Por João Miranda
O contexto político atual, para além dos debates mais imediatos, vem demandando análises sobre seu significado histórico para o país. E para entendermos o conjunto de fatores que formam o processo sócio-histórico que ensejou no Brasil em 2016
o que se configura como um Golpe Parlamentar, precisamos retroceder algumas décadas, porque, como disse historiador francês Jules Michelet (1798-1874), quem quiser se prender ao presente, ao atual, não compreenderá o atual.
Creio que para compreendermos o diagrama de forças que se formou na atualidade pode ser interessante um breve resgate histórico que tenha como marco inicial os anos 80, momento em que se inicia o processo de redemocratização do país. Depois de a população ter passado ao longo da ditadura civil-militar por longos e duros anos, marcou essa década o fortalecimento da sociedade civil, que, antes afastada do debate político, agora procurava agir coletivamente para politizar as questões que permeiam a vida social. Assim, nessa década as ruas do país foram ocupadas por grandes manifestações, greves, entre outros atos. Foi um movimento que reinventou o espaço político e, entre outras conquistas, resultou no generoso apoio à diversidade ideológica e à abertura do caminho para a multiplicação de partidos e de modelos de organização política.
A expectativa era de que no futuro toda essa diversidade se confluísse em sólidas e efetivas coalizões de governo. Os anos foram passando e o subterfúgio que surgiu em resposta a essa progressiva fragmentação do sistema partidário foi o chamado “presidencialismo de coalizão”. A expressão foi cunhada pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, antes mesmo da promulgação da Constituição. O cientista foi muito perspicaz em, naquele momento, perceber que estava se formando grandes e consistentes coalizões governativas político-partidárias e, principalmente, partidário-parlamentares, e que isso pelos próximos anos caracterizaria o sistema político-institucional brasileiro.
Acredito que esse modus operandi baseado em alianças e conchavos entre as elites que formam as classes política e econômica há muito tempo permeia nosso sistema político. O que aconteceu pós-1988 foi uma reconfiguração do mesmo para se adaptar aos moldes da democracia, com as velhas raposas da Ditadura – principalmente o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), legenda que se tornou o PMDB – e também com os novos atores que durante o regime não tinham voz, como os petistas.
Abranches defende a tese de que por meio desse agrupamento de partidos, a democracia brasileira estaria passando por um processo de consolidação. Esperava-se no final dos anos 80 que as coalizões gestassem no seio do sistema democrático uma tensão saudável e produtiva entre Executivo e Legislativo, o que pensavam que propiciaria uma experiência coletiva formadora de fusões, aquisições e negociações político-partidárias. Acreditava-se ainda que tal processo resultaria na comunhão de forças a partir de um norte definido coletivamente.
Não seria necessária uma lupa para constatar que, na realidade, o que aconteceu foi uma limitação de nossa jovem democracia através da formação de coalizões que foram se fundindo e, em meados da década de 90, culminaram em duas grandes frentes. Para serem melhor compreendidas, acho que as duas podem ser divididas como cabeça e corpo. De um lado, o corpo do sistema político: um grande agregado sem perfil definido formado por um conjunto de partidos fisiológicos que, segundo o intelectual Idelber Avelar, “la ubicación em el espectro ideológico importa menos que las alianzas de conveniência basadas em la oferta de cargos em aparato estatal, la cesión de tempo de televisión en las campañas electorales y el soborno puro y simple”[i]; todos dispostos a aderir a qualquer governo, desde que recebam em troca essas e outras regalias. Do outro lado, a cabeça formada por dois partidos, PT e PSDB, especializados em coordenar, a partir de um projeto de governo, esse grande bloco de apoio parlamentar. A busca por votos e cargos foi terceirizada por esses dois partidos para os demais e ambos se concentraram unicamente na tarefa de coordenação da megacoalizão, a qual é definida por meio de eleições presidenciais.
O filósofo Marcos Nobre taxa como “pemedebismo” esse nosso modelo de presidencialismo de coalizão no seu estado mais maduro, pois, segundo ele, esse grande bloco (o corpo do sistema político) replica o modo de operar característico do PMDB, que se trata de uma tendência de conservação do status quo.
Esse sistema opera por meio de grandes blocos de maneira a permitir o fim de entrechoques e conflitos abertos, apesar da histórica tensão existente entre Executivo e Legislativo ter persistido. Não significa que não houve conflitos. Significa que os conflitos foram evitados o máximo possível. Assim, ao invés de abrir o caminho para que os entrechoques aconteçam e estabelecer um debate democrático que permita chegar coletivamente a um acordo, tudo foi jogado para dentro da mala do grande corpo. Consequentemente, no lugar desse processo democrático, o espaço político é ocupado por inúmeras articulações que ensejam atender ao jogo de interesses patrimonialistas das elites políticas e econômicas. No fim das contas, praticamente se trata de um sistema criado para permitir às instituições somente movimentos hesitantes e que ampliou o divórcio entre o sistema político e a população. Nada além de mudanças lentas e graduais foram permitidas.
Isso significa que, para haver ascensão social para uma classe, o mesmo teria que ocorrer com as outras. Ao longo dos governos de FHC, Lula e no primeiro mandato de Dilma, esse sistema funcionou nesses termos. Dos três governantes, talvez o mais genial tenha sido Lula que conseguiu dar o tônus da mudança social através de um contraditório processo em que se promove a melhoria da vida dos mais pobres sem desagradar ao grande capital.
O conceito de revolução passiva de Gramsci é referência chave para André Singer – cientista político que cunhou a expressão “lulismo” –, na medida que expressa o sentido de uma transformação vagarosa, sem ruptura com o passado e gestada pela coalização heterogênea entre setores modernos e tradicionais da sociedade. Assim, as mudanças sociais poderiam ocorrer, desde que não ameaçassem a Ordem dominante. Dessa forma, Lula mantém no seu primeiro mandato a política econômica do governo de FHC – e no segundo mandato assume uma de caráter neodesenvolvimentista – que acaricia os investidores e, ao mesmo tempo, se aproveitava do boom das commodities para promover fortes políticas distributivas, dando aos pobres sem tirar dos ricos. Como disse Singer, ele promoveu a “redução da pobreza e da desigualdade, mas sob a égide de um reformismo fraco”[ii]. Esse boom possibilitou também que Lula sustentasse o programa próprio do lulismo no seu segundo mandato através de um plano econômico de caráter desenvolvimentista – e que foi intensificado por Dilma em seu primeiro mandato – rompendo, assim, com a matriz econômica de FHC.
O lulismo é, então, a tentativa de realizar dentro da ordem mudanças que beneficiam a população. Para coordenar a coalizão, Lula fez como FHC: optou por obter a adesão fisiológicas das correntes e personalidades e, aliado a esse grande bloco de apoio parlamentar, implementou o seu reformismo fraco. Quanto mais esse processo se fixa, mais a identidade do PT foi corroída e mais da esquerda se afasta. O lulismo, assim, “abandonaba cualquier pretensión de realizar las reformas estructurales en nombre de las que el PT había sido construído. El sintagma “reforma agraria” desaparece […]. La reforma política que podría desestabilizar el blindaje oligárquico del pemedebismo fue abandonada […]”[iii]. O sistema tributário e o monopólio dos oligopólios das comunicações continuam intocados. Mas, 45 milhões de pessoas foram tiradas da miséria.
Quando Lula chega ao poder e faz essas alianças espúrias para conseguir implementar seu programa, vimos parte da esquerda se afastar dele (o que mais tarde resultaria na formação de outros partidos à esquerda do PT, como o PSOL). Se afastam porque a esquerda, para fazer as mudanças que quer fazer, tem que ameaçar a ordem, o status quo, a estrutura, etc. Lula não faz isso. Enquanto essa esquerda se afasta desse partido que era anti-sistema e, paulatinamente, vai se tornando legitimador do sistema, setores da população em grande vulnerabilidade social vão ao longo do seu primeiro mandato aderindo em massa, já que essas camadas mais pobres são tradicionalmente apegadas à ordem e foram beneficiadas pelos programas sociais lulistas que não ameaçam essa estrutura.
Paulatinamente, entra em colapso esse sistema político-institucional que não ameaça as elites política e econômica ancorado em megacoalizões, por causa de, entre outros fatores, efeitos da Operação Lava-jato, embates de Dilma com o campo político e financeiro, a cisão na população aprofundada nas eleições de 2014 e as manifestações pró-impeachment de grandes parcelas da população que vimos em 2015.
Esses embates de Dilma se deram através de uma série de medidas que a presidenta implementou ao longo dos dois primeiros anos de seu primeiro mandato. O cientista político André Singer, analisando essas medidas, afirma que elas significaram verdadeiras cutucadas em onças com vara curta. No campo econômico, as onças cutucadas pertencem principalmente ao campo neoliberal ortodoxo, formado em grande medida pelo grande capital internacional, que viram o seu lucro ser aplacado pelo programa neodesenvolvimentista do governo federal. O detalhamento do plano econômico de Dilma seria longo demais e, embora reconheço a pertinência do tema, discorrerei en passant, para que não sejamos levados à órbita distante da almejada. Em linhas gerais, então, pode-se dizer que ela busca, principalmente em 2011 e 2012, instaurar um plano econômico neodesenvolvimentista de reconfiguração do capitalismo brasileiro para promover uma aceleração do lulismo por meio da industrialização integral; processo que, muito diferente do proposto por FHC, seria planejado pelo próprio Estado e beneficiaria a burguesia interna, em detrimento do capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele integrada.
Ao beneficiar o setor empresarial brasileiro, o governo Dilma acreditava que em consequência a população também seria beneficiada. Partia do pressuposto de que a médio prazo as políticas ‘pró-capital’ teriam consequências ‘pró-trabalho’ e ‘pró-igualdade’. Essa rearticulação do plano econômico do governo confronta os interesses do campo neoliberal ortodoxo, enquanto que ao mesmo tempo, obviamente, beneficia o campo neodesenvolvimentista. Dilma não mede esforços para enfraquecer aquele campo e, por meio dessa estratégia confrontacionista, busca assumir o controle das políticas econômicas e promover transformações da sociedade via desenvolvimento das indústrias brasileiras.
Então, promove a redução dos juros, dos spreads e da taxa Selic, aumenta as taxas para produtos importados, promove a desvalorização do real, a ampliação da política de conteúdo local, as isenções fiscais para o capital produtivo, entre outras medidas, para beneficiar a burguesia interna e, assim, impulsionar o projeto neodesenvolvimentista. Isso tenciona a relação com o campo neoliberal ortodoxo, já que vai contra seu plano ideológico, aplaca seu poder sobre o país e diminui seu lucro.
Um dos principais companheiros de Dilma nessa briga foi o seu Ministro da Fazenda, Guido Mantega, que em diversos pronunciamentos deixava claro o que intentava o Estado brasileiro. Ele foi um dos principais elaboradores da nova matriz econômica e o seu maior articulador. Dentre tudo o que ele disse, cito a seguinte declaração: “se os bancos são tão lucrativos, e isto está nos dados, eles têm margem para reduzir a taxa de juros e aumentar o volume do crédito”. Daí em diante, a primeira meta do meio financeiro foi derrubar Mantega – o que foi conseguido em 2014, quando Dilma o demitiu em plena eleição e, dessa forma, garantiu o cargo a Joaquim Levy, um economista neoliberal ortodoxo[iv].
Dilma encerra com glória os dois primeiros anos de seu governo. Cada vez mais ganhava o controle do capitalismo brasileiro e, segundo Nobre, acreditava que isso “levaria à produção da autonomia social e política, levaria à produção de políticas efetivas de redução de desigualdades em educação, saúde e em todos os demais domínios em que a vulnerabilidade social se fizesse presente[v]. Diante de tantas batalhas vencidas, Dilma inicia a segunda parte do seu mandato com um discurso entusiasmado. Vem, então, à TV em 23 de janeiro de 2013, e faz um pronunciamento triunfante, em que anuncia a queda no valor da energia, redução dos juros e impostos, aumento do crédito, entre outras medidas:
“É a primeira vez que isso ocorre no Brasil [redução na conta de luz], mas não é a primeira vez que o nosso governo toma medidas para baixar o custo, ampliar o investimento, aumentar o emprego e garantir mais crescimento para o país e bem-estar para os brasileiros. Temos baixado juros, reduzido impostos, facilitado o crédito e aberto, como nunca, as portas da casa própria para os pobres e para a classe média. Ao mesmo tempo, estamos ampliando o investimento em infraestrutura, na educação e na saúde e nos aproximando do dia em que a miséria estará superada no nosso Brasil […].[vi]”
Poucos dias depois veio o contra-ataque: o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, declara em entrevista à jornalista Miriam Leitão que a inflação estava “mostrando uma resiliência forte e que a situação não era “confortável”[vii]. Segundo Singer, tal declaração “foi o suficiente para que os investidores passassem a apostar na alta dos juros, o que significa demolir a viga de sustentação do projeto dilmista. Usar a política monetária para segurar a inflação […] era simplesmente desmontar o recém-concluído”[viii]. Foi, portanto, a semente da ofensiva restauradora do campo neoliberal ortodoxo. Vendo que os seus interesses não estavam sendo contemplados pela matriz econômica do governo, reagiram para iniciar uma nova onda de reformas neoliberais no Brasil.
Mantega e Dilma, em pronunciamentos, até tentaram desmentir Tombini, mas não tiveram êxito. Poucas semanas depois o BC inicia uma política monetária de aumento constante de juros que só se encerrou dois anos depois. Começa aí, então, a inversão da a política econômica que vinha sendo implementada. Enquanto que durante os dois primeiros anos do Dilma I o Banco Central e o Ministério da Fazenda estavam em conjunção de forças para promover a redução do lucro do capital estrangeiro e, assim, beneficiar o capitalismo brasileiro e, esperavam, impulsionar o crescimento do país via industrialização geral, em 2013 volta a reinar o típico cabo de guerra entre esse Ministério e o BC. Esse choque neoliberal promovido pelos bancos freia significativamente o crescimento interno e foi a semente para o país entrar em crise econômica. Os seus efeitos foram sentidos mais claramente a partir de 2014.
Acrescente-se a isso toda a força-tarefa que se formou para aplacar o crescente controle estatal do mercado. Começa em 2013 uma forte campanha promovida pelos grandes meios de comunicação locais e internacionais, os partidos de oposição ao governo, as agências internacionais de risco, o FMI, o Banco Mundial, os bancos estrangeiros, as grandes corporações multinacionais, e vários outros representantes do capital, com o apoio da alta classe média local; diziam nas telas de todos os tamanhos, nos rádios de todos os lugares, nos jornais de todos os cantos, que para reordenar o Brasil o governo deveria deixar o mercado funcionar sozinho – e que precisava urgentemente cortar os gastos ineficientes e “descontrolados”.
Assim, sob o guarda-chuva do anti-intervencionismo, penduraram-se críticas diretas à Dilma, tratando-a como incompetente, arbitrária e autoritária. E agitavam bandeiras que pudessem contar com algum apoio popular, como denúncias superlativas da inflação e ataque à corrupção na Petrobrás. O cientista político Armando Boito Jr., discorrendo sobre o caso, afirma que, para contra-arrestar o processo de implementação do Plano Dilma, “as agências internacionais, as agências de avaliação de risco, a imprensa conservadora da Europa e dos Estados Unidos, a grande mídia local, os partidos burgueses de oposição ao governo, a alta classe média e algumas das instituições do Estado que abrigam esse segmento social entraram na luta [contra o governo Dilma]”[ix].
Diante da ofensiva neoliberal, o governo Dilma optou por uma política de recuo e não de resistência. Ainda segundo Boito Jr., a presidenta “aplica o ajuste fiscal que é parte importante do programa da oposição burguesa neoliberal e não toma a iniciativa de mobilizar os setores populares sequer para defender o seu próprio mandato”[x]. O recuo também se deu na política social, cortando gastos em áreas básicas, ou postergando ampliações necessárias dos programas. Essa postura adotada por Dilma, e a crescente pressão do grande capital internacional, culmina no recuo também da burguesia interna, que promove uma “greve de investimentos” no país, à revelia de todos os benefícios dados pelo governo.
Sem contar com o apoio dos industriais e vendo o crescente aumento de força da frente anti-intervencionista, o governo ficou na defensiva até que assinalou a rendição completa no final de 2014 e, mais claramente, em 2015, quando faz um estelionato eleitoral adotando a receita neoliberal que vinha nos bastidores sendo exigida por esse campo desde o final de 2012.
Soa estranho imaginar a burguesia neodesenvolvimentista que, igualmente ao campo neoliberal, concebe o lucro como um deus, recuando diante de inúmeros benefícios dados de bandeja pelo governo. Singer explica que a burguesia brasileira aderiu à campanha anti-desenvolvimentista porque, tradicionalmente, recua quando o Estado passa a progressivamente assumir o controle do mercado e, em consequência, ameace os interesses do grande capital internacional. A convicção de estarem diante de um projeto que ampliaria o raio de ação do Estado, regularia e controlaria a atividade privada, estatizaria setores estratégicos e que levaria à uma ofensiva do campo neoliberal que os empresários brasileiros temiam não suportar, foi o suficiente para unificar o setor privado contra Dilma[xi].
Em consequência, Fiesp, Sinaval, Abdib, Abimaq, Abiquim e outras importantes associações corporativas e grupos da grande burguesia interna passaram de beneficiados das políticas do governo para algoz do mesmo. Manifestam isso principalmente em fevereiro, março, abril e agosto 2015, quando dão grande apoio às manifestações pró-impeachment inflando pato amarelo na Avenida Paulista, dentre outras ações.
Essa ofensiva e o recuo de Dilma diante dela, intensificado pelo estelionato da presidenta em 2015, momento em que ela adota por completo o programa da oposição, aliados a segunda leva da crise internacional, foram os principais fatores econômicos que levaram o país à depressão econômica. A curva da crise de 2008 foi concebida por muitos especialistas, incluindo Mantega, como em V. Em 2011 já apresentava suas credenciais que, na realidade, se tratava de um W. E, no inverno desse ano, a segunda fase da crise financeira internacional cai sobre o governo Dilma. Com os desdobramentos da crise político-econômica interna que se formava no Brasil, não encontrou barreiras no país a nova onda de recessão internacional (retração chinesa, rebaixamento dos preços das commodities agrícolas e minerais, como o minério de ferro e petróleo, complicação generalizada dos termos das transações comerciais).
Em 2014, a oposição tinha tudo para vencer as eleições presidenciais. Apesar do desgaste de doze anos de governos federais petistas, da economia em baixa, da inflação sobretudo de alimentos, do clima de polarização pós-protestos de 2013, das investidas da frente neoliberal, Dilma é reeleita, enfurecendo a oposição e parte da base aliada. Durante a campanha, a esquerda ex-governista abraçou o discurso da polarização, com o intuito (consciente ou não) de insuflar a oposição psdbista o que, por sua vez, aplacaria o avanço de Marina Silva que, após a morte de Eduardo Campos, cresceu nas eleições. Então, de modo a evitar um possível segundo turno entre Marina e Dilma – dois nomes oriundos da militância de esquerda – o ex-governismo iniciou uma forte campanha contra a candidata ambientalista e isso, em consequência, deslocou Aécio para o segundo turno, alguém que durante a campanha esteve em vias de renunciar. Curiosamente, então, o psdbista contou com a cooperação indireta de onde menos se esperava: a esquerda ex-governista, a qual participou de uma operação de destruição da figura pública de Marina e, dessa forma, beneficiou o candidato mineiro. Essa polarização entre PT e PSDB intensificada pelo ex-governismo ampliou o clima de descontentamento da população com o sistema político-institucional, especialmente entre aqueles que foram às ruas em 2013 e que diziam nem Dilma nem Aécio.
Tudo fica explicado quando Dilma vence e, à revelia de toda a campanha que fez nas eleições, afirmando que não permitiria a contensão do crescimento, a recessão, o desemprego, o arrocho salarial, o aumento da desigualdade e toda a submissão que o Brasil tinha no passado ao FMI, ela faz totalmente o contrário, adotando o programa neoliberal da oposição. Esse estelionato eleitoral explica porque o alarme do ex-governismo soou quando Marina aumentou as suas possibilidades de ir para o segundo turno. A guinada à esquerda que entre os ex-governistas não passava de pura fantasia, e o estelionato eleitoral é prova cabal disso, com Marina poderia se tornar real. Precisaram, então, tira-la do páreo.
A reeleição de Dilma e sua atitude subsequente intensifica ainda mais a crise política e o clima de descontentamento e desconfiança. Era evidente que a crise de representação e a desconfiança nas instituições políticas não só persistem no país, como também foram intensificadas. Não é à toa a corrupção ter sido um dos principais temas debatidos entre os candidatos e como um dos fatores para a população escolher determinado candidato, ou nenhum. Baquero; Castro e Ranincheski afirmam que, “o ambiente político que precedeu e caracterizou as eleições de 2014, marcado por um sentimento difuso negativo em relação à política em geral, deu espaço para a diminuição da confiança nas instituições políticas, fortalecendo a ideia de vivermos sob uma democracia inercial”[xii]. Para os autores, essa desconfiança é fruto do mau funcionamento das instituições e o consequente descrédito. Quando é bem-sucedido um projeto realizado pelo poder público, a razão de seu sucesso é atrelado a uma figura especifica, personalizando a ação. Exemplo disso é o bolsa família, programa que teve efeitos muito positivos no país e que, para um grande número de pessoas, não é uma conquista dos movimentos sociais e da ação das instituições, e sim unicamente do trabalho de Lula. Essa cultura política de descrédito põe em xeque a democracia, tendo como efeito perverso o questionamento do sistema democrático[xiii].
A oposição coordenada pelo PSDB se aproveita desse clima de descontentamento e desconfiança e joga ainda mais lenha na fogueira questionando a veracidade do resultado das eleições. Dias depois das urnas expressarem mais de 54 milhões de votos para a petista, FHC afirma que “o governo Dilma é legal, mas não legítimo”[xiv]. Inicialmente, as lideranças desse partido pediram a recontagem dos votos. Progressivamente, foram adotando o discurso do impeachment.
Provocadas pela mídia e estimulada pelos psdbistas, em 2015 a alta classe média segue em massa para se manifestar contra o “erro” das urnas de 2014. Assim, essa classe média, segundo Boito Jr., se tornou uma ampla e ativa base de massa para a frente cooptada pela burguesia internacionalizada. Ainda que essas manifestações não tenham sido controladas por essa burguesia, funcionaram como principal instrumento de legitimação da ofensiva neoliberal. Assim, milhares de manifestantes se mobilizaram, principalmente, no primeiro semestre de 2015. Os protestos massivos e os “panelaços” convergiram para a demanda de impeachment da presidenta Dilma e explicitavam o ranço antipetista e antigovernista que permeiam os manifestantes. Além do Plano Dilma, incomoda essa classe média as medidas próprias do lulismo, como os programas de transferência de renda para a população em situação precária, as quotas raciais e sociais nas universidades e no serviço público, a extensão dos direitos trabalhistas às empregadas e empregados domésticos, a recuperação do salário mínimo. Todas essas medidas, segundo o cientista, “são vistas pela alta classe média como uma conta que ela deverá pagar por intermédio dos impostos que são cobrados”, além de uma ameaça “à reserva de mercado que os seus filhos ainda detêm nos cursos mais cobiçados das grandes universidades e nos cargos superiores do serviço público” e, ainda, são vistas “como afrontas aos valores da ideologia meritocrática”[xv].
Guiadas pela ideologia neoliberal, o protagonismo da alta classe média foi grande também porque, ainda segundo Boito Jr., essa classe dispõe de uma posição estratégica no Judiciário. Então, segmentos dela que ocupam a cúpula dessa instituição – juízes, procuradores, desembargadores, defensores públicos, delegados e outros – valem-se de suas posições para de maneira quase unilateral denunciar, investigar e julgar os esquemas de corrupção praticados pelo PT. E, assim, denigrir a imagem do partido e de seus principais representantes, de modo a colocar na parede o partido do governo e o próprio governo neodesenvolvimentista[xvi].
A expressão mais clara disso hoje é, sem dúvida, a operação Lava-Jato – principalmente a conduta do juiz Sérgio Moro. Impossível não concordar que a postura dele ao longo dessa operação é, no mínimo, questionável. Ninguém precisa conhecer muito Direito para perceber que o estado de coisas em Curitiba carrega problemas jurídicos graves. Práticas políticas questionáveis como toda a operação repressiva e espetacularizada envolvendo o depoimento do ex-presidente Lula, assim como o vazamento seletivo de informações da Lava Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações, criam um clima ‘schmittiano’ de suspensão da lei, intensificado por uma relação promíscua entre Judiciário e ‘grande mídia’. E, a cada manifestação de Moro, fica claro o seu pensamento simplório, próprio de quem teve uma formação “concurseira” e que adota uma identidade salvacionista inspirada e vitaminada em bordões midiáticos.
Até as pedras do calçamento viram as redes corporativas de notícias receberem da Lava Jato uma série de informações, delações, áudios vazados e, com todo esse aparato, cobrirem exaustivamente essa operação, explorando tudo em seus mínimos detalhes e, quase sempre, fazendo ilações, apostando em denúncias, até condenando moralmente os envolvidos nos esquemas de corrupção antes do julgamento.
Dessa maneira, além de o Judiciário investigar com atenção especial os crimes cometidos pelo PT, os esquemas protagonizados pelos petistas são superlativizados pelas lentes da grande mídia que, com a sua dramaticidade e forte tendencionismo, envolve em uma nuvem de fumaça e rouba o oxigênio do debate político. Com claros interesses eleitorais, dessa forma a mídia levanta bandeiras, superlativa os acontecimentos e vitamina os nervos da população contra o PT e suas figuras principais.
Contudo, ainda que os esquemas de corrupção comandados pelo PT tenham recebido uma atenção especial por essa operação, grande parte dos políticos perderam com ela, já que pôs pressão sobre eles, afetando a coalizão governamental. Assim, quanto mais a operação avançou, mais foi produzindo efeitos desorganizadores sobre o governo Dilma e gerando descontrole no sistema de megacoalizões. Os diálogos gravados de Romero Jucá (PMDB) explicitam bem que as investigações não se limitaram ao partido do governo e o governo Dilma. Com o avanço da operação ficava claro para os parlamentares que Dilma não oferecia proteção contra as investidas da Justiça. A prisão de Delcídio do Amaral em novembro de 2015 foi, com certeza, a gota-d’água para o pemedebismo isolar o governo Dilma. Precisavam “estancar a sangria”.
Concomitantemente, ocorria nos subterrâneos do campo político uma série de acontecimentos que precisa urgentemente ser melhor estudada. Como já foi apontado, a descontinuidade política do primeiro mandato de Dilma em relação ao período Lula não se limita à sua blitzkrieg econômica. A ruptura também ocorreu no campo político. Neste as onças cutucadas foram os peemedebistas. Segundo Nobre, “o grande objetivo foi enfraquecer o PMDB, apoiando-se nele ao mesmo tempo. A tentativa de dar um abraço de tamanduá no aliado de chapa presidencial foi conduzido pelo governo Dilma, de um lado, e pelo próprio Lula, de outro”[xvii].
Para isso, Dilma promove a fragmentação partidária, sendo a criação do PSD – uma espécie de equivalente funcional do PMDB – a maior expressão disso. O objetivo era instigar a saída de políticos do PMDB e colocar uma coleira neles e mantê-los perto de si, sob seu comando. Isso diminuiria consequentemente as bancadas pemedebistas na Câmara e no Senado, enfraquecendo o partido. Ao mesmo tempo, Lula procurou dar maior destaque ao PT e diminuir o preço do PMDB. Nas eleições de 2012 e de 2014, ele adotou a estratégia de coligar com esse partido nas regiões onde necessitava de seu apoio, e se distanciar onde essa união de forças não seria necessária. A estratégia fracassou. O PT elegeu um número muito menor de deputados do que os anos anteriores e perdeu grande parte do apoio da base parlamentar pemedebista.
Antes disso, o primeiro grande abalo na coalizão se deu logo no início do Dilma I, quando uma série de denúncias de corrupção culminou na queda de setes ministros. Além de não interpor obstáculos à investigação, a presidenta também implementou várias medidas que tornaram a administração federal mais transparente e responsiva. A mesma postura foi adotada nas investigações posteriores, como a Lava-Jato. Isso entrou em choque direto com a sua base aliada, dando início a uma série de abalos que, ao final do processo, se tornará um dos fatores que resultou na cisão da megacoalizão e no golpe.
Assim, depois dos governos de FHC e Lula terem implementados dois grandes processos de transformação (Plano Real e Fim da Miséria) sem incomodar o PMDB, o horizonte se deslocou. Por meio da fragmentação partidária, Dilma conseguiu formar um bloco interno dentro do comandado pelo PMDB. Porém, ao invés de apoia-la, esse bloco aliou-se à frente antidesenvolvimentista e, em 2015, sob o comando do Dep. Eduardo Cunha (PMDB), esse lobby será o responsável pela instauração do processo de impeachment. Ao perceberem o enfraquecimento do governo e o avanço das investigações da Lava Jato, os líderes do PMDB – em especial, Temer e Cunha – dão início a uma série de ações que emergiria do subterrâneo do sistema político o que já estava acontecendo desde o início do primeiro mandato de Dilma: a quebra na megacoalizão. Exemplo emblemático da mobilização de Temer e o insulamento do governo é a famosa carta que o pemedebista enviou à Dilma em dezembro de 2015, na qual ele deixa claro o rompimento com a presidenta.
No segundo mandato, o primeiro episódio do projeto de ruptura com o PMDB promovido por Dilma foi a disputa pela presidência da Câmara no início de 2015, mas Eduardo Cunha venceu com tranquilidade. Para Limongi, “eleito em confronto aberto com o governo, Cunha passou a acalentar sonhos mais altos. Foi aí, se não antes, que seus desejos e os de uma parte considerável do establichment se alinharam”[xviii]. As manifestações da alta classe média seguem e apontam o novo presidente da Câmara como o “salvador da pátria”. O MBL busca uma aproximação com o pemedebista, com o intuito de convencê-lo a instaurar o processo de impeachment, e tenta usar o povo na rua como forma de pressão. No PSDB também acontece movimentações, com Aécio defendendo a derrocada da presidente reeleita e FHC afirmando que não existiam pressupostos sustentáveis para esse processo.
Segundo Limongi, Cunha se mantém presente nos debates, na mídia e até faz um pronunciamento em rede nacional, posando de estadista e acelerando as votações na câmara, mas não manifesta apoio ao impeachment. Sempre um estrategista, lançaria-mão da oportunidade no seu devido tempo. Ele, incluindo muitos dos outros atores, estavam à espera dos desdobramentos da Lava Jato, na expectativa de que a investigação traria provas que comprometeriam Dilma.
Na liderança do Poder Legislativo, a subserviência aos interesses do Executivo seria deixada de lado em nome do protagonismo da Câmara, que passaria a adotar pauta própria. Enquanto barrava boa parte das medidas propostas pelo governo para estabilizar a economia, Cunha enxota a paralisia para a sua pauta e “aprovou o maior volume de projetos dos últimos 20 anos”, como a Folha de S. Paulo noticiou. A mídia e a “opinião esclarecida”, como era de se esperar, aplaudia o ativismo e a independência conquistada pela Câmara dos Deputados. A grande quantidade de projetos aprovados não significa, obviamente, um avanço para o país. O pemedebista era visto por uma parcela significativa da população e do sistema político como o líder capaz de derrubar o PT[xix].
Em abril de 2015, entretanto, o movimento contra o governo parecia ter chegado ao fim e a proposta de impeachment parecia que morreria na praia. Mas, nesse exato momento a tese do impedimento do mandato da presidenta ganhou um novo aliado. O ministro do TCU, Augusto Nardes, passou a afirmar que havia no governo Dilma descaso com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Porém, no momento em que a possibilidade foi levantada, Cunha a considera um motivo genérico para sustentar um impeachment, já que as chamadas “pedaladas fiscais”, segundo ele, “vem sendo praticado nos últimos quinze anos sem nenhuma punição” e não teriam ocorrido no atual mandato[xx]. Mas a Lava Jato lhe tirou dessa posição confortável. Ele faz essa afirmação em abril e, com o avanço da operação, rompe publicamente em julho com o governo e, em agosto, ameaça-o com uma “pauta-bomba” e com o impeachment. A investigações caminhavam e ele precisava ganhar tempo. Ameaçar ao mandato da presidência era sua arma de defesa[xxi].
Então, surfando no prestígio conquistado, Cunha põe em marcha a partir de agosto a operação para apreciar a contabilidade do governo Dilma e abre o processo de impeachment em dezembro. O PSDB se coloca sob a liderança do pemedebista desde o início do segundo semestre e não hesitou em aderir à reencarnação do movimento pró-impeachment. Os três movimentos pró-impeachment se coordenam e investem pesado para promover novas manifestações, mas estas são muito aquém do esperado. Nessa situação, como disse Limongi, “a operação impeachment tinha apoio popular, mas não seria o povo nas ruas, pressionando os políticos, que faria a roda se mover”. Assim, somente os Revoltados On Line continuam convocando atos. Esse desenrolar dos acontecimentos significa que “o movimento de rua, como o PSDB, passou o bastão para Eduardo Cunha, líder e artífice da operação impeachment”[xxii].
Enquanto outros políticos do PMDB, como Renan Calheiros, eram rechaçados, Cunha era poupado por parte significativa da população. Incensado por parte considerável da população, especialmente a alta classe média, e cortejado por parte da burguesia, pela mídia, pelo grande capital internacional, enfim, pela frente anti-desenvolvimentismo e pró-reformas neoliberais, Cunha faz com que o processo de impeachment siga a passos largos. Em contrapartida, a votação sobre a sua cassação era bloqueada. Indiferentemente a tudo o que ele representa e fez contra o país, o líder da Câmara se tornou o “paladino salvador da pátria” que livraria o país do mal (leia-se: PT).
Contudo, o ar vitorioso foi poluído em 17 de abril de 2016, quando ocorre no congresso a votação do impeachment. Um amargo ascendeu na boca dos apoiadores e o olhar deles desceu ao chão. Durante mais de cinco horas, 511 parlamentares deliberaram sobre o processo. E, em nome de deus, em nome da família e do povo, entre outras canalhices, 367 deputados votaram sim. Difícil mensurar em palavras o quão deprimente foi o circo de horrores que, bestializados, assistimos nesse dia. Creio que todo brasileiro em alguma medida sabe que, ressalvando alguns, os nossos representantes no Congresso não são flor que se cheire. Mas a sessão de votação do impeachment nos mostrou que o foço é ainda mais fundo. As câmeras do plenário mostraram, como um espelho, algo nem um pouco bonito de se ver e que nos esforçamos tanto para esconder: a nossa sociedade é reacionária, autoritária, preconceituosa, vulgar. O dia 17 de abril de 2016 permanecerá na memória nacional como a data em que nos reencontramos com nossos representantes que, sem qualquer constrangimento, expuseram o seu âmago. E o que vimos não foi nada interessante.
Aquelas declarações de voto tiveram, desse modo, um papel extremamente educativo. Percebi isso logo nos dias seguintes: vi muitos comemorando, mas os seus sorrisos eram amarelos e os olhos estavam sem brilho, a boca parecia amarga. Espero que esse choque tenha servido para entendermos, entre outras coisas, que os nossos representantes não são seres de outro planeta jogados em Brasília para afundar o país. Eles são fruto de nossa sociedade, são tecidos nela. Neste sentido, a crença simplista e ingênua, defendida pela grande mídia, de que o nosso sistema político é feito de “puros” e “impuros”, e que basta tirar do poder os impuros para acabar com todos os males, é claramente infundada. Não é tão simples assim.
No fim desse processo, temos o país mergulhado numa das maiores crises político-econômicas dos últimos tempos e Temer no poder. Algo que, por mérito próprio, ele nunca conseguiria alcançar. Pode-se dizer que o golpe parlamentar de 2016 foi o sintoma mais drástico de que a panela de pressão que se tornou esse sistema explodiu, jogando feijão para todos os lados e quebrando as paredes de sustentação da governabilidade. Impulsionado por interesses do campo político e financeiro nacional e internacional e financiado pelos mesmos, pretensamente justificado por uma série de jargões da casta político-burocrática do Senado, defendido pela mídia corporativa local e internacional, atravessado por uma sociedade excitada e cindida ao meio, ancorado numa crise sistêmica da democracia representativa, orquestrado por cálculos partidários e processado num modus operandi diferente do visto em tempos anteriores, esse golpe deixou evidente que chegou ao limite a maneira de evitar o confronto aberto de posições, pois esse sistema não poderia mais funcionar nos mesmos termos que funcionou ao longo das últimas duas décadas. Por tudo isso, 2016 marca um momento de inflexão na história do país que determina o fim da Nova República.
Foi um golpe parlamentar, que é a nova modalidade que vem sendo adotada pelo ativismo conservador na América Latina. Seguindo essa fórmula, o primeiro que ocorreu foi em Honduras (2009), com a deposição do presidente Manuel Zelaya. O segundo, no Paraguai (2012), destituiu o Fernando Lugo. Nos três processos de destituição, os grupos que assumem o poder pertencem à direita neoliberal. Essa frente tem alçado o poder por outros meios também. Na Argentina, vimos um candidato dessa ala eleger-se presidente pelas urnas em eleições livres. Recentemente, vimos também as eleições na Venezuela que marcaram o fim do chavismo e a derrota de Evo Morales no referendo boliviano sobre uma terceira reeleição. Esses são só alguns exemplos que indicam um novo giro político na América Latina, numa corrente de retorno de governos dispostos a implementar reformas neoliberais.
Ora, diante do crescente aumento do poder político e econômico da China nessa região, não seria nonsense os EUA estarem envolvidos nas transformações políticas ocorridas nos países latino-americanos, com o intuito de contra-arrestar a presença do gigante oriental por meio da destituição de governos “numa região que convive com a democracia há apenas uma geração”[xxiii]. E, por meio disso, desconfigurar a cooperação Sul-Sul. Essa cooperação é um processo de articulação política e de intercâmbio econômico, científico, tecnológico, cultural e outras áreas, entre países da África, Ásia e América Latina. Não me espantaria, portanto, se os EUA for um dos atores do movimento de enfraquecimento das democracias dos países latino-americanos, de modo a reaproxima-los para perto de si em busca de um acordo de livre-comércio. Se non è vero, è bene trovato.
A convergência externa não pode, entretanto, atrapalhar a análise dos fatores internos. É um engano analisar o processo que culminou na queda de Dilma em 2016 partindo unicamente de fatores externos, pois, esse caminho analítico abafa as razões internas. É preciso entender, portanto, que muito do que aconteceu foi fruto dos erros da própria esquerda no poder. Entender o processo somente a partir de efeitos externos não só impede compreendermos em sua completude o acontecimento, como também impossibilita que a esquerda reveja a si própria.
Ao mesmo tempo, não podemos nos limitar a aceitar as proposições supostamente explicativas do discurso dominante que, entre outras coisas, intentou caracterizar o golpe parlamentar de 2016 com uma opaca roupagem de legalidade. Ao nos debruçarmos com atenção, perceberemos que, apesar do esforço dispendido, não foi o suficiente para encobrir os velhos interesses do grande capital internacional e esconder o fato de que, através do golpe, a legalidade democrática, a estabilidade institucional e, mais especificamente, a fagulha de soberania popular que a democracia representativa garante, isto é, o resultado das urnas, foram desrespeitados por esse processo e alçou ao comando-mor do país atores preocupados unicamente com os seus interesses particulares e do grande capital, em detrimento das necessidades do povo.
Diante dessa breve radiografia do golpe, tenho pouquíssimas certezas, mas uma delas é pétrea: a esquerda não será protagonista da luta contra os golpistas se continuar resistindo em pesar na balança das análises todas as características que permearam a derrubada da presidenta e levar em conta que não houve uma inversão abrupta do sistema político, como aconteceu em 1964. Houve ilegalidades, chicana, conspiração, canalhice. Houve a queda da cabeça. Mas não houve inversão nas figuras que compõe o corpo do poder. Ao invés de fortalecermos as frentes, só estaremos atrapalhando a luta contra o governo Temer se continuarmos repetindo ad nauseam a versão do golpe construída mediante a descontextualização e consequente desistoricização do processo que o engendrou. Envolver os olhos com as faixas do vitimismo, da melancolia e da arrogância não permite à ninguém – muito menos à esquerda – rever a si próprio, compreender a crise política e se atualizar teórica, política e ideologicamente. Quando nós de esquerda concebermos isso com clareza e profundidade, talvez saíamos da periferia das lutas.
[i] AVELAR, Idelber. Ascensión y caída del lulismo. Dossiê: Mientras La Antorcha Olímpica: los primeiros 100 días del Golpe en Brasil. Revista Transas: Letras y Artes de América Latina. 2016. Disponível em: < http://www.revistatransas.com/2016/09/15/ascension-y-caida-del-lulismo/ >. Acesso em: 15/01/2017.
[ii] SINGER, André. Os impasses do lulismo. Brasil de Fato, 2013.
[iii] AVELAR, Idelber. Ascensión y caída del lulismo…, op. cit, Acesso em: 15/01/2017.
[iv] SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). Revista Novos Estudos. São Paulo, v. 34, n. 2, 2015, p. 52.
[v] NOBRE, Marcos. 1988 + 30. Revista Novos Estudos. São Paulo, v. 35, n. 02, p. 135-149, 2016, p. 144.
[vi] ROUSSEFF, Dilma. Apud. SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas…, op. cit, p. 53.
[vii] SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas…, op. cit, p. 54.
[viii] Idem, p. 55.
[ix] BOITO JR., Armando. A crise política do neodesenvolvimentismo e a instabilidade da democracia. Crítica Marxista, n. 42, 2016, pp. 159.
[x] Idem, p. 161.
[xi] SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas…, op. cit., p. 70.
[xii] BAQUERO, Marcello; CASTRO, Henrique C.; RANINCHESKI, Sônia M. (Des)confiança nas instituições e partidos políticos na constituição de uma democracia inercial no Brasil: o caso das eleições de 2014. Política & Sociedade. Florianópolis, v. 15, n. 32, 2016, p. 29.
[xiii] Idem, p. 33.
[xiv] CARDOSO, Fernando Henrique. Vitória amarga. O Estado de S. Paulo, 7/12/2014.
[xv] BOITO JR., Armando. A crise política do neodesenvolvimentismo…, op. cit., pp. 159-160.
[xvi] Idem, p. 159.
[xvii] NOBRE, Marcos. 1988 + 30…, op. cit., p. 143.
[xviii] LIMONGI, Fernando. O passaporte de Cunha e o impeachment: a crônica de uma tragédia anunciada. Novos Estudos. São Paulo, n. 3, pp. 98-113, 2015, p. 103.
[xix] Idem, p. 106.
[xx] Idem, p. 105.
[xxi] Idem, p. 105-109.
[xxii] Idem, p. 110.
[xxiii] SVARTMAN, Eduardo M.; REIS DA SILVA, André L. Castigo sem crime? Raízes domésticas e implicações internacionais da crise brasileira. Conjuntura Austral: jornal of the global South. Porto Alegre, v. 7, n. 35, p.4-14, 2016, p. 14.
O autor é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa e escreve para o Pragmatismo Político, Jornal da Manhã, Diário dos Campos, Cultura Plural, entre outros espaços.