O Vale do Silício à beira da crise: o problema capitalista das “start-ups” ou o estouro da manada de unicórnios

Por Antonio Balmer Monday, via Marxist.org, traduzido por Gabriel Landi Fazzio

Diz-se que um homem à beira do precipício não raciocina. A economia global está cheia de penhascos, sendo o setor tecnológico do Vale do Silício um dos mais íngremes, e os seus responsáveis podem ser ouvidos conversando nervosamente sobre… um eminente estouro da manada de unicórnios. Para aqueles não iniciados na linguagem orwelliana do Vale do Silício e seus círculos empresariais, seria fácil confundir tal conversa com os delírios de um lunático. Mas esse termo veio a descrever o principal perigo que ameaçava devastar o setor de tecnologia em uma repetição cataclísmica da bolha “ponto com” de 1999.


Criaturas míticas e capital fictício

O termo “unicórnio” descreve uma start-up privada, financiada com investimentos de risco, com uma avaliação extremamente alta: mais de $1 bilhão – algo que há poucos anos era considerado tão raro quanto cruzar caminhos com uma dessas criaturas míticas. Mas, ao longo dos últimos anos, o número de unicórnios tem crescido exponencialmente, conforme empreendedores de risco, fundos especulativos (hedge funds) e instituições de investimento se digladiam para injetar bilhões em start-ups de tecnologia, na esperança de multiplicar rapidamente suas riquezas com o menor esforço possível.

De menos de dez em 2010, existem agora 229 unicórnios em todo o mundo, com metade dessas start-ups instaladas na Califórnia. Surfando na onda da tecnologia inteligente e na proliferação de serviços baseados em aplicativos, elas incluem empresas como Uber (o maior unicórnio, avaliado em $ 68 bilhões), AirBnB, Instacart, Snapchat, Pinterest, Dropbox, etc. O valor total dessas companhias atinge a incrível cifra de $1,3 trilhões.

O crescimento de tirar o fôlego dessas empresas, juntamente com a promessa de altos retornos para os investidores, tem sido irresistível demais para os investidores capitalistas que já têm mais dinheiro à mão do que poderiam possivelmente gastar em uma vida. No entanto, desde o início de 2015, vários investidores e jornalistas proeminentes começaram a soar o alarme de bolha, depois de anos evitando a “palavra com b”, como um tabu.

Em uma severa distorção do mecanismo de mercado da oferta e da demanda, o aumento do preço das ações (resultado de valorizações estratosféricas), ao invés de restringir a demanda, intensificou apenas o frenesi dos investidores, temerosos de perder os espólios. Essa inversão da curva de demanda é tanto uma característica das bolhas especulativas quanto (dada a natureza direcionada pelo lucro do mercado e a ausência de controles racionais para a alocação global do investimento) uma dinâmica caótica periodicamente inevitável do sistema.

“Desta vez é diferente!”

A turbulência dos mercados globais no início de 2016 fez calafrios pelas espinhas dos investidores em todo o mundo, e não menos na Califórnia, onde uma série de start-ups de alto perfil tiveram suas avaliações reduzidas, trazendo de volta as memórias de 1999. Quando a bolha tecnológica estourou, em 2000, eliminou $6,2 trilhões em riqueza particular – aproximadamente a mesma quantidade de valor que foi perdido em imóveis nos EUA durante a última crise, entre 2007 e 2009. Considerando que o setor de tecnologia foi minimamente afetado pela crise de 2008, cortando apenas 1% de sua força de trabalho no momento, uma série de fatores sugerem que a indústria de tecnologia – e seu rebanho de unicórnios – não vai resistir tão bem durante a próxima crise.

Em primeiro lugar, o crescimento da indústria, que tem sido constante nos últimos cinco anos, significa que há muito mais empregos em jogo agora do que em relação a 1999, quando a internet ainda estava em sua infância. Cinco anos se passaram desde que as despesas e consumo relacionados à Internet ultrapassaram os das indústrias globais de agricultura ou energia. Esta corrida do ouro contemporânea tem impulsionado os níveis de emprego do setor de tecnologia de 2,2 milhões no momento da crise do “ponto com” para 6,7 milhões hoje. O setor responde por uma enorme parcela (11,6%) da força de trabalho do setor privado. Mesmo esses números não levam em conta os milhões de outros trabalhadores não-tecnológicos cujos empregos estão em jogo – aqueles que realmente fornecem serviços sob demanda, fazem as entregas em domicílio, mantêm as instalações e, de uma ou outra forma, executam o trabalho que permite a essas empresas operar além do mundo virtual.

A orgia da especulação se espalhou para imóveis também. Os residentes da Área da Baía de San Francisco podem atestar o impulso implacável dos preços dos aluguéis ao longo da última década, conduzido em grande parte pela chegada de milhares de empregados de elevado nível salarial, por um lado, e por um boom no desenvolvimento comercial por outro. Desde a década de 1960, San Francisco zoneou metade das terras da cidade para uso residencial, mas agora está em processo de aumentar sua área para escritórios em 15%, a fim de abrir espaço ao crescimento das empresas de tecnologia.

Mas a próxima avalanche não será uma mera repetição de 2000 nem de 2008. Dave McClure (ele mesmo um investidor de unicórnios) informa na Business Insider que, desta vez, as empresas da Fortune 500 estão se atando ao estouro da manada, dando cobertura às suas ações através do investimento em unicórnios ou adquirindo-os integralmente, ajudando assim a acrescentar um “toque especial” ao velho e familiar drama da última bolha: “A verdadeira inflexão não será que fundadores de empresas de tecnologia ou investidores perderão todo o seu dinheiro em unicórnios sobrevalorizados (embora, de fato, isso vá acontecer também) … A real inflexão é que milhares de empresas públicas sangrarão bilhões em perdas e valor ao longo dos próximos dez anos, como se os gigantescos arranha-céus de Manhattam colapsassem em câmera lenta… exceto que pode nem ser tão lento”.

McClure mantém a esperança de que, apesar da bolha, as novas start-ups “revolucionarão” o mercado das “senís” e “não inovadoras” empresas da Fortune 500, enriquecendo os afortunados investidores que escolheram o cavalo certo. Se o processo envolve a perda de 2,2 milhões de empregos, como em 2000, ou 8,7 milhões de empregos, como em 2008, não entra em seus cálculos…

A “Bolha de Tudo”

Notando que qualquer punhado de faíscas poderia incendiar a pradaria, Noah Smith, da Bloomberg, está entre aqueles que advertem à classe capitalista sobre a necessidade de se preocupar: “O perigo não é que estamos em uma bolha de unicórnios. O perigo não é sequer que estamos em uma bolha da tecnologia. O perigo é que estamos em uma Bolha de Tudo – que as avaliações em todos os aspectos são simplesmente muito altas… Então o que acontece quando o mercado imobiliário da China e bolhas financeiras finalmente estourarem, como ambos provavelmente estão a caminho de fazer? O que acontece quando o Federal Reserve aumentar as taxas de juros?”

Enquanto os investidores capitalistas envolvidos em um determinando ramo da indústria, como os unicórnios tecnológicos, estão empenhados em compreender o processo que se desenrola no Vale do Silício, os marxistas abordam a questão no contexto da crise estrutural do capitalismo global, de modo a compreender suas implicações sobre as lutas de classes. Em comparação com as recessões relativamente menores do início dos anos 90 e 2000, a crise global desencadeada em 2008 marcou uma nova época na crise orgânica do capitalismo. A incapacidade da classe dominante de resolver qualquer uma das contradições internas do sistema ou suas repercussões políticas preparou o caminho para uma explosão ainda mais grave no período seguinte.

Os capitalistas e seus governos em todo o mundo fizeram tudo o que estava ao seu alcance para estimular o crescimento desde 2008, sem sucesso. Apesar de suas políticas de austeridade, flexibilização, compra de títulos e manutenção de taxas de juros próximas de zero, o volume do comércio mundial caiu 0,8% no segundo trimestre de 2016, após a estagnação do primeiro trimestre. O New York Times informou que “o valor total das importações e exportações americanas caiu mais de $200 bilhões no ano passado. Durante os primeiros nove meses de 2016, o comércio caiu em mais $470 bilhões… É a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que o comércio com outras nações diminuiu durante um período de crescimento econômico”.

Qual é a verdadeira “classe criativa”?

Envolto na auto-ilusão de “mudar o mundo” com suas inovações de ponta e tecnologia “revolucionária”, o Vale do Silício existe em uma bolha em mais de um sentido. Os empreendedores-celebridades que hoje montam triunfantemente em seus unicórnios são propagandeados como sendo a “classe criativa”, mas como o investidor veterano Bill Gurley (sócio da bilionária empresa de investimentos Benchmark Capital) observou: “metade dos empresários de hoje, ou talvez mais – 60% ou 70% – não tomaram parte na crise de 99, de modo que eles não têm memória muscular alguma”.

Em outras palavras: não tendo vivido a última bolha tecnológica, a mais nova geração de empresários que atualmente desfruta do estilo de vida de novo rico serão pegos às cegas quando a debandada rumar em direção ao penhasco.

A maioria das empresas de capital de risco e grandes investidores, no entanto, estavam em cena em 2000 e aprendeu a montar acordos que garantam que eles serão os primeiros a obter o seu retorno se uma empresa naufragar. Mas como Nick Bilton escreveu para a Vanity Fair: “Isso não protege as centenas de milhares de pessoas que agora dependem de um salário dos ‘garotos de recado”, as start-ups, ou dos “revolucionadores’ dos táxis. Tampouco ajuda as economias familiares, que têm comprado o discurso hype de Zynga, Yelp ou Twitter e investido nelas seus recursos, que continuam a se desvalorizar”.

As sementes de engenhosidade que vêm do Vale do Silício só vão amadurecer plenamente quando o caos irracional do mercado for substituído pelo planejamento consciente pela classe trabalhadora em escala internacional. Os campos virtuais da tecnologia inteligente e redes sociais, baseados na conexão entre milhões de pessoas em todo o mundo, são na realidade apenas um vislumbre da tecnologia socialista e desempenharão um papel central na coordenação democrática dos recursos da humanidade no futuro. Quando a classe trabalhadora se mobilizar para varrer os anacrônicos direitos de propriedade privada daquelas que são as mais socializadas tecnologias da história, só então a criatividade e o potencial de toda a humanidade será finalmente desencadeado, liberto.

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