Por Rodrigo Gonsalves
Ao final do primeiro capítulo do Manifesto, Marx e Engels são contundentes ao afirmarem que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. Desde 1848, data de publicação da obra acima mencionada, o capitalismo já foi colocado em xeque em diversas ocasiões e saiu, se é que pode-se utilizar este diagnóstico em um mundo cheio de contradições, “vitorioso”. Desta forma, ao retornarmos ao esperançoso contexto do século XIX no qual Marx tantas vezes prenunciou a ruína deste perverso sistema, e analisarmos as palavras proféticas dos dois autores, surge a pergunta: onde estão esses coveiros?
No cerne da teoria de Marx está a luta de classes, “tão central que ele [Marx] a vê como nada menos do que a força que move a história humana” (EAGLETON, 2012), a única capaz de pôr um fim na hegemonia do capital, e a burguesia, voraz por aumentar seus lucros, acentuaria este embate de tal maneira que proporcionaria aos trabalhadores a oportunidade de, munidos de uma consciência de classe, causar a revolução que nos levaria ao tão aguardado comunismo. Nos valendo aqui da passagem de Stalin, lemos que:
“…as relações de produção capitalistas deixaram de corresponder ao estado das forças produtivas da sociedade e entraram em irreconciliável contradição com elas. Isto quer dizer que o capitalismo traz consigo a revolução, uma revolução que está destinada a substituir a atual propriedade capitalista dos meios de produção pela propriedade socialista. Isto quer dizer que a característica fundamental do regime capitalista é a mais aguda luta de classes entre exploradores e explorados.” (STALIN, 1947 apud KALOCHIN, 1955)
Qualquer leitor mais habituado às ideias de Marx, consegue abstrair desta passagem uma interpretação, quase “médica”, onde a relação entre um diagnóstico e um prognóstico se dá de maneira tão automática e clara, quanto uma concatenação advinda de uma árvore porfírica (ou de Porfírio). Porém, neste automatismo reside uma problemática noção estrutural, em seu cerne, impera algo para além de uma mera aposta ingênua da supremacia da razão – há elementos ou traços de uma crença. Trata-se de um salto dado de um movimento que hoje, notadamente, não é tão simples ou automático, quando antes parecia ser.
Se para marxistas em geral, esta certeza do fim que ronda a teoria de Marx é patente, para os ortodoxos, é cabal – o antagonismo entre os que têm interesse em baixar os salários contra aqueles que querem subi-lo, por exemplo, será o responsável por destruir o sistema que o sustenta. Todavia, esta ortodoxia por vezes desemboca em um dogmatismo incapaz de ler a realidade na qual seus adeptos se inserem, de perceber as diferentes nuances na qual o capitalismo se desenvolve de forma que consiga coibir sua própria derrocada. Popularmente, diz-se que “os capitalistas leram Marx”, e sempre que uma “suposta” crise como a de 2008 se manifesta e coloca todo o sistema sob escrutínio, ele mesmo gera maneiras de impedir tal destino fatal. E a luta de classes mais uma vez perde a oportunidade de provocar a tomada de poder por parte dos trabalhadores e a consequente revolução que poria fim a todo este perverso cenário.
Remetendo-nos ao tema da mesa, “Comunismo e catastrofismo”, é interessante ver no que fora dito até agora, ressonâncias da corrente popularizada pelo naturalista Georges Cuvier (1830) ainda antes da publicação do Manifesto. Cuvier dizia que as eras geológicas acabavam de forma abrupta, com uma catástrofe, – daí o termo que dá nome a corrente - uma “revolução”. Revoluções estas que não faziam parte de algum plano “divino”, diferente de um desenvolvimento gradual que já previa desde o início dos tempos um fim último, uma crença no fim capaz de deixar-nos inerte em relação àquilo que ocorrerá de qualquer forma. Esse movimento naturalizado da catástrofe que esperava pela “revolução”, pareceu engessar e cristalizar numa aposta ideológica o fim obrigatório ou uma espécie de “logo menos” da marcha da história, marcando a esperança de gerações e mais gerações de pessoas. Porém, nesta aposta, a maior marca da catástrofe mostrou-se na capacidade criativa do prolongamento dos meios de exploração dentro da realidade capitalista, em nome de sua perpetuação – logo, vivemos distopicamente essa pós-catástrofe.
Essa discussão é complexa, faremos aqui um breve desvio e nos valeremos de alguns filmes para ilustrar e auxiliar na apresentação do que está em jogo nessa discussão. Talvez seja mais claro se dissermos que, não estamos lidando com a metáfora óbvia e incisiva de catástrofe que o remake de George Miller, Mad Max: Fury Road (2015) sugere; mas sim, de um aspecto um tanto mais ambíguo da catástrofe, trata-se da compreensão do curioso traço litorâneo que denotamos desta distopia – pois essas delimitações não são marcas claras – não se sabe tão bem onde finda a terra e inicia o mar, embora saibamos que ali há um encontro e uma separação amalgamadas. O filme que nos auxilia melhor para ilustrar este ponto de catástrofe, é o brilhante filme de Edgar Wright de 2004, o “Shaun of the Dead” escrito por Simon Pegg, a “paródia” do clássico do horror de George Romero de 1978 “Dawn of the Dead” ou Madrugada dos Mortos. Se no filme original, vemos o elemento distópico das funções sociais do Estado reduzidas ao seu mínimo ou ínfimo, completamente incapazes de darem conta desta nova realidade que se configura, obrigando os personagens sobreviventes a buscarem por si próprios novas formas de existir, na paródia encontramos uma cena memorável em que Shaun, o personagem principal, acorda e segue realizando suas tarefas rotineiras, segue seu ritual matinal em direção ao trabalho, passa para buscar um sorvete na “loja de conveniências” como faz em todas as manhãs – sem, em momento algum, se dar conta de que a hecatombe já ocorrera. Aqui, nesta cena, enxergamos a construção de um traço anamórfico desta catástrofe, temos o segundo plano, borrado e já completamente reconfigurado pela devastação dos mortosvivos, enquanto o personagem de Shaun segue, quase como se já agisse sabendo exatamente que a catástrofe já havia ocorrido, como se nada houvesse mudado, até mesmo em momentos satiricamente curiosos, onde a nova configuração social invade sua realidade e os zumbis se apresentam diante de seus olhos, o herói apenas segue sua rotina rumo ao trabalho. Esta é a sutileza que possivelmente melhor traduz a complexa composição da realidade catastrófica da atualidade.
Um pensador que pode nos auxiliar a localizar alguns pontos-de-fuga nesta discussão é o filósofo esloveno Slavoj Žižek que, em sua prescrição do viver no final dos tempos passa a discutir a queda da estrutura Pai-orientada da sociedade sob uma leitura filosófica-psicanalítica. Nesta discussão, há uma lição que o muitos intelectuais esquerdistas da cultura, segundo o mesmo, ainda não pareceram captar do insight de Marx e Engels presente no primeiro capítulo do Manifesto Comunista. Tantos ainda focam sua crítica na prática e na ideologia patriarcal, e parece que ainda não se darem conta de que o caráter hegemônico patriarcal já caiu por terra. Žižek numa nota de rodapé, aponta para um pivô teórico da alteração paradigmática da tessitura social, ou então, a noção de Nome-do-Pai, e seu papel de:
“…estruturar o espaço simbólico, sustentando proibições que constituem e estabilizam desejos – o que acontece com esse papel com a ascensão da autoridade materna? [pergunta o autor e, seguindo a citação] Também, para Lacan, o Nome-do-Pai apenas funciona quando reconhecido – referido – pela mãe, sendo assim, para ele, o Nome-doPai é um princípio estruturante para todo o campo da diferença sexual. Consequentemente, pode-se imaginar um casal lésbico criando uma criança onde, mesmo não havendo pai, o Nome-do-Pai está completamente operativo. Então, o que acontece com a diferença sexual, assim como, com a função simbólica do pai, com a ascensão da autoridade materna? “(Žižek, p.50, 2002)
São perguntas feitas pelo mesmo. Logo, uma coisa é admitir diante da desintegração da autoridade paterna, a tese da sociedade globalmente perversa no capitalismo tardio, onde seus membros, “narcisistas patológicos” se vêem superegoicamente convidados à gozar e outra é a aposta convicta na figura da nova mãe com novas configurações e diferentes coordenadas ideológicas para dar conta desse vazio – basicamente por tratar-se apenas de uma alternância e nem de perto da manifestação de um Novo. Longe disto, Žižek grifa nessa situação ainda o aspecto sentimental-católico, que por vezes surge, na narrativa heróica dos pais solteiros que fazem a família se segurar diante do abandono ou ausência da outra metade – uma narrativa, clássico trágica que não lê tão bem essas nuances do horror e da catástrofe.
Este termo é chave e corrobora para compreendermos a postulação de Žižek de que a “formulação crítica de que a ideologia patriarcal continua sendo a ideologia hegemônica é a forma da ideologia hegemônica dos nossos tempos – sua função, é nos permitir escapar dos entraves da permissividade hedonista que é atualmente hegemônica” (Žižek, p.50, 2002). E aqui, recai o risco do apaixonamento pela narrativa Mad Max: Fury Road. Essa linha de pensamento recai no que pareceria uma solução em duas frentes, seguindo Žižek: a) pelo “verdadeiro” multiculturalismo ou b) abandono da possibilidade universal enquanto tal. Sendo que ambas soluções são problemáticas, uma vez que o “verdadeiro” (entre aspas) multiculturalismo coincide com a neutralidade legal universal, e, sendo assim, impede que cada cultura particular possa afirmar sua identidade (Žižek, 2002) – temos consequentemente, problemas por ambas as vias. Cito a sugestão de Žižek à uma questão candente: “A coisa a se fazer é mudar completamente o campo, introduzindo um Universal totalmente diferente, esse de uma luta antagonista da qual, mais do que substituir ou tomar lugar entre comunidades particulares, racha cada comunidade por dentro, fazendo que o link “transcultural” entre comunidades seja o da luta compartilhada” (Žižek, p. 53, 2002). E é, justamente neste movimento que, a paródia “Shaun of the Dead” parece ser, curiosamente, mais cuidadosa diante de sua proposta do que fazer, frente à catástrofe.
Atualmente, problematizar a catástrofe e pensar o futuro não se trata de alarmismo mas sim, de um imperativo crítico. Especialmente, quando não fazê-lo, cada vez mais, parece um gesto de mau-caratismo e/ou de uma má-fé sartriana. Claramente, há um posicionamento que divide e que marca, este parece ser cada vez mais vital para esta discussão e trata-se, da indagação fundamental – se vivemos a catástrofe, como operar? Segue a passagem de Žižek:
“[O] capitalismo liberal-democrático é tido enquanto melhor cenário social possível; tudo que se pode fazer é torná-lo mais justo, tolerante e daí por diante. Uma simples porém pertinente questão surge aqui: se o capitalismo liberal-democrático é, se não a melhor, então a forma de sociedade menos pior, por que não deveríamos simplesmente nos resignar a ele de uma forma madura, e até aceitá-lo ardentemente? Por que insistir na hipótese comunista, contra todas as possibilidades?” (Žižek, trad. livre 2009)
Tomar uma atitude verdadeiramente crítica diante das questões colocadas e agir diante da inércia da luta e das constantes “vitórias” do capitalismo é o dever de todo aquele que, longe do conformismo de aceitar, acredita na hipótese comunista, no fato de que o capitalismo caminha para seu próprio fim com as contradições que cria e para além disto, enxerga neste movimento que nós somos aqueles que esperávamos (outra prescrição zizekiana). E ao contrário de, como aponta Zygmunt Bauman, sermos otimistas e acreditarmos que este é o melhor mundo possível – ou mesmo pessimistas e acharmos que os otimistas podem estar certos – devemos nos posicionarmos como esperançosos. Todavia, não no sentido de alguém que espera pacientemente e inerte que a derrocada do sistema aconteça, como veemente criticamos no começo desta fala, e sim buscando a coerência e capacidade de liderar os movimentos de transformação do mundo em prol deste novo.
As crises recentes pelas quais o sistema capitalista passou só servem para nos mostrar que quem se enredou, que quem fora a principal vítima, foi a esquerda. A esquerda, representada em um partido vanguardista, que teria o papel atribuído por Lênin para liderar a massa trabalhadora vítima deste sistema, é aquela que acabou por fazer concessões. Por vezes, inclusive, covardemente dizer que o marxismo era datado. E este é seu maior erro, pois já assinalava o mesmo Lênin em 1910 que “o marxismo não é um dogma morto, não é uma qualquer doutrina acabada, pronta, imutável, mas um guia vivo para ação, precisamente por isso não pode deixar de refletir em si a mudança surpreendentemente brusca das condições da vida social”. Agora, o grande ponto que devemos colocar em questão depois desta breve articulação, vem justamente na insistência da hipótese comunista, insistir neste Novo Universal e finalmente, entendermos que nós somos os coveiros que esperávamos, cabe agora, diante do cenário atual e apenas uma final ressalva: “Como não nos apaixonarmos por nós mesmos ao longo deste processo?”
*Texto apresentado no evento “Futuro e Hipótese Comunista” realizado pelo Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia na UFABC
BIBLIOGRAFIA:
BAUMAN, Z. Zygmunt Bauman: “Vivemos o fim do futuro”. Disponível em: http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmuntbaumanbvivemosofimdofuturo.html, acesso em 20/09/2016.
EAGLETON, T. Marx Estava Certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
KALOCHIN, F. O Desenvolvimento Como Luta Entre os Contrários. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/materialismo/05.htm#c5tr20, acesso em 20/09/2016.
LENIN, V. Acerca de algumas particularidades do desenvolvimento histórico do marxismo. Disponível: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1910/12/23.htm, acesso em 20/09/2016.
MARX, K.; Engels, ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: CHED, 1980.
ŽIŽEK, S. Como começar do início in New Left Review 57. Disponível em: https://newleftreview.org/II/57/slavojzizekhowtobeginfromthebeginning, acesso em 20/09/2016.
ŽIŽEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo: 2002.