Por Bruna Coelho, Daniela Smid e Pedro Ambra
“…Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos.”
Freud, O futuro de uma ilusão
O que é a psicanálise? Para Lacan, um “sintoma social”: diante dos impasses e contradições de uma época, ela esconde uma verdade ao mesmo tempo em que a denuncia. Essa tensão marca grande parte dos debates da psicanálise com outros campos de saber, e delimita a extensão de seu poder interpretativo da realidade social. Seria a psicanálise uma prática burguesa por excelência, que individualizaria o sofrimento social inerente ao desenvolvimento do capitalismo, isto é à concentração de renda e acentuação das desigualdades sociais? Ou um modo de tratamento que emancipa os sujeitos de amarras alienantes e de submissões silenciosas?
Fica cada vez mais claro que nem a práxis nem a teoria psicanalíticas podem prescindir de certa leitura do social: as radicais transformações das configurações econômicas, normativas e políticas nas últimas décadas tornam incontornável o exame de sua repercussão sobre o sujeito que vive nessa sociedade.
Mas o que afinal queremos dizer quando falamos “do social” ou “do capitalismo”? Para compreender os impasses vividos pelo sujeito, podemos pensá-lo a partir de sua dimensão histórica: o neoliberalismo como forma de vida hegemônica no ocidente. Em diálogo com a teoria crítica e com o pós-estruturalismo, Dardot, Laval, Dunker, Dejours, entre outros[1], mostram que o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico. Ele não se restringe ao predomínio do capital em sua forma financeira e rentista, às políticas de desregulamentação da economia e de enfraquecimento do estado de bem-estar social implantado no pós-guerra, à presença de grandes oligopólios multinacionais. Seu funcionamento, ou sua “racionalidade” está presente em todos os campos da vida social e, até mesmo íntima: na maneira como vivemos, como trabalhamos, como desejamos, nos comunicamos e, acima de tudo, como sofremos.
Depois de quase 30 anos de globalização, constatamos que as promessas do capitalismo não se efetivaram. O “mundo unido e sem fronteiras”, o mundo das novas tecnologias e da internacionalização do capital, é também o das guerras civis, do aumento das “políticas de identidade”, e das polarizações de todos os tipos – inclusive no Brasil.
Delineiam-se então as seguintes questões: estamos diante de um novo sujeito ou são apenas expressões distintas de uma mesma matriz psicológica? Clínica e política se anulam ou se completam? Continuidade ou ruptura, exploração ou vitimização, desordem ou normatividade? Patologização de si ou patologização do outro? A partir da constatação dessas tensões, convidamos psicanalistas de reconhecida importância para responder perguntas que propõem uma reflexão sobre a utilidade e sobre a pertinência de se levar em consideração as mudanças econômicas e políticas para a psicanálise e sobre o estatuto do sujeito num contexto histórico em que observamos polarizações e inúmeros conflitos entre grupos por discordâncias políticas e religiosas.
Para problematizar essas tensões, e pensar sobre a pertinência de considerar as mudanças econômicas e políticas para a psicanálise, convidamos alguns psicanalistas. Christian Dunker, Rodrigo Camargo, Caterina Koltai, Nelson da Silva Junior, Maria Rita Kehl e Paulo Endo nos ajudam a refletir sobre este cenário atual.
1. Em sua opinião há algum tipo de mudança estrutural do sujeito no neoliberalismo? Se sim, de que modo a psicanálise tem tentado pensá-la? Podemos reconhecer alterações teórico-práticas na psicanálise que possamos atribuir a este contexto?
CHRISTIAN DUNKER
1. Estou de acordo com Laval de que há uma mudança estrutural do sujeito no neoliberalismo, mas esta mudança está muito mais de acordo como o sentido que encontramos para a expressão “estrutural” em Habermas do que em Lacan. Ou seja, é uma mudança na fantasia ideológica, que afeta basicamente a economia da relação sacrifício-prazer e o modo de localização discursiva do sintoma em sua relação com o sofrimento. Estamos diante de um sujeito que prescinde de uma unidade narrativa para expressar seu sofrimento, o que é consoante com modalidades de interpretação e tratamento que assim o façam também.
Essa unidade narrativa é o que a noção de neurose oferecia à psicanálise e é nela que se baseia a oposição forte para com a psicose. Isso se dissolve com a crescente aproximação entre a experiência do patológico e a generalização das experiências de desorganização, inadequação e desterritorialização de um lado e a intensificação das referências de saúde, bem estar e sucesso como parâmetros de adaptação e conformidade.
A “mental disorder” é isso que o significante diz, uma “des-ordem”, apesar de a tradução brasileira indicar “transtorno”. Muito além de uma corrupção da ordem anterior que precisaria ser restaurada, o princípio da “desorganização” administrada é o próprio sinônimo sintético do neoliberalismo. Produção de anomia para explorar seus efeitos produtivos e ejetar seus efeitos colaterais, administração de um estado de crise artificialmente induzido, ocupação de todas as regiões da vida segundo a perspectiva da produtividade, disseminação do saber administrativo e normativo sobre a conduta. Isso acontece porque o neoliberalismo descobre e se ocupa metodologicamente de como extrair mais produtividade do sofrimento, seja pela reinstalação de rotinas opressivas de trabalho, seja pela emergência do medo como afeto político laboral fundamental, seja pela disseminação da concorrência para todas as modalidades da vida humana. A grande identificação entre o sujeito, como gestor de formas de vida, que devem se comportar ao modo de empresas, com seu contratualismo de um lado e com suas regras de expansão ilimitada e aliança por outro, tornou o princípio da “auto-organização” ou do “empreendedorismo” duas leis maiores para a determinação, ou seja, para a formação das leis de reconhecimento pelo qual ele se coloca sob forma de demanda, desejo, linguagem e trabalho.
NELSON DA SILVA JR
1. A variedade das formas de sofrer, de fazer uso do corpo, e de gozar, assim como das novas maneiras para os sujeitos de tomar posição frente ao saber, ao poder e ao sexo nos permite localizar algumas das consequências subjetivas da economia atual, tem os efeitos de normalização inerentes ao neoliberalismo e de sua principal ferramenta discursiva, a publicidade. Diante das mudanças do novo século, a queda das ideologias, a obsoletização do inconsciente e, sobretudo, os novos modos de organização familiar, parece estar em curso uma alteração importante no mosaico identitário e identificatório sobre o qual se fundariam as novas subjetividades. E, contudo, nada ainda aponta para uma mudança estrutural na subjetividade.
De fato, num mundo sem sentido último das coisas, apenas organizado pelo funcionamento, onde todo gozo é virtualmente possível mediante o poder financeiro, é evidente que a própria estrutura dos sintomas neuróticos é abalada: sem a autoridade que garantiria o sentido e, portanto o suposto saber, e sem a interdição que organizaria o desejo, a estrutura de solução de compromisso que organiza o sintoma fica necessariamente comprometida, mas não necessariamente invalidada, uma vez que outros discursos em âmbito social continuam a existir. Segundo penso, as estruturas psicopatológicas como tais não estão aqui em jogo, mas, sobretudo os processos identificatórios e, consequentemente, as semânticas do sofrimento a estes articulados. Assim por exemplo, o “sujeito empresa” , quando adoece, recebe um diagnóstico que aponta para a falência do empreendedorismo, a saber, a depressão, falta de vontade, garra, sangue nos olhos, etc.
CATERINA KOLTAI
1. O sintoma é de certo modo sempre social se o considerarmos como algo histórico, localizado e específico, significado pelo Outro e que, por isso mesmo pode mudar com o tempo, acompanhando as transformações do Outro – tanto no plano pessoal quanto coletivo. Ele é, me atrevo a dizer, a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo. Nesse sentido há sim um mal-estar próprio da cultura neoliberal.” Para descrevê-lo, a psicanalista evoca o fato de “o mercado ocupar o centro do poder na mesma proporção em que diminui o interesse pela política”, a confusão entre esfera pública e esfera privada, e destaca como “os efeitos do discurso da ciência sobre a subjetividade” têm um papel preponderante em sua produção. O mal-estar na contemporaneidade é intimamente ligado uma “certa ideologia do progresso” e de “uma ilusória confiança na ciência e na tecnologia cujas possibilidades seriam sem limite”. “O sujeito do neoliberalismo não é mais exatamente o mesmo daquele da modernidade clássica, tenhamos em mente que não só o analisando mudou, mas nós analistas, também, mudamos. A pergunta é como essa dupla mudança afeta nossa clínica e nossas teorizações. Ainda que uma demanda de análise continue sendo um pedido de ajuda e uma questão colocada ao Outro, cada vez menos, podemos em nossa clínica apostar exclusivamente em nosso silêncio e benevolente neutralidade. Mais do que nunca somos instados a sermos criativos porque grande parte de nossos pacientes tem se mostrado, ainda bem, cada vez menos dóceis em suportar nosso conformismo decorrente de nossas escolhas teóricas.
PAULO ENDO
1. Para nós é difícil falarmos em sujeito do neoliberalismo, ou sujeito do capitalismo ou sujeito jacobino, girondino, etc. Essas categorias são muito universalizantes para a psicanálise, para o psicanalista. Por duas razões: primeiro porque para falar algo sobre o sujeito o psicanalista precisa falar com o sujeito. Então a escuta analítica continua sendo nosso mais potente instrumento para qualquer interpretação plausível. De certo modo isso constitui nossa ética também. No momento em que analisamos ou interpretamos algo, ou alguém, que não nos está imediatamente acessível, não está em nossos divãs, estamos recorrendo à escuta do que reverbera em nós, também sujeitos da escuta analítica, também transformados por ela e também sujeitos aturdidos e confrontados com as injunções neoliberais, fascistas, ditatoriais, etc. das quais somos sempre parte de algum modo. Nossa implicação nesse sintoma instaura nossa escuta.
Quanto às mudanças (alterações teórico-práticas) creio que estamos trabalhando nelas. Muita ajuda vem de grandes pensadores da teoria política e social, leitores da psicanálise, mas essa libertação de certos ditames que nos eram impostos por psicanalistas, pioneiros, supostamente melhores que nós, creio que foi superada. A obediência na psicanálise é a pior forma de burrice, já nos ensinou Freud. Mais estranho ainda é quando psicanalistas ou estudantes de psicanálise, além de herdar as teorias e os debates advindos de outros lugares, ainda passam a vida reproduzindo as brigas dos pioneiros, das escolas e dos institutos de psicanálise de outro tempo e lugar. Aí é de matar! Literalmente, é a morte prematura do pensamento criativo. Acho que precisamos fazer a psicanálise que precisamos ter, mas como a psicanálise é, na verdade, um imenso corpo teórico e a metapsicologia uma bruxa ficcional apoiada na empiria da clínica, só avançamos em psicanálise com inventividade teórica, tendo a escuta como nosso maior patrimônio. Sem metapsicologia não há psicanálise ou, ao menos, não há como transmiti-la.”
RODRIGO CAMARGO
1. A trajetória do ensino de Lacan será meu fio condutor para responder tais questões. A história da psicanálise sempre esteve mais atrelada aos registros do imaginário e do simbólico. E a noção do real para Lacan, apesar de estar ali desde sempre, foi tomando um vulto maior justamente ao longo dos anos 70, na equivalência dos três registros com a invenção de uma escrita borromeana. A psicanálise até então organizada desta forma edípica, sob a égide do Nome-do-Pai, sofreu profundas alterações teórico-práticas com as propostas de Lacan a partir deste último período.
A experiência da análise está abarcada por excelência num âmbito clínico. E Lacan falou o tempo todo desde tal perspectiva. Segundo Jacques-Alain Miller, Lacan teria traçado uma passagem do que se chamou clínica do desejo (désir) para uma clínica do deserto (désert).
Clínica do não-todo, pra dizer de modo mais certeiro. O gozo, uma vez que não tem contrário, é o que provoca desordem no simbólico. É o sintoma então que se torna a unidade elementar dessa clínica e o gozo é sua substância absoluta. O real do gozo ganhou corpo, pois ao mesmo tempo em que a linguagem é gozo, ao se privilegiar o efeito de gozo do significante, a linguagem não visaria apenas à comunicação.
Há, portanto, um excesso de gozo em questão, sem haver qualquer correlato subjetivo, visto a antinomia entre os dois termos. O paradoxo do gozo é justamente que ele faz furo no tecido de representações do sujeito. Daí o neologismo troumatisme de Lacan (Cf. Sem. 19, 1974).
Nesse termo troumatisme, aliás, se articulam de uma só vez “trauma” (traumatisme) e “furo” (trou), na mesma palavra. Numa tradução livre, o mais próximo do francês que me ocorre e que jamais vi em qualquer lugar por aqui, seria uma espécie “tramatismo”. Afinal, ali onde uma “trama” se faz no real e na história – com os buracos de seus fios entrelaçados e no sentido mesmo de um enredo que se desenrola – ocupa-se o lugar do “furo” fundamental destacado por Lacan em sua original noção de “trauma”.
MARIA RITA KEHL
1. O sujeito do neoliberalismo é uma versão atualizada do “self made man” que inaugurou o capitalismo. Aprendemos com Marx e os pensadores da Escola de Frankfurt que cada modo de produção engendra as formas de subjetividade de que necessita. O capitalismo, que inventou a livre negociação entre vendedor e comprador de força de trabalho, inaugurou com isso a forma mais perfeita de alienação: a extorsão da mais valia, invisível (inconsciente?), do ponto de vista do trabalhador. Não por acaso, alienação e fetichismo < /i> são dois conceitos psicanalíticos que encontram seus correspondentes na teoria marxista. Ou vice-versa.
A psicanálise nasce com a modernidade, é contemporânea do desamparo – e da alienação – do sujeito moderno. Ela não teria razão de existir em sociedades tradicionais, fortemente estratificadas, onde a posição de classe e mesmo o lugar familiar na ordem de nascimento definiam o destino dos sujeitos. O ganho de liberdade do sujeito moderno cobra seu preço na forma da alienação e da servidão voluntária, inconsciente.
Talvez o sujeito do neoliberalismo corresponda à necessidade de aperfeiçoamento desta alienação: ele de fato se acredita livre, uma vez que não tem condições de perceber de que modo o sistema econômico atual é capaz de dispensar a figura tradicional do empregador e deixar que recaia sobre o próprio trabalhador o ônus da exploração de sua máxima capacidade de trabalho.
2. De que forma a clínica psicanalítica é também uma política? Quando o dispositivo analítico contribui para a individualização do discurso do sujeito, ela atrapalha ou impede a potência de empatia dele com o coletivo e com as lutas sociais?
CATERINA KOLTAI
2. Através desta pergunta, talvez vocês estejam chamando a atenção para a importância de nós analistas não recuarmos na tentativa de articular pensamento político e analítico e, nesse sentido, é uma pergunta muito bem vinda porque ela nos convida a ultrapassar de uma vez por todas uma certa visão ingênua que reduz a psicanálise ao mero desenvolvimento normal e patológico do indivíduo, deixando às outras ciências humanas o estudo de tudo aquilo que diz respeito ao coletivo. Só a escuta de um analista capaz de escutar tanto os avatares do sujeito quanto os do mundo em que ambos vivem, será capaz de não atribuir necessariamente todas as dificuldades do analisando à resistência, reconhecendo que de fato pode ser muito difícil para alguns, ou quase impossível, vir mais que uma vez por semana, ou pagar menos do que o analista deseja ou precisa.
O ser humano está longe de ser um ser sedento de liberdade, sendo na maioria das vezes um sujeito passivo submetido à vontade do outro e do poder político. O poder, do ponto de vista freudiano, se liga sempre à alguma forma de crença, explorando a tendência do humano em delegar a árdua tarefa do pensamento a outrem. Nesse sentido podemos esperar que uma análise permita ao analisando restaurar sua capacidade de julgamento. O poder democrático é necessariamente um lugar vazio e todo aquele que o ocupa deve saber que não passa de um mero lugar-tenente, ocupante provisório de um lugar por si mesmo vazio. O que convenhamos não é muito diferente do lugar do analista, a não ser que ele se tome como porta voz de uma escola e confunda seu ofício com o de um pregador da verdade.
NELSON DA SILVA JR
2. A teoria e prática psicanalítica são radicalmente incompatíveis com formas idealizadas, utópicas ou totalitárias de discurso. Com efeito, desde 1908, em A moral sexual civilizada e a neurose moderna, até 1930, em O Mal-estar na Civilização, (Freud, 1908 e 1930) uma mesma acusação de hipocrisia moral é feita por Freud contra os discursos que negam ou escamoteiam a inegável natureza sexualizada ou agressiva do ser humano. Nesse sentido, a vocação política da Psicanálise é incontestável, uma vez que sua incidência se dá, antes de qualquer coisa sobre a alienação dos sujeitos. Contudo, diferentemente de outras abordagens críticas dos processos sociais de alienação do sujeito, altamente engajadas na vida política, tal como o feminismo e a Teoria Crítica, a Psicanálise possui uma especificidade. Ela se questiona a respeito do papel do sujeito, isto é, do interesse do sujeito em sua própria alienação. É, a meu ver, a única abordagem teórica e prática que busca dar uma solução ao velho enigma de La Boétie, o da servidão voluntária. Tal ponto é supreendentemente negligenciado por abordagens críticas como nos autores da Escola de Frankfurt como Habermas e Honneth. Trata-se a meu ver, de uma contribuição da Psicanálise incontornável para o pensamento político.
PAULO ENDO
2. Especificamente no campo das lutas sociais ou da coletivização de determinadas lutas nas quais me incluo, a resposta é muito simples: coloco-me à escuta. Preciso escutar para dizer o que quer que seja e é aí que para mim as lutas sociais e coletivas assumem seu traço de singularidade e a psicanálise se torna não apenas importante, como imprescindível.
Posso ver e acompanhar as massas, as multidões, participar delas, reconhecer seu padrão, sua estética e, eventualmente, discernir uma preocupação comum, consensual. Mas, para isso a psicanálise não é necessária. Entretanto quando escutamos um único militante, manifestante e ativista e podemos aprofundar minimamente suas razões e sua presença naquele tempo e lugar, toda uma possibilidade interpretativa se abre para nós.
Poderiam nos acusar de generalização, mas estamos muito tranquilos para retroagir e por a pique o que dissemos, sentimos e pensamos se isso não alcançar nada nem ninguém. O que não podemos abrir mão é de uma escuta e falas próprias-continuamente interpretando os efeitos daquilo que agencia os sujeitos como parte de uma massa, qualquer que seja. Esse exercício fazemos na clínica cotidiana e foram primorosamente relatados nos Estudos sobre a Histeria, há mais de cem anos atrás. Portanto isso não nos fere, ou não deveria nos chatear.
CHRISTIAN DUNKER
2. Entendo que boa clínica psicanalítica é crítica social feita por outros meios. Isso não é uma ilação sobre os efeitos “externos” do que fazemos sobre a orientação mais egoísta ou mais altruísta de nossos pacientes. Isso decorre do fato de que os sintomas de nossos analisantes são feitos de contradições cuja expressão, determinação e realidade localizam-se nos laços sociais, nas relações desejantes e na economia de gozo. Identificar as paredes do consultório como muros que soldam o território público e privado, com o espaço público e o espaço privado é operar clinicamente segundo uma lógica de condomínio. Lacan argumentou que a modernidade, e com ela a localização social da psicanálise, presume um espaço em forma de Garrafa de Klein, diferente da topologia antiga pelo qual o mundo se estruturava em macrocosmos e microcosmos com relação de englobamento simétrico. A garrafa de Klein é um espaço onde o exterior se comunica com o interior por meio de uma zona de interpenetração e outra de revolução. Isso acontece porque a Garrafa de Klein é uma estrutura em quatro dimensões (sendo a quarta o tempo) e não em três. Isso implica consequências para nossas formas de individualização,, pois a individualização presume soluções para a divisão público e privado, mas também individual e coletivo, ético e político, social e a-social. Veja que não oponho social e individual, como Freud fazia, mesmo que para criticar tal oposição, mas individual a coletivo, que me parece a oposição mais rigorosa e produtiva. A cura do mito individual do neurótico implica tanto o tratamento da “neurose” quanto o fato de que ela é um mito “individualizado”, ou seja, enfraquecido ou bloqueado do ponto de vista da força de reconhecimento na dimensão coletiva, seja ela pensada de forma intersubjetiva, familiar ou discursiva. Depois disso é preciso incluir o incurável, o que não pode ser reconhecido, o que não se coletiviza: o objeto a e particularmente a sexuação. Lição geral: para praticar melhor ao psicanálise é preciso reconhecer suas condições e localizar seu impossível. É para isso que a análise leva: amor e trabalho. Os movimentos sociais e as demais aspirações coletivas, éticas e políticas nada mais são do que combinações originais, entre amor e trabalho.
RODRIGO CAMARGO
2. A razão diagnóstica em psicanálise não é a mesma da que se estabelece, por exemplo, num diagnóstico em saúde mental, pois toda uma noção de normalidade foi subvertida com o advento do campo freudiano. No entanto, a psicanálise está presente no social e por sua original reputação sempre foi considerada pertencente também ao campo da saúde mental e talvez de algumas lutas sociais.
Assim, a política, segundo os preceitos de Freud, sempre esteve articulada ao pai. Nesse sentido que a política é o inconsciente. Essa é uma passagem de Lacan do Seminário 14, ‘La logique du fantasme’, lembrada por Éric Laurent, quando Lacan a inverte: “Não digo sequer ‘a política é o inconsciente’, e sim, de maneira bem mais simples, o inconsciente é a política”.
Vejam que nessa sutil inversão temos evidente o corte que Lacan estabeleceu em relação ao inconsciente freudiano. Trata-se de ir em direção a uma nova definição do inconsciente que estaria ainda por ser concebida, um inconsciente real, cuja marca num acontecimento de corpo do sujeito da linguagem – e não do organismo do indivíduo – é a de um falasser [parlêtre] eminentemente político e, portanto, transindividual.
MARIA RITA KEHL
2. A psicanálise é um poderoso dispositivo de emancipação subjetiva. O sujeito que passa por um processo de análise, se ele for bem sucedido, abandona sua “servidão voluntária” em nome de um compromisso com seu desejo. Ao ganhar uma certa (não completa, o que me parece impossível) autonomia, este sujeito se torna menos dócil, mais criativo. Isso afeta seu modo de participar do laço social. O sujeito pode sair de um processo de análise mais capaz de empatia, de uma amorosidade em relação aos semelhantes, sim. Mas também pode sair mais egoísta, mais individualista… Infelizmente o psicanalista não tem como interferir muito nesse aspecto. No entanto, se a conclusão de uma análise passa pelo reconhecimento, por parte do sujeito, de sua castração simbólica – condição de sua inserção no laço social – é possível que ao final de uma análise o sujeito se torne mais sensível ao que se passa com o outro- digo o pequeno outro, seu semelhante, seu rival, seu irmão (Baudelaire). E daí se torne mais generoso, mais capaz de solidariedade, de empatia. No entanto, vale observa r que a posição ética do sujeito ao final de uma análise também depende da identificação inconsciente com a postura ética (ou não…) de seu analista.
3. Na atual conjuntura política, como a psicanálise pode ter um discurso profícuo para elaborar ou evitar os conflitos entre diferentes grupos, movidos por discordâncias político-religiosas e/ ou discursos que patologizam o outro?
CATERINA KOLTAI
3. Não me parece que a psicanálise deva ter um discurso para evitar conflitos entre diferentes grupos. O conflito é algo necessário, à condição que passe pela palavra e não pela destruição do outro. Não há lugar para o politicamente correto na psicanálise, ela é por definição politicamente incorreta. O politicamente correto cria um pseudo-consenso em que todas as coisas são equivalentes quando não o são.
As características de nossa sociedade neoliberal na qual impera um capitalismo selvagem, globalizado e uniformizado, na qual quanto mais o discurso científico se exercita no sentido da uniformização, tanto mais o disforme tende a se manifestar, e esse disforme estritamente particular é o gozo, aquilo que faz do outro um outro que só me resta odiar já que põe em xeque minha forma de gozar que tanto idealizo. A sociedade em que vivemos oferece a ilusão de gozar sem entraves e, como isso é impossível, o sujeito pode se transformar em vítima, figura que vem se tornando segundo alguns a metáfora da nossa condição contemporânea. Essa posição subjetiva de vítima se caracteriza pelo fato dela viver exclusivamente no registro da demanda, exigindo reparação e ressarcimento. A vítima, assim entendida, deixa de ser vítima dos riscos e responsabilidades relacionadas ao engajamento em seu desejo, sua vida, e se torna vítima de circunstâncias desfavoráveis, e deixa de ser um sujeito engajado na própria vida, com todos os riscos decorrentes do exercício de seu desejo.
Essa ideologia da vitimização se refere também na oferta, escuta e interpretação do analista que pode ser levado a confundir uma infelicidade ordinária com uma patologia, razão pela qual é bom ficarmos alertas para não nos transformarmos em técnicos da felicidade evitando conflitos.
PAULO ENDO
3. Penso que se exerce em torno da psicanálise (incluindo aqui alguns psicanalistas e não psicanalistas) uma comunidade que tem se posicionado abertamente contra formas generalizantes que sequestram o discurso do sujeito e o empurram para a mera condição de demandante. Em alguns momentos isso é mais forte, em outros, isso perde a convicção, mas o próprio exercício da psicanálise reconhece e reivindica esse lugar em que o sujeito se reconhece nos discursos que falam nele, sobre ele, apesar dele. Quando essa briga assume contornos institucionais, políticos, acho que muito pouca coisa tem sido feita. E mesmo os psicanalistas na universidade talvez não tenham se posicionado muito quanto a isso, a despeito das muitas teses e dissertações que pesquisam o assunto. De todo modo o ódio que está nas ruas passa pelo questionamento sobre os privilegiados (os chamados 1%), mas também representa uma linha contínua de transmissão de benefícios materiais, espaciais, temporais e corporais herdados que se condensam em figuras como o escravo, o imigrante, militante de esquerda, o pobre, o negro, etc. que simplificam demasiado o problema e sugerem que haveria no Brasil sempre um dentro e um fora, incluídos-excluídos se quisermos.
De outro modo creio que o que se passa é que em nosso país é possível manter intactos e imóveis os excluídos e os incluídos em posição de tensão, amparada pela fantasia de que essa tensão é o grande problema e é ela que um dia será ultrapassada.
NELSON DA SILVA JR
3. Na teoria das patologias do social freudiana, a eficácia patogênica do sofrimento é atribuída por Freud ao problema da verdade. E, para ele, a verdade, na medida em que é difícil de ser dita, diz respeito a dois conteúdos: a sexualidade e a agressividade. O reconhecimento de tais verdades no interior e na trama das relações sociais implica necessariamente uma alteração das relações de poder. A principal contribuição da psicanálise para uma política de grupos só pode vir daí. Além disso, outro aspecto essencial da política da Psicanálise vem, a meu ver de seu efeito corrosivo sobre as lógicas narcísicas e sobre os ideais. Tal aspecto marca uma incompatibilidade com sistemas totalitários e totalizantes, em primeiro lugar, mas também com projetos utópicos, que sistematicamente, e independentemente de suas boas intenções geram efeitos paradoxais de potencialização das diferenças e das dinâmicas da violência.
CHRISTIAN DUNKER
3. Poucos são os discursos que conseguem recuo suficiente para fazer duas coisas relativamente opostas que o engajamento político requer: paixão ardente para mudar o mundo produzindo algo com a insatisfação e distanciamento crítico dos limites posicionais dos interesses que nos fazem participar da conversa de modo parcial. Ora, são estas duas virtudes que se espera de um psicanalista e no geral de seu discurso: desejo de analista e suspensão do exercício do poder. Nem sempre temos a autoridade que poderia produzir uma transferência capaz de operar como mediadores de conflitos ou como instância terceira, quiçá neutra onde poderíamos nos apoiar para reduzir a natureza imaginária do conflito e tratar o real do antagonismo social pelo simbólico da palavra. Isso é nossa prática diária na clínica, mas também uma das consequências desta noção criada por Lacan: o discurso do psicanalista. Quanto à patologização do outro nossa posição é um pouco melhor, porque há um método clínico, envolvendo questões de diagnóstico, definição de sintoma, ligação entre modalidades de sofrimento e estratégia de tratamento sobre os quais temos recursos e devemos intervir. Infelizmente boa parte dos psicanalistas ainda acha que isso é coisa de discurso universitário, que estas são questões externas a psicanálise, que outras diagnósticas, como a diagnóstica social, a diagnóstica psiquiátrica e a diagnóstica da saúde pública não nos importam, nem nos afetam e talvez nos contaminem. É uma verdadeira inconsequência ética que grassa neste ponto, e que frequentemente volta sob forma do pior tipo de fechamento auto-referente, com suas crises institucionais intermináveis, com a típica adesão ao conformismo, a moral da adaptação, a falta de rigor conceitual que Lacan criticou na década de 1960. Como se vê a psicanálise não se livra da política, e quando ela tenta fazê-lo é porque está a praticar alguma variante do pior.
RODRIGO CAMARGO
3. O corpo que fala é sempre um corpo socializado. O mal-estar, o sofrimento, o sintoma, enfim, nós podemos também nos apoiar nessa nova tríade, principalmente para apontar que sempre algo dessa ordem se compartilha de alguma forma na dita civilização.
Aliás, há também uma expressão como aquela “civilização ou barbárie”. Eis inclusive um modo de se patologizar o outro. Se não é um, é outro. Contudo, não podemos assumir uma escuta vitimizante, onde simplesmente se localiza um Outro malevolente e estamos conversados.
Os psicanalistas não servem para mediar conflitos. O discurso do psicanalista está inserido na cultura como este novo laço, avesso ao do mestre, isto é, avesso ao discurso do inconsciente, que funciona nos seus mesmos termos. A interpretação analítica viria na contramão da interpretação do inconsciente. Não para bater de frente com ela, mas provocar algum tipo de vacilação nas certezas do sujeito.
MARIA RITA KEHL
3. Posso esperar (sem ter garantias disso) que o sujeito que atravessa um processo psicanalítico abandone o que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” e se torne mais interessado no outro. Prefiro apostar no interesse do sujeito por aqueles que são seus “semelhantes na diferença” do que na simples tolerância. A tolerância é uma conquista civilizatória muito próxima da indiferença. É importante – mas é pouco. Já o interesse, envolve algum investimento libidinal: pulsão de vida, ampliação de laços. Se isto não for possível, vale esperar que ao final de uma análise o sujeito se torne pelo menos mais capaz de reconhecer sua dívida simbólica: esta que não existe apenas em relação aos pais, mas também frente aos semelhantes. É este reconhecimento do nosso pertencimento à comunidade humana que pode fazer da tolerância um valor ético aliado à saúde psíquica. Não é o mesmo que exigir que se “ame ao próximo como a si mesmo” mandamento cuja impossibilidade já foi discutida por Lacan. Eu prefiro pensar não num mandato, é claro, mas na conquista de certa disponibilidade libidinal para interessar-se pelo semelhante. Parece-me uma perspectiva subjetiva mais progressista.
ENTREVISTADOS:
Caterina Koltai é Cientista Social pela USP, Socióloga pela Universidade Paris V, psicanalista e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. É professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP e coordenadora do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica pela mesma universidade. Autora dos livros “Política e Psicanálise: o Estrangeiro” (2000) e “Totem e Tabu: Um Mito Freudiano” (2010), organizadora de “O Estrangeiro” (1998), produziu também diversos capítulos de livros, artigos em revistas científicas especializadas, além de contribuir com sua atuação em outros meios de comunicação mais amplos.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip). Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (vencedor do prêmio Jabuti 2012), Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (2015) e A Psicose na Criança (Zagodoni, 2013).
Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, jornalista e escritora.
Entre 2012 e 2014 participou da Comissão Nacional da Verdade que investigou os crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar.
Autora de (entre outros): Deslocamentos do feminino – a mulher freudiana na passagem para a modernidade (tese de doutoramento). São Paulo: Boitempo 2016 (3a edição) e O tempo e o cão – atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo 2009 – prêmio Jabuti do ano de 2010 na categoria de Não ficção.
Nelson da Silva Junior é psicólogo pela Universidade de São Paulo, possui Doutorado e Pós-Doutorado pela Université de Paris VII – Denis Diderot, Pós-Doutorado – Universidade Federal de São Paulo, Livre-Docência pela Universidade de São Paulo, é Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, é Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip). É autor dos livros Le Fictionnel en Psychanalyse. Une étude à partir de l’oeuvre de Fernando Pessoa, Presses Universitaires du Spetentrion (1999) e Linguagens e Pensamento. São Paulo. Casa do Psicólogo (2007).
Paulo Endo é Psicanalista, Professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (Diversitas-USP), e Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da USP (GPDH-IEA/USP). Autor, entre outros, do livro A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2005(Prêmio Jabuti 2006).
Rodrigo Camargo é Psicanalista e tem Mestrado em Literatura Francesa pela FFLCH-USP
ENTREVISTADORES:
Bruna Martins Coelho Doutoranda em filosofia pela universidade Toulouse Jean-Jaurès, bolsista da CAPES. Mestre, bacharel e licenciada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, publicou artigos sobre Deleuze e estudos de gênero.
Daniela Smid é psicóloga graduada pela USP, Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae. Participou de estudos sobre gênero, feminismo, corpo, patologias do social e medicalização da vida no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise – LATESFIP-USP. É integrante da equipe do portal PsiBr que conduz uma série de entrevistas sobre Psicanálise e Política. https://psicanalise-e-politica.psibr.com.br/
Pedro Ambra é psicanalista, doutorando pela USP e da Université Paris VII – Paris Diderot, e pesquisador do LATESFIP – Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise e autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise e questões de gênero.
[1] Agradecemos ao LATESFIP – Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Os debates realizados neste espaço, influenciaram diretamente a maneira como colocamos as questões que compõem este dossiê.
1 comentário em “A psicanálise e o neoliberalismo: entrevista com Caterina Koltai, Christian Dunker, Maria Rita Kehl, Nelson da Silva Jr., Paulo Endo e Rodrigo Camargo”
Republicou isso em Blog do Carranoe comentado:
Os nexos entre a psicanálise e o neoliberalismo. Um debate atual, necessário e muito bem tratado tanto nas perguntas quanto nas respostas dos/as entrevistados/as