Por Joelton Nascimento
A Teoria Geral do Direito e o Marxismo (1924) fez parte de um intenso debate na Rússia pós-revolucionária dos anos 20 (HEAD, 2010). Entretanto, após os expurgos stalinistas dos anos 30, que vitimaram diversos intelectuais, dentre os quais Evgeny Pachukanis, o livro caiu em um relativo esquecimento. Só foi “reabilitado” na União Soviética nos anos 50 e só foi “redescoberto” efetivamente no Ocidente nos anos 70 (LOISEU, 2002).
I
Pachukanis elabora nesta obra uma tentativa de análise baseada em uma “microscopia social” tal como aquela realizada por Marx em O Capital, isto é, também ele elaborou uma análise da forma mais abstrata e simples a partir da qual as formas jurídicas modernas desenvolvidas funcionam, assim como Marx desenvolveu a mercadoria como a forma elementar da sociabilidade capitalista (NAVES, 2000, p. 40). Esta célula, ou átomo da teoria jurídica, e portanto, seu ponto de partida, é o sujeito de direito (PASUKANIS, 1989, p. 81). É digno de nota a clareza com a qual Pachukanis levanta este problema: “O homem torna-se sujeito de direito” diz- nos ele, “com a mesma necessidade que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada das propriedades enigmáticas do valor” (1989, p. 35).
O sujeito de direito é, fundamentalmente, o suporte necessário de toda troca de mercadoria e de valor. Algo que se exprime em O Capital, quando Marx afirma que os “guardiões” das mercadorias precisam se relacionar juridicamente como pessoas, cujas vontades residem nas mercadorias e no contrato de troca (MARX, 1996, p. 209). Na medida em que a mercadoria se transmuta em portadora de valor, também seu portador se transmuta em sujeito abstrato de direito. O que significa esta tese tão bem exposta por Pachukanis neste livro? Significa o vínculo lógico e histórico entre a mercadoria e seu portador, entre a forma de valor da mercadoria e a forma do sujeito de direito. A teoria burguesa do direito, em suas diversas formas, novas e velhas, desde o normativismo kelseniano até a teoria dos sistemas de Luhmann, considera a categoria de sujeito de direito como algo facilmente dedutível de um princípio especulativo ou empírico qualquer – basta lembrar que na volumosa A Teoria Pura do Direito de Kelsen, a questão do sujeito de direito ocupa poucas páginas. É preciso, segundo Pachukanis, ao invés disso, “considerar historicamente toda forma social” (1989, p. 83), e a questão mais urgente, no que diz respeito à forma do sujeito de direito é: como o indivíduo sai de sua existência “zoológica” (ou de um “mero vivente”, como diria Walter Benjamin) para uma existência como “sujeito de direito”? Para Pachukanis, o sujeito de direito surge no interior do processo exposto por Marx.
Assim como a diversidade natural das propriedades úteis de um produto só aparece na mercadoria sob a forma de simples invólucro de seu valor e como as variedades concretas do trabalho humano se dissolvem no trabalho humano abstrato, como criador de valor igualmente a diversidade concreta da relação do homem com a coisa aparece como vontade abstrata do proprietário e todas as particularidades concretas, que distinguem um representante da espécie Homo sapiens de outro, se dissolvem na abstração do homem em geral, do homem como sujeito de direito (1989, p. 86 (grifei)).
Neste fragmento lemos uma reprodução perfeita da ordem lógica da exposição de Pachukanis. Da forma fundamental de valor da mercadoria, ao trabalho abstrato, chegando até o sujeito de direito. Enfim, “o fetichismo da mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico” (1989, p. 90). Quais são as principais consequências da tese pachukaniana do vínculo essencial entre as formas jurídicas e a forma valor? Enumeremos algumas[1]:
1.) Torna-se possível compreender, a partir destas categorias expostas, a evolução das formas embrionárias do direito moderno nas sociedades pré-capitalistas. Ou seja, torna-se compreensível a história de certas práticas reputadas como as “origens” de institutos jurídicos modernos.[2] Deste modo, deve ser encontrado no trabalho de historiadores do direito ao menos uma relação de intensa proximidade entre as formas jurídicas (como contrato, sujeito de direito, normas de caráter abstrato, com generalidade de conteúdo e destinatário, etc.) e a existência de espaços de ativa troca mercantil nas sociedades pré-capitalistas.
2.) O direito, ou a vigência de uma esfera jurídica de relações como centro da normatividade social, está intrinsecamente ligada às sociedades produtoras de mercadorias, onde a lei do valor ainda é o centro da socialização. Dito de outro modo: somente se desenvolvem formas jurídicas onde a valor se encontra, de algum modo, presente e também em desenvolvimento como forma Esta afirmação se desdobra em outras duas na análise de Pachukanis:
2.1.) Como consequência do que precede, o jurista russo defenderá o enfraquecimento e consequente perecimento das formas jurídicas burguesas, acompanhando as teses já defendidas pelo Marx da Crítica do Programa de Gotha, e mesmo pelo Lênin de Estado e Revolução. Para Pachukanis não era possível, como muitos revolucionários queriam, iniciar a investigação por categorias jurídicas próprias do proletariado, que juntas resultariam em uma Teoria Geral do Direito “marxista” e sua justificativa é bastante emblemática. As categorias não são neutras, responde o jurista, antes advêm de processos históricos e sociais concretos, de sorte que não há uma categoria como o “valor proletário” ou o “lucro proletário” ou um “capital proletário”, pois as categorias são formas intrinsecamente ligadas à existência e à dominação de classe. Assim, de igual maneira, não há formas jurídicas que não contenham em si seus conteúdos fetichistas instauradores do poder de classe. Resta a ele concluir que: “O desaparecimento das categorias do direito burguês significará nestas condições o desaparecimento do direito em geral, isto é, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas” (1989, p. 26)[3].
2.2.) Portanto, não há que se falar em um “direito socialista” ainda presente após a eventual superação da sociedade capitalista e de seu poder de classe. Após uma fase de transição, com a superação da forma valor, e consequentemente, superação do momento em que as relações sociais estariam sob a égide da existência do capital, também se superaria o momento jurídico das relações, ou seja, o momento em que o centro da normatividade social se encontra nos indivíduos representados como sujeitos de direito, nos contratos, nas normas gerais abstratas etc., que seriam substituídas por formas técnico-organizacionais de regulação social.
3.) Para Pachukanis, o “estado de direito” é uma ficção excelentemente funcional. O Estado, um fator de força, é elevado à condição de fator jurídico nas teorias e nas práticas normais dos teóricos e dos sistemas jurídicos tradicionais. Nestas teorias do estado de direito, o fato de figurar comumente o próprio Estado como sujeito de direito torna-o um ente sobretudo normativamente estatuído. Ideia também presente em quase todas as teorias políticas modernas, implica dizer que a legitimidade das ações do Estado advém do fato deste se submeter à forma jurídica e à legalidade. Kelsen é o ponto extremo dessa posição, tendo identificado ao fim e ao cabo estado e direito, ou mais precisamente, tendo afirmado a forma do Estado como uma forma particular de categoria jurídica (1999, p. 310). Todavia, para Pachukanis, são em estados excepcionais, onde o sistema produtor de mercadorias como um todo se coloca em perigo, que assistimos à emergência do estado como fator de poder despido de suas máscaras jurídicas formais. Para Pachukanis, parece não só haver uma clivagem entre Estado e direito. Mas mais do que isso, é nesta clivagem que se pode compreender a natureza mesma destas categorias e as instituições sociais delas derivadas.
II
Não foi por acaso a redescoberta de Pachukanis entre os anos 60 e 70. Neste período assistiu-se a uma reconstrução da crítica marxista do estado e do direito. Segundo a boa retomada das discussões deste período feita por Ingo Elbe (2013), a visão engelsiana havia tomado o centro das concepções marxistas[4]. Segundo esta visão:
“Em Ludwig Feuerbach Engels afirma que o fato de todas as necessidades nas sociedades de classe serem articuladas através da vontade do estado é “o aspecto formal do tema –aquele que é autoevidente”. A questão principal para uma teoria materialista do estado, entretanto, é“qual é o conteúdo desta vontade meramente formal?” A resposta desta questão, baseada puramente em conteúdo concernente à vontade do estado é, para Engels, o reconhecimento de “que na história moderna a vontade do estado é, como um todo, determinada pelas necessidades cambiantes da sociedade civil, em face da supremacia desta ou daquela classe, em última análise pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca” (ELBE, 2013, p. 5/13).”
Ou seja, para Engels acrítica ao estado no capitalismo é centralmente uma crítica de seu conteúdo de classe, e oblitera, em sua própria definição, a forma social do estado. Longo de ser “autoevidente”, contudo, a crítica da forma social do estado é imprescindível e sem ela a crítica do conteúdo perde sua efetividade e abrangência. O próprio Engels, ao fim de sua vida, reconheceu sua ênfase demasiada no conteúdo do estado em detrimento de sua forma:
“Mais tarde [em relação a 1886, JN] Engels assegurou que “nós todos” colocamos e tínhamos que colocar “o acento principal na dedução das ideias políticas, jurídicas e semelhantes, bem como nas ações mediadas através destas ideias, a partir das relações econômicas básicas”. “E ao fazer isto descuidamos do lado formal em benefício do conteúdo: o modo como estas ideias, representações, etc., surgem”. Engels considerou esta falta de mediação entre conteúdo e forma (“sempre dei por esta falta post festum”) como um dos “lados da coisa, a qual… todos nós descuidamos, muito mais do que ela merecia” (Engels a Franz Mehring, 14/07/1893) (SCHÄFER, 1990, p. 99).”
E qual foi a consequência disso?
“A partir deste modo de considerar o estado histórico-universalmente fixado no conteúdo, pode-se deduzir que Engels perde de vista a questão realmente interessante, nomeadamente, sobre o porquê do conteúdo de classe no capitalismo tomar a forma específica da autoridade pública (ELBE, 2013, p. 5/13).”
Os escritos de Pachukanis, especialmente A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, podem servir como um antídoto à crítica engelsiana centrada no conteúdo do direito e do estado. Pachukanis mostrou que “os autores marxistas, quando falam de conceitos jurídicos, pensam essencialmente no conteúdo concreto do ordenamento jurídico característico de uma época dada, significa dizer, o que os homens consideram como sendo o direito em uma determinada etapa da evolução” (1989, p. 18). Se voltando contra a concepção de Plekhanov, diz-nos Pachukanis:
“O conceito de direito aqui é considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica enquanto tal não é colocada. Contudo não há dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada (PASUKANIS, 1989, p. 18).”
O resultado mais importante desta visão estreita da crítica marxista do estado centrada no conteúdo é que ela resulta em uma concepção onde o planejamento econômico estatal e a socialização direta aparecem como equivalentes. A tarefa do movimento operário passaria a ser “comandar” o poder centralizador, planejador e monopolizador advindo do desenvolvimento mesmo do capitalismo, alterando-lhe somente o conteúdo classista, que, ademais, seria uma consequência natural da obsolescência da classe burguesa (ENGELS, 1978, p. 381). E aqui novamente, caberia uma longa mas crucial observação de Gert Schäfer:
“Engels (também Hilferding e Lenin) confunde a sociabilidade específica da produção capitalista de mercadorias e o seu modo característico de planejamento com a produção imediatamente social. A “produção” capitalista “privada” não desaparece pelo simples fato de ser um capital da sociedade, “produção para a conta associada de muitos” capitalistas. Não se elimina a “inexistência de planificação” no capitalismo a partir do momento em que os trusts e outras formas semelhantes de organização do capital passam a conceber planos em larga escala. De fato, Engels tinha empregado um conceito de produção privada que se referia àquilo que hoje chamamos de capitalismo do empresário, e a “falta de planejamento” era entendida por ele num sentido limitado; no seu entender, o fim da “falta de planejamento” dar-se-ia através do controle de mercados tal como é exercitado nos trusts, o qual permite um planejamento de vendas, das quantidades e dos preços, o que coloca em cheque a ideia de que a livre concorrência constitui a forma única e absoluta de movimentar o capital. Entretanto, Engels passou ao largo do problema decisivo, que é o da relação da lei do valor com as novas formas assumidas pela monopolização e pela intervenção estatal; e mais tarde Lenin identificou falsamente a “anarquia” do modo capitalista de produção com a efetividade desenfreada da “anarquia do mercado”, com o assim chamado capitalismo da concorrência (1990, p. 132-133).”
A Teoria Geral do Direito e o Marxismo inaugurou um poderoso princípio de contraponto a este modo de crítica com importantes repercussões para o estudo do direito e do estado.
III
Em 1924, quando Pachukanis escreveu A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, os intelectuais russos engajados nos problemas teóricos relacionados ao direito e ao estado gozavam de grande liberdade (SALGADO, 1989, p. 128). Esta situação muda drasticamente nos últimos anos da década de 20, e no 16º Congresso do Partido Comunista, em 1930, Stalin se pronuncia frontal e inequivocamente contra as teorias que, na esteira de Engels e de Lênin, viam o gradual fenecimento do estado e do direito como objetivos finais da superação comunista das sociedades capitalistas.[5]
Desde 1925 ocorria um debate acadêmico e político acerca desse suposto “fenecimento do estado e do direito” após a revolução e do contraditório fortalecimento efetivo do estado e de sua maquinaria sob a égide do Partido Comunista Russo. A partir de 1928, entretanto, o debate acerca desta contradição deixa de ser apenas acadêmico e passa com toda a força para a alta esfera da política soviética (BEIRNE; SHARLET, 1982).
Em abril de 1929, Stálin, ainda Secretário Geral do Partido, advertia os líderes quanto ao desvio “direitista”, que ele atribuía principalmente a Bukharin e seus seguidores, e suas hostilidades em relação ao estado operário. Segundo ele, Bukharin, em oposição a Lênin, teria se equivocado inteiramente ao interpretar os escritos de Marx sobre a superação do estado – e consequentemente do direito. E ao fazê-lo, Bukharin recaía em um erro “semi- anarquista”, pois ignorava o período de “transição” na qual o estado proletário não só permaneceria existindo quanto estava sendo reforçado (STALIN, 1954)[6].
Neste mesmo ano de 1929 Pachukanis publica o artigo Economia e Regulação Jurídica, na importante revista Revoliustiia prava. O objeto da análise de Pachukanis neste artigo é a regulação jurídica da “economia nacional”, tendo em vista tanto a experiência soviética, passados mais de uma década da Revolução de 1917, quanto a experiência dos países capitalistas que buscaram erigir limites e controles jurídicos e estatais ao desenvolvimento capitalista, em especial a Alemanha e a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Na forma de pergunta o problema colocado por Pachukanis é o seguinte: quais são as possibilidades e os limites da regulação jurídico-estatal da economia capitalista, em vista das novas experiências históricas?
Em primeiro lugar, o jurista russo assevera ainda a perspectiva que marca sua obra de 1924, a saber, a do fenecimento do direito e do estado. Que a revolução socialista tenha aumentado a consciência social sobre os processos econômicos parece fora de dúvida, segundo ele. Mas que, no socialismo, isso não signifique um suposto aumento do papel do direito sobre a economia, mas um passo rumo ao fenecimento deste, também lhe parece fora de dúvida (PASHUKANIS, 1980, p. 239-240). Entretanto, Pachukanis constrói, neste ensejo, objeções sérias quanto ao alcance político das análises críticas do valor levados adiante pela escola de Rubin. Ainda que sutilmente, ele mesmo, Pachukanis, assume que em sua obra de 1924 ele próprio possuía “outras visões sobre esta questão” (1980, p. 271, n.10).
Márcio Bilharinho Naves já nos mostrou que para o Pachukanis da primeira edição de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo [1924], em consonância com sua conceituação das categorias sociais (forma valor-capital, forma jurídica), a definição mais precisa dos esforços revolucionários na Rússia ainda era a de um “capitalismo de Estado proletário”. Já na terceira edição da obra, de 1926, ele se vê instado a rever essa caracterização em uma autocrítica de viés político e regressivo – a nosso ver – a despeito da precisão conceitual que já havia sido atingida ali (NAVES, 2000, p. 92).
De qualquer modo, uma pergunta aqui se coloca: que divergência em relação a ele mesmo e a Rubin Pachukanis realiza neste texto de 1929 sobre o problema do valor, às portas da grande virada dos anos 30, que marca o fim dos debates teóricos sobre o tema na URSS?
Em primeiro lugar, o jurista russo questiona a centralidade da crítica marxiana do valor, tendo em vista a perspectiva do “declínio” do capitalismo como formação social promovido a partir da Revolução Soviética. Seguindo essa observação, Pachukanis construirá uma argumentação segundo a qual a centralidade da forma valor como matriz conceitual da crítica da economia política foi superdimensionada por alguns autores. Sem reconhecer esmiuçadamente – senão apenas indireta e vagamente em uma nota de rodapé – que isso também se aplica a seu A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Pachukanis afirma que esta centralidade só se aplica satisfatoriamente aos países nos quais o capitalismo vige plenamente; onde as relações econômicas passam gradativamente a ser conscientes e organizadas – a saber, socialistas – não se deveria tomar a análise da forma valor como centro[7]. Nas palavras do próprio Pachukanis:
“A lei do valor em geral ganhou um significado desproporcionalmente enorme entre nós. Então, por exemplo, a construção de uma teoria da economia do período de transição foi quase que inteiramente reduzida ao problema dos limites da efetividade da lei do valor em nossa economia (1980, p. 250-251).”
Para o Pachukanis de 1929 não só a assim chamada “lei do valor” não explica satisfatoriamente a dinâmica econômica do socialismo soviético, como não explicaria as formas mais avançadas de capitalismo. Criticando neste particular sobretudo a Preobrazhensky, o jurista russo defenderá as intervenções políticas como decisivas no que tange ao modo de atuação e regulação do funcionamento da “lei do valor”. “A luta entre o setor coletivo e o setor privado” escreveu ele, “não pode, por conseguinte, ser equacionada com a luta contra a lei do valor, pois a transferência de ativos não tem lugar apenas por intermédio do mercado” (1980, p. 253). Embora ainda assumisse que a tarefa última do da revolução e do socialismo fosse o “fenecimento do valor”, Pachukanis asseverava que a economia nacional do “estado proletário” poderia tornar tal objetivo possível por intermédio de seu progressivo planejamento consciente da economia nacional (1980, p. 257).
Como se tratava neste artigo de se “desvencilhar” em alguma medida do problema central da “lei do valor”, Pachukanis se propõe a definir a natureza deste. Apoiado apenas na citação de uma carta de Marx a Kugelmann (MARX, s.d., p. 73), o jurista russo define a “lei do valor” como sendo a forma da aparência de uma lei natural de níveis de dispêndio de trabalho (PASHUKANIS, 1980, p. 256). Ou seja, em toda formação social há uma distribuição mais ou menos proporcional de dispêndios de trabalho. Nas sociedades capitalistas esta proporcionalidade assume a forma de aparência de valor. Deste modo, na sociedade de transição ao socialismo se trata de, por intermédio do planejamento centralizado estatal, se aproximar ao máximo possível de uma correta distribuição do dispêndio natural do trabalho, esquivando-se progressivamente da “forma de aparência” segundo a qual este nível se manifestaria como forma de valor.
Ora, este conceito, do modo como foi mobilizado por Pachukanis, está muito aquém do próprio Marx. Não é de se admirar que Pachukanis não tenha recorrido a O Capital mas a uma carta na qual Marx expõe de modo privado e facilitado alguns aspectos de suas teses, suscetível, como se pode intuir, de simplificações confusas. Quando buscamos em Marx o outro polo da forma valor, como já o fizemos (NASCIMENTO, 2012), encontramos o problema do trabalho abstrato e do trabalho concreto, e não uma teoria transistórica e naturalizada de níveis de dispêndio de trabalho. Neste ponto de seu trabalho intelectual, Pachukanis é mais ricardiano que marxista[8].
Sendo assim, em Pachukanis as características próprias da forma valor foram duplicadas no conceito de “nível de dispêndio de trabalho” e assim eternizadas teoricamente na condição de categoria socializadora. Apesar de aparecer no contexto da elaboração de uma teoria de transição, os conceitos mobilizados por ele apontavam para a perenidade de categorias duplicadas, prenúncio teórico de um sistema estatal que emularia uma modernização ainda realizada por intermédio das mesmas categorias de valor, direito, capital, estado, etc.
Pachukanis permanecia categórico em sua defesa da tese do fenecimento do direito e da coercitividade estatal como objetivos últimos do comunismo[9], entretanto já via sinais deste fenecimento no nascente estado proletário e em sua nascente ordem jurídica, também proletária. Ele se mostrava consciente do fato de que o planejamento estatal não é exterior às formas da circulação mercantil, pelo contrário, o planejamento só se realiza em grande medida por intermédio destas. Entretanto, ele afirmava que “uma região fronteiriça havia sido criada; um movimento gradual se deu entre formas puramente comerciais e as formas mistas, e destas para formas puramente planificadas” (1980, p. 267). As formas encontradas pelo estado proletário eram, no juízo do jurista russo, formas de “natureza intermediária”.
A concepção de transição para o socialismo implícita no artigo de 1929, ainda que de modo sumário, tenta minimizar a centralidade do problema das formas sociais da mercadoria e do valor. E ao fazê-lo, possibilita uma admissão pouco crítica dos rumos que a Revolução de Outubro tomava então[10]. Muito já se disse sobre a autocrítica e guinada stalinista de Pachukanis deste momento em diante (HARMS, 2009; HEAD, 2008; 2010; NAVES, 2000). Mas para os nossos propósitos, basta que assinalemos que esta virada se mostra claramente neste momento, em 1929, quando ele insinua que o debate deveria deixar de se centrar no problema rubiniano do valor, do fetichismo e da forma mercadoria, para se centrar nos modos inteiramente estatais e planificados de transição. Em um de seus últimos textos, antes de ser ele próprio vítima de um dos expurgos de Stalin em 1937, Pachukanis escreverá, em tom absolutamente autocrítico:
“Conclusões confusas sobre o fenecimento da “forma direito” como um fenômeno inerente ao mundo burguês distraiu-nos da tarefa concreta de combater a influência burguesa e as tentativas burguesas de distorcer a legislação soviética e o direito soviético.
A posição teórica que iniciou esta confusão antimarxista foi o conceito de direito exclusivamente como uma forma da troca mercantil. A relação entre portadores de mercadorias foi tomada como o específico e real conteúdo de todo direito. É claro que o elementar conteúdo de classe de todo sistema jurídico – que consiste na propriedade dos meios de produção – foi consequentemente relegado a pano de fundo. O direito foi deduzido diretamente da troca mercantil segundo o valor; o papel do estado classista foi, por conseguinte, ignorado, protegendo o sistema de propriedade que corresponde aos interesses da classe dominante. A essência deveria ser: que classe sustenta o poder do estado? (PASUKANIS, 1980, p. 356).”
A virada, portanto, é mais do que notável. Para assumir como sendo socialista o estado soviético sob o regime de Stalin, Pachukanis desce ao ponto de negar as raízes de sua formulação teórica sobre a natureza social do direito e do estado. E isto no mesmo ano em que a União Soviética promulga sua primeira Constituição (1936). A questão específica da forma valor nos faz perceber de maneira privilegiada as dificuldades teóricas de Pachukanis para com o problema da transição ao socialismo. “A que se devem essas limitações e contradições em que incorre Pachukanis?” se pergunta Naves,
Fundamentalmente, a causa de suas dificuldades decorre de uma concepção de transição que não permite pensar de modo consequente este período como um período de revolucionarização das relações de produção, no qual, portanto, as relações de produção capitalistas remanescem, não sendo suficiente para a sua transformação a mera transferência jurídica da propriedade dos meios de produção da burguesia privada para o Estado (NAVES, 2000, p. 117).
Andreas Harms (2009) apontou também as dificuldades de Pachukanis em empreender uma crítica do direito público tão contundente e convincente quanto sua crítica do direito privado, pelas razões, já expostas, de seu comprometimento com uma politização extrema em sua concepção de transição e do estatismo como centro determinante dessa concepção de transição.
IV
O filósofo esloveno Slavoj Žižek sugeriu um interessante paradoxo na relação entre a obra de Marx e a experiência revolucionária soviética. Segundo ele:
“…é óbvio que ‘Lenin realmente não entendeu Marx’ – se tanto, a complexidade hegeliana da ‘crítica da economia política’ de Marx estava fora de seu alcance; o paradoxo, contudo, é que somente porque não ‘entendeu Marx’ é que Lenin foi capaz de organizar a Revolução de Outubro, a primeira revolução marxista. Isso significa que a cisão devia estar acontecendo no próprio Marx: se uma certa ignorância da teoria de Marx era uma condição positiva para propiciar uma revolução marxista, então a própria teoria revolucionária de Marx, apesar de ver a si mesma como o momento teórico de uma práxis revolucionária global, devia apresentar uma lacuna em relação à prática revolucionária – tinha de entender mal as condições de intervenção revolucionária (ŽIŽEK, 2005, p. 189).”
A complexidade da dialética da forma valor não foi bem compreendida pela geração de Lênin, e o destino da vida e da obra de Rubin e de Pachukanis (especialmente o da primeira edição de Teoria Geral do Direito e o Marxismo) são testemunhos disso. Entretanto, é preciso dizer que esse viés teórico leva a impasses que precisam ser retomados a fim de ser superados como condição de possibilidade de uma efetiva teoria e prática de transição pós-capitalista.
Nossa hipótese, obtida por intermédio da Nova Crítica do Valor é de que esta “lacuna” sobre a qual fala Žižek aqui pode ser encontrada no conceito de “trabalho” e, por conseguinte, nas consequências que a redescoberta da crítica radical do trabalho tem para a crítica anticapitalista do direito (NASCIMENTO, 2014).
Uma retomada da crítica radical do trabalho e uma exploração das consequências desta crítica para o direito e o estado é, a nosso juízo, um modo pertinente de se reavaliar a importância de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, 90 anos depois de sua primeira publicação.
V
Desde os Grundrisse, chamado de “laboratório de estudos” (Bellofiore) marxianos de onde saiu O Capital, Marx se via às voltas com dois conceitos categoriais de “trabalho” dos quais a definição e a distinção seriam cruciais para sua madura crítica da economia política. Em sua explanação metodológica – que na dialética marxiana não se separa do objeto mesmo da crítica – Marx dá o exemplo da categoria de trabalho nos seguintes elucidativos termos:
“O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração. (…) A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalhos, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso, deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular.
Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado de trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho puro e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria na sociedade mais moderna. (…) Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas (MARX, 2011, p. 57-58)”
A partir desta passagem fica bastante claro que o trabalho como categoria não poderia ser visto de modo transistórico. Ao compreendê-lo assim estaríamos apenas aplicando uma categoria de um certo momento sócio-histórico em outro, sem que isso se justifique. Não apenas um determinado tipo de trabalho (o “abstrato”, o “alienado”, etc.) mas o trabalho sans phrase é uma categoria da sociabilidade capitalista produtora de mercadorias. Marx, todavia, não desenvolve neste sentido sua reflexão, que aparece na passagem acima apenas como uma “ilustração” de seu modo de estabelecer conceitos.
O trabalho, como categoria abstrata, poderia ser pensado fora do tempo histórico capitalista?[11] Se sim, a crítica do capitalismo pode ser tida como uma crítica “do ponto de vista do trabalho”, sendo este último concebido como um contra princípio transistórico ao capital. Mas se a resposta é não – como a passagem acima sugere – então a crítica do capitalismo é também uma crítica da sociedade do trabalho sans phrase; do trabalho como categoria social formada e formadora da “economia” e da “política” próprias da sociedade produtora de mercadorias. O Marx dos Grundrisse, todavia, não desempata a questão, ele oscila a respeito dela.
N’O Capital, Marx encaminha o problema elaborando os conceitos de trabalho abstrato e trabalho concreto. Estes seriam os correspondentes respectivos da natureza bífida da mercadoria (valor e utilidade). Sendo o primeiro, o de trabalho abstrato, o conceito que define a atividade humana na dimensão em que esta transmite valor à mercadoria e o segundo, o de trabalho concreto, o conceito que define a atividade humana que transmite valor de uso à mercadoria em sua dimensão material e simbólica. Não se trata, como se percebe, de dois fenômenos distintos, mas de duas dimensões de um mesmo fenômeno, (POSTONE, 2014, p. 163). A caracterização bífida do trabalho nos conceitos de trabalho concreto e trabalho abstrato é o modo encontrado por Marx para resolver o problema da abstração-social-real que existe no trabalho das sociedades produtoras de mercadorias; para resolver sua oscilação anterior entre uma caracterização “ontológica” supra-histórica do trabalho e ao mesmo tempo sua crítica do modo histórico conforme o qual o trabalho se apresenta em sua subsunção ao capital. Entretanto, a oscilação só foi lançada para adiante, permanecendo latente.
Nas seguintes passagens de O Capital, ela reaparece:
“Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza (1996, p. 297).
O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as formas sociais (1996, p. 303).”
Assim, o processo de trabalho só pode ser concebido como um processo no qual se “regula, controla, e media o metabolismo do homem com a natureza”, como condição eterna e independente de qualquer forma histórica de vida, quando é pensado em sua forma “simples e abstrata”. Esta maneira “simples e abstrata” de raciocínio, todavia, só se tornou possível na medida em que se emergiu um tempo histórico no qual a atividade humana criadora de utilidade passou a estar subsumida ao capital – tal como vimos na passagem acima dos Grundrisse. Em suma 1) O conceito de trabalho sans phrase, do trabalho como tal, é um derivado da subsunção da atividade humana ao processo tautológico de valorização de valor sob a forma da mercadoria, assim, a luta é pela abolição do trabalho e do capital e, 2) ao mesmo tempo, o trabalho é concebido por vezes como o prius a partir do qual se pode realizar a crítica da exploração capitalista e a promoção de uma luta pela libertação do trabalho em relação ao capital. É flagrante a oscilação marxiana em muitas passagens como estas (DUARTE, 2009) (POSTONE, 2014, p. 170 e ss.).
A oscilação de Marx a respeito do conceito de trabalho – o que ele implica teórico- criticamente – aparece na Crítica do Programa de Gotha, precisamente quando ele manifesta-se a respeito da inelutável finitude do “direito burguês”. Senão vejamos:
“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes de riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades’ (p. 31-32).”
Ora, o fim do trabalho como “meio de vida” é também o fim do trabalho como esfera diferenciada, sendo assim, o trabalho como a “primeira necessidade vital” só pode ser a recondução das energias criativas e produtivas humanas para fora de suas determinações separadas/separadoras criadas pelo trabalho como abstração real. O trabalho como “primeira necessidade vital”, paradoxalmente, é um nome para a atividade humana para além do trabalho! Mas esse passo definitivo, é preciso reconhecer, Marx jamais chegou a dar.
Mesmo em sua oscilação acerca deste problema, o Marx da Crítica do Programa de Gotha se mostra inteiramente consciente da impossibilidade tanto de uma distribuição justa e equitativa dos proventos do trabalho no interior do modo de produção capitalista, quanto da impossibilidade de uma expressão jurídico-estatal da justiça de uma sociedade que superasse as formas fetichistas do sistema produtor de mercadorias. Ou seja, o Operariado Alemão pedia o impossível (uma distribuição equitativa dos produtos do trabalho no interior do modo de produção capitalista) e ao alertá-los quanto a isso, Marx nos alerta ainda para uma impossibilidade futura, a saber: que a superação positiva de uma sociedade produtora de mercadorias poderá expressar sua justiça na forma do direito.
De mais a mais, em um artigo publicado na revista Krisis em 1995 Robert Kurz criticou a “duplicação” do conceito de trabalho, afirmando que, com ele, Marx apenas “rasgou em dois” a abstração real que se encontra no trabalho produtor de mercadorias. Seguindo a própria argumentação marxiana, a “dialética da forma valor”, a conclusão mais consistente a que se deveria chegar é que, assim como a mercadoria apresenta natureza bífida, o trabalho que a faz existir também a possui. Entretanto, Marx faz do aspecto material, sensível, uma suposta “âncora ontológica” onde uma dimensão do trabalho pode aparecer como independente de sua determinação pela forma. Assim, na caracterização da natureza bífida do trabalho produtor de mercadorias que se encontra nos conceitos de trabalho abstrato e trabalho concreto, Marx persegue pois, apenas o trabalho determinado pela forma, deixando de lado a aspecto social-real da abstração contida no conceito mesmo de “trabalho”:
“O famoso conceito de trabalho abstracto que daí surge é na verdade uma expressão estranha, uma duplicação retórica, como se falássemos de um “verde abstracto”, visto que a definição de algo como verde já é em si uma abstração. Marx por assim dizer rasga em dois a abstracção real: sua forma seria historicamente limitada, sua substância ou seu conteúdo seria ontológico. Assim temos, portanto, o “trabalho” como eterna necessidade natural e o “trabalho abstracto” como determinação histórica do sistema produtor de mercadorias. Marx prolonga por um lado a abstracção real decalcada na forma rumo ao ontológico e, de outro, tenciona salvar-lhe o caráter histórico e, desse modo, sua superação (2003).”
Segundo a interpretação de Kurz, este “rasgo em dois” da abstração do trabalho foi o tributo pago por Marx à “imagem necessária e imanente que o movimento operário faz de si mesmo” e que, segundo ele, pesa em diversos momentos da elaboração teórica de Marx, a fazendo oscilar. Contudo, como ele observa: “O marxismo do movimento operário teve pouco a fazer com o conceito de ‘trabalho abstracto’ e não o mobilizou criticamente; em vez disso, preferiu prender-se ao conceito ontológico de trabalho (enobrecido ‘conforme o valor de uso’), a fim de legitimar-se de forma histórico-filosófica” (2003)[12]. E o que é, pois, a abstração real do trabalho, visto pela sua essência ou conteúdo?:
“Tal bipartição acha-se novamente na determinação daquilo que afinal é realmente abstracto no trabalho abstracto. Marx a desenvolve principalmente numa única direcção – a direcção da forma: como abstracção real “do” conteúdo material, como indiferença ao momento sensível, representada pela forma do valor e seu desdobramento no dinheiro, a coisa “realmente abstracta”. Não resta dúvida de que isso é de grande relevância. Mas o “trabalho” produtor de mercadorias também é “realmente abstracto” em um segundo sentido, que Marx não desenvolve sistematicamente: em sua existência como esfera diferenciada, separada de outras esferas como a cultura, a política, a religião, a sexualidade, etc., ou, noutro plano, separada igualmente do tempo livre… (2003)”
Para a Nova Crítica do Valor é impossível restringir-se à crítica do trabalho abstrato e não se lançar na crítica da abstração do trabalho. E as implicações da crítica não apenas do trabalho abstrato, mas da abstração-real do trabalho são muitas e variadas, e não cabem nem preliminarmente no espaço deste artigo.
Quando se trata da crítica do trabalho é preciso realizar uma ruptura com um importante e basilar conceito da letra de Marx, em favor de seu espírito, a saber, a dialética da forma valor. Em 1999, com a publicação do Manifesto Contra o Trabalho (2003), no Brasil oferecido ao público em 2003, tais reflexões críticas do trabalho irrompem com a força polêmica do manifesto[13].
VI
O vínculo que Marx estabeleceu na Crítica do Programa de Gotha entre a crítica do trabalho e crítica da forma jurídica é então redescoberto, depois do longo período em que este vínculo foi quase que completamente esquecido pelo marxismo tradicional do movimento operário. A Nova Crítica do Valor, que a nosso ver faz a mais consequente e radical versão desta redescoberta, não se debruça nem sobre trabalho nem sobre o estado como “contraprincípios” ao capital. O trabalho é compreendido por estes como forma interna às relações de fetiche, sem vetores subjetivos transcendentais a este; o estado é tomado como aparato real e também como ideologia “oponiveladora” (Nascimento, 2014) da economia capitalista produtora de mercadorias. Sendo assim, não é uma surpresa que se elabore, ainda que preliminarmente, uma crítica do direito e a proposição de uma prática “pós-jurídica”, na esteira da luta que Kurz nomeou de “antipolítica” (2002).
Nesta mesma esteira, é possível também reler A Teoria Geral do Direito e o Marxismo a partir de uma nova luz, e muito mais do que apenas uma nova exegese, novas conexões e novos problemas podem ser iluminados por este texto, a despeito de seus 90 anos de idade.
Senão vejamos. Reconstruído criticamente o vínculo entre a crítica do direito e a crítica do trabalho, o tema do “fenecimento do direito” é retomado, ainda que por apalpadelas, no interior dos esforços teóricos do Krisis. Franz Schandl propôs algumas teses sobre o Fim do Direito em 1994. Em sua visão, a decomposição social da sociedade produtora de mercadorias atingia com grande impacto as formas e os conteúdos legais. O direito, segundo ele, estaria em decomposição “anômica” junto com a formação social do valor. Seria possível pensar – as condições sociais e históricas nos impelem a isso – os limites incontornáveis deste “princípio de forma” [Formprinzips] do Ocidente. Na 13ª hipótese escreverá Schandl:
“…o direito é, por um lado, expressão de um elevado desenvolvimento histórico, mas por outro lado também a súmula de uma carência civilizacional. Em ordens para além da coação [Zwanges] nenhum direito seria possível. Os direitos subjectivos só são necessários onde eles não aparecem como evidências objetivas. “Um ‘direito’ à vida, à alimentação, à habitação, etc., é, em si mesmo, absurdo; ele só faz sentido num sistema de relações sociais que, por sua própria tendência, não pressupõe como evidentes estes elementos básicos da vida humana, mas, pelo contrário, os põe objetivamente em causa” (SCHANDL, 2001, 1994).”[14]
A crise terminal que revela os limites absolutos da reprodução do moderno sistema produtor de mercadorias impeliria ainda – embora se reconheça a inexistência de qualquer “caráter positivo” no presente estágio da crise – à criação, por parte dos movimentos emancipatórios, de um “pós-direito” [Nachrecht], de uma alternativa ao direito e à lei e não a novos direitos e novas leis. Embora Franz Schandl não cite Pachukanis, suas hipóteses já haviam sido exploradas magistralmente por ele 70 anos antes.
NOTAS
1. A síntese a seguir retoma com algumas modificações argumentos apresentados em Joelton Nascimento (2012).
2. “Evidentemente que a evolução histórica da propriedade enquanto instituição jurídica, compreendendo todos os diversos modos de aquisição e proteção da propriedade, todas as modificações relativas aos diversos objetos, etc., não se consumou de maneira tão ordenada e coerente como a dedução lógica acima mencionada. Mas somente a dedução desvenda-nos o sentido geral do processo histórico” (PASUKANIS, 1989, p. 86).
3. Não só isso: numa célebre passagem de um texto de 1929, Pachukanis escreveu que a o “problema do desaparecimento do direito é a pedra de toque que mede o grau de proximidade do jurista com o marxismo” (PASUKANIS, 1980, p. 268).
4. Há estudos mostrando em detalhes as distinções de enfoque e mesmo de concepção entre as críticas ao estado moderno em Marx e em Engels. Remeto o leitor especialmente a Thammy Pogrebinschi (2009).
5. De modos distintos em cada um deles, este era um ponto comum entre autores como Stutchka (1988) e Naumov (1967) além de Pachukanis.
6. No ano seguinte, durante o 16º Congresso do Partido, dirá Stalin, de modo extremamente problemático: “Nós sustentamos [a teoria d]o fenecimento do estado. Ao mesmo tempo nós sustentamos o reforço da ditadura do proletariado, que é o mais forte e poderoso estado que jamais existiu. O desenvolvimento superior com o objetivo de preparar as condições para o fenecimento do poder do estado – tal é a fórmula marxista. Isso é contraditório? Sim, é ‘contraditório’. Mas esta contradição é fundada na vida e reflete inteiramente a dialética marxista” (STALIN, 1955).
7. Este é o mesmo Pachukanis que escreveu, no início dos anos 20, que “Assim como a diversidade natural das propriedades úteis de um produto só aparece na mercadoria sob a forma de simples invólucro de seu valor e como as variedades concretas do trabalho humano se dissolvem no trabalho humano abstrato, como criador de valor igualmente a diversidade concreta da relação do homem com a coisa aparece como vontade abstrata do proprietário e todas as particularidades concretas, que distinguem um representante da espécie Homo sapiens de outro, se dissolvem na abstração do homem em geral, do homem como sujeito de direito” (1988, p. 86).
8. Como o disse Jean-Marie Vincent “Olhando mais de perto, porém, os discípulos de Marx não se afastam muito da temática ricardiana quando encaram o trabalho como uma espécie de elemento primeiro – supra- histórico – da organização social. O trabalho abstracto não é concebido por eles como uma substância-sujeito produzida por relações e representações sociais, mas sim como uma substância comum a todos os produtos da atividade produtiva humana, para lá das diferenças de sociedade” (VINCENT apud JAPPE, 2006, p. 127, n. 41).
9. Foi neste artigo que Pachukanis escreveu a célebre frase: “O problema do fenecimento do direito é a pedra de toque a partir da qual se mede o grau de proximidade do jurista com o marxismo”. Na citação que Márcio Bilharinho Naves faz deste mesmo fragmento, direto do russo, aparece acrescido “leninismo” depois de “marxismo”. “O problema da extinção do direito é a pedra de toque pela qual nós medimos o grau de proximidade de um jurista do marxismo e do leninismo” (PACHUKANIS apud NAVES, 2000, p. 122-123).
10. Este aspecto da posição pachukaniana pode ser atribuído à sua aproximação do enfoque leninista do problema da transição.
11. Cf. o exame minucioso de Moishe Postone desse problema em Postone (2014). Ver ainda Claudio Duarte (2009).
12. Kurz retoma de modo minucioso seu estudo sobre o destino do conceito de trabalho abstrato em Kurz (2005). Uma abordagem mais recente recoloca com bastante pertinência o problema marxiano do duplo caráter do trabalho, em um sentido bastante semelhante ao de Kurz. Cf. John Holloway (2013). Para um comentário comparativo bastante produtivo entre a abordagem de Holloway e a da Nova Crítica do Valor, Cf. Daniel Cunha (2014).
13. Cf. um resumo e algumas teses complementares ao Manifesto contra o trabalho (KRISIS, 2003) em Nascimento (2014).
14. A tradução em português referida (SCHANDL, 2001) foi corrigida na citação. A tradução em português omite as aspas entre “O direito à vida…” e “objetivamente em causa”, que marcam a citação de um texto de Robert Kurz: Der Letzte macht das Licht aus. Zur Krise von Demokratie und Marktwirschaft (1993), também omitida mas que se encontra no original em alemão (SCHANDL, 1994).
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