora, com isso, a meu ver, a filosofia hegeliana dialoga frontalmente com nossa época do fast-food filosófico, do artigo prensadinho e da publicação vazia no sense.
Parece que a doença do hegelianismo permanece sendo a filosofia incontornável de nossa época. Em 2016, quarenta e seis anos depois da debacle do capital, o nervo estrutural de sua produção e reprodução social parecem ter entrado em curto-circuito permanente justamente porque o trabalho humano encontrou na acumulação da atividade formante – ou em termos marxianos; produtividade – seu limite.
Devido a isso, os polos contraditórios – capital/trabalho – em momentos de crise terminam por coincidir, enquanto uma alternativa efetiva de outra sociabilidade não surge no horizonte; o mercado toma cada vez mais para si as funções do Estado; os aparatos estatais, como as universidades começam a funcionar como empresas lucrativas submetendo estudantes a uma produtividade vazia de sentido; a esfera pública se privatiza e a esfera privada se torna pública no conteúdo vulgar das redes sociais; toda reforma resulta numa contrarreforma que traz consigo formas de pensamento arcaico; a segregação racial se torna política oficial com a brutal violência policial e o conteúdo de extrema-direita viraliza nas redes do ódio.
E mesmo com um limite intransponível – cuja transposição aponta, para qualquer um, o abismo – suas vítimas, masoquistas, entoam o coro da mais-produtividade e do mais-trabalho, tentando salvar a mais-valia rarefeita que nos guia para além da barbárie.
[1] ADORNO, T. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.93.
*Esse pequeno texto fez parte de uma exposição ocorrida na Semana de orientação filosófica (SoFIA 2016) na Universidade Federal de São Paulo no Campus Guarulhos. Como o leitor verá suas críticas se dirigem a acomodação mercadológica que cada vez mais os eventos na área das humanidades veem sofrendo. Originalmente intitulado: Os trabalhadores à luz de Hegel, foi no último momento modificado devido o curto espaço de tempo dado para a discussão.
2 comentários em “O fast-food filosófico dos simpósios de produção instantânea: Hegel e a impaciência do conceito”
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