Por Slavoj Žižek, via Independent, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
Após os trágicos acontecimentos nos EUA que se seguiram as propostas para remover as estátuas do general Robert E Lee, o comandante do Exército Confederado na Guerra Civil, Donald Trump afirmou que como George Washington também era um dono de escravos, os dois podiam ser equiparados.
Existe uma figura de cavalheirismo do sul popular mesmo na literatura “progressista”. Lembre-se de Horace do Little Fixes de Lillian Hellmann, um patriarca benevolente com um coração fraco que está horrorizado com os planos de sua esposa de brutal exploração capitalista de suas propriedades. Olhe para Atticus Finch de To Kill a Mockingbird que, como é revelado na sequência, também teve uma veia racista. A Confederação não era sobre a escravidão, mas sobre a proteção de um “modo de vida” local do brutal ataque capitalista. Essas figuras esquerdistas-liberais icônicas do anticapitalismo bucólico-patriarcal conservador ajudaram sinceramente os negros do sul quando eles foram oprimidos e falsamente acusados, mas sua simpatia cessa quando as pessoas de cor começam não somente a lutar, mas também a questionar a liberdade real proporcionada pelo establishment liberal do norte.
Mas Robert E Lee não era nem mesmo tal cavalheiro. Não há relatos de que ele teve qualquer escrúpulo interno sobre a escravidão. Além disso, mesmo entre os proprietários de escravos, havia uma divisão entre aqueles que, quando estavam revendendo seus escravos, cuidavam para que as famílias com filhos permanecessem juntas, e aqueles que não se incomodavam, felizes em separar as famílias – Lee estava entre este segundo grupo muito mais severo. Ele pode muito bem ter parecido ser um cavalheiro de boas maneiras, mas no entanto ele tratou brutalmente com os escravos – por mais difícil que possa ser aceitar, as duas características podem andar juntas.
Um verdadeiro cavalheiro branco foi baleado por Robert E Lee: John Brown, uma das principais figuras políticas da história dos EUA, o abolicionista fervorosamente cristão que mais se aproximou de introduzir a lógica radical emancipatória e igualitária na paisagem política dos EUA. Como Margaret Washington disse, ele deixou bem claro que não via diferença entre brancos e negros, e “ele não deixou isso claro dizendo, ele deixou claro pelo que ele fez” – é assim que um verdadeiro cavalheiro fala e age, se o termo “cavalheiro” puder ter alguma dimensão emancipatória.
Seu igualitarismo consequente levou-o a se envolver na luta armada contra a escravidão: em 1859, tentou armar escravos e assim criar uma violenta rebelião contra o sul; a revolta foi suprimida e Brown foi levado à prisão por uma força federal liderada por ninguém menos que Robert E Lee. Depois de ter sido declarado culpado de assassinato, traição e incitação a uma insurreição de escravos, Brown foi enforcado em 2 de dezembro. Ainda hoje, muito tempo depois que a escravidão foi abolida, Brown é a figura divisória da memória coletiva americana: sua única estátua que se encontra em um local obscuro no bairro de Quadaro em Kansas City (a cidade original de Quindaro foi uma grande parada na estrada de ferro subterrânea) é muitas vezes vandalizada.
Todos os grandes mitos fundadores americanos devem ser re-analisados: há outro lado obscuro da Guerra da Independência. Os “heróis de Alamo” também estavam defendendo a propriedade de escravos. Este outro lado é retratado em um filme de 1999: Lance Hool’s One Man’s Hero, que conta a história de Jon Riley e do Batalhão de São Patrício, um grupo de imigrantes católicos irlandeses que desertaram do Exército dos EUA, majoritariamente protestante, para o lado católico mexicano durante a Guerra Mexicano-Americana de 1846 a 1848 e que lutou heroicamente para defender a República do México da agressão dos EUA.
No final do filme, enquanto trabalha em uma pedreira para prisioneiros militares, Riley é informado por seu ex-comandante dos EUA que ele foi libertado, ao que ele responde: “Eu sempre fui livre”.
O ponto não é apenas desprezar a Guerra da Independência como uma falsificação: há indubitavelmente uma dimensão emancipatória nas obras de Jefferson e Paine, entre outros. Apesar de ser um dono de escravos, Jefferson é um elo importante na cadeia das lutas emancipadoras modernas, e a luta pela abolição da escravidão foi basicamente a continuação do trabalho de Jefferson.
Jefferson não é o mesmo que Robert E Lee, e as inconsistências em sua posição apenas demonstram como a Revolução Americana é um projeto inacabado (como Habermas poderia colocar). Em alguns sentidos, sua verdadeira conclusão, seu segundo ato, foi a guerra civil; em outros sentidos, ela não terminou até 1960, com a realização do direito negro ao voto; e ainda para muitos, como demonstra a persistência do mito da Confederação, ela ainda não acabou mesmo hoje.
Da mesma forma, embora os pontos de vista de Immanuel Kant sejam racistas, ele apesar disso contribuiu para o processo que levou a lutas emancipatórias contemporâneas – para coloca-lo claramente, não há marxismo e nenhum socialismo sem Kant.
Este é o ponto que Trump perdeu quando ele colocou o “respeito” por Lee na mesma linha com o respeito pela tradição americana e disse: “Esta semana, é Robert E Lee e esta semana, Stonewall Jackson. Será George Washington em seguida? Você tem que perguntar a si mesmo, onde isso vai parar? […] George Washington era um dono de escravos. Nós vamos derrubar as estátuas de George Washington? … Você está mudando a história, você está mudando a cultura “.
Como Jamil Khader apontou, em suas reações à matança de Charlottesville, Trump não traiu apenas o multiculturalismo, mas também e acima de tudo o legado emancipatório do universalismo. A política de identidade concentra-se no direito de cada grupo (étnico, religioso, sexual) poder afirmar plenamente a sua identidade particular – a tarefa muito mais difícil e radical é permitir a cada grupo o pleno acesso à universalidade.
Malcolm X não estava seguindo esse mesmo insight quando ele adotou X como seu nome de família? O ponto de escolher X como seu nome de família e assim sinalizar que os traficantes de escravos que levaram os africanos escravizados da sua pátria privando-os brutalmente de suas raízes familiares e étnicas, de todo o seu mundo-vida cultural, não foi para mobilizar os negros para lutar pelo retorno a algum tipo de raízes africanas primordiais, mas precisamente para agarrar a abertura oferecida pela X, uma nova e desconhecida (falta de) identidade engendrada pelo próprio processo de escravidão que tornou as raízes africanas perdidas para sempre. A ideia é que este X que priva o povo negro de sua tradição particular oferece uma chance única de redefinir e reinventar a si mesmos, de livremente formar uma nova identidade muito mais universal do que a universalidade professada pelos brancos. (Como é bem conhecido, Malcolm X encontrou essa nova identidade no universalismo do Islã).
A grande tarefa da esquerda ocidental é deixar para trás o processo politicamente correto de auto- flagelação infinita que é a forma invertida de se apegar à superioridade: a ideia de que os desastres naturais e a violência terrorista são apenas reações a nossos crimes. O Ocidente está preso ao típico dilema do superego: quanto mais confessa seus crimes, mais isto é feito para fazê-lo sentir-se culpado.
Se a auto-flagelação contínua do Ocidente pelos males do mundo em desenvolvimento funciona como uma tentativa desesperada de reafirmar nossa superioridade, a verdadeira razão pela qual o mundo em desenvolvimento odeia e rejeita o Ocidente não é seu passado colonizador e seus efeitos contínuos, mas o espírito autocrítico que o Ocidente demonstrou ao renunciar a esse passado, com o chamado implícito aos outros para praticar a mesma abordagem autocrítica.
A redução liberal das populações do mundo em desenvolvimento a uma vítima passiva priva-as de qualquer agência, e falha em ver como o Oriente Médio não é de modo algum apenas vítima passiva de maquinações neocoloniais europeias e americanas.
Seus diferentes cursos de ação não são apenas reações, eles são formas diferentes de envolvimento ativo em sua situação: o impulso expansivo e agressivo para a islamização (o financiamento de mesquitas em países estrangeiros, por exemplo) e a guerra aberta contra o Ocidente são formas de se envolver ativamente em uma situação com um objetivo bem definido.
O legado ocidental efetivamente não é e apenas o da dominação imperialista (pós)colonial, mas também o do exame autocrítico da violência e da exploração que o Ocidente trouxe ao mundo em desenvolvimento. Os franceses colonizaram o Haiti, mas a Revolução Francesa também forneceu o fundamento ideológico para a rebelião que libertou os escravos e estabeleceu o Haiti independente; o processo de descolonização foi posto em movimento quando as nações colonizadas exigiram para si mesmas os mesmos direitos que o Ocidente tomou para si mesmo.
Em suma, nunca se deve esquecer que o Ocidente forneceu os próprios padrões através dos quais ele (assim como seus críticos) medem o seu passado criminoso.