A Sociopsicomancia e o Horizonte da Possibilidade

Via Verso Books, traduzido por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.

Neste trecho da introdução ao livro “Futurabilidade: A Idade da Impotência e o Horizonte da Possibilidade”, Franco “Bifo” Berardi apresenta um quadro sombrio de um mundo controlado pelo “capitalismo absoluto” e pela “agressão nacionalista”. Mas, em vez de se desesperar com essa desordem, Berardi vê-a como parte integral da mudança. Acredita que “um novo cosmo está prestes a surgir” do caos contemporâneo. A caixa de Pandora pode estar aberta, mas a esperança ainda não escapou. 

O livro é uma tentativa de elaborar um mapa psicomântico da futurabilidade social: uma investigação (ou divinação) da formação social da psicoesfera.


Desse ponto de vista podemos vislumbrar as linhas da evolução brotando da atual vibração social caótica da mente.

Essa vibração caótica é bastante visível no momento, em plena epidemia de loucura agressiva que nos circunda: Daesh, Donald Trump, austeritarismo financeiro e nacional-socialismo ressurgente são sinais da epidemia psicótica contemporânea. Vivenciamos todos os dias a sensação de que é inútil a oposição à crescente onda de racismo, fanatismo e subseqüente violência. De fato, essa onda não é uma decisão política, o resultado da elaboração ideológica e estratégica, mas o efeito do desespero, a reação à humilhação duradoura. A racionalidade perfeita da máquina computacional abstrata, a inescapabilidade da violência financeira pôs em perigo a consciência e a sensibilidade do organismo social, e a frustração reduziu a capacidade geral de sentir compaixão e agir com empatia.

Loucura? Embora a genealogia do desespero e da agressão possa remontar a uma causa social, creio que, no fim do dia, o próprio raciocínio político está impotente. A única maneira de curar essa aflição emocional seria reativar emocionalmente as potencialidades ocultas do organismo social: o movimento “Ocupe”, que se mobilizou em 2011, foi a principal tentativa de nosso recente momento de invocar todas as energias de solidariedade de que o organismo social é capaz. O resultado desse movimento, porém, foi tão parco que a ilusão destruiu qualquer sentimento persistente de solidariedade humana e o organismo social está se comportando como um corpo decapitado que ainda retém suas energias físicas, mas não mais tem capacidade de canalizá-las em uma direção razoável.

Não tenho certeza se podemos julgar em termos psicopatológicos o desmantelamento da moderna civilização social. Os interesses econômicos das corporações e o cinismo dos políticos sem cultura e sem dignidade pavimentaram o caminho para a atual explosão de loucura.

A impotência é, certamente, um sintoma da desproporção: a razão, que era a medida do mundo (ratio), não mais pode governar a hiper-complexidade da rede contemporânea de relações humanas.

Este tipo de desproporção pode ser definido como loucura, no sentido de distúrbio, caos ou confusão metal. No entanto, devemos distinguir entre diferentes pontos de vista quando se trata da definição de loucura.

A loucura é uma ocorrência excepcional que assoma às margens das atividades racionais e razoáveis de vida cotidiana? É um distúrbio inescapável do diálogo contínuo que mantém unida a sociedade?

Se reduzirmos a loucura a um distúrbio inevitável, marginal, que deve ser administrado, que decidimos aplacar e curar, entenderemos tudo errado. A loucura não deve ser vista como um acidente a ser abafado ou reparado. A loucura é o pano de fundo da evolução, a matéria caótica que estamos moldando e transformando em uma ordem provisória.

A ordem significa aqui uma ilusão compartilhada da previsibilidade, da regularidade; uma ilusão projetiva que pode perdurar por um curto ou longo período de tempo, por alguns minutos ou talvez por séculos. Uma ilusão que dá origem ao que chamamos de civilização.

Devemos distinguir entre as duas faces da loucura: uma é a ausência de significação fatual do mundo, o magma circundante da matéria, a proliferação incontrolável dos estímulos, o redemoinho alucinante da vida. Essa loucura é a precondição para a criação do significado: a construção infundada do conhecimento, a invenção do mundo como um todo significativo.

Também existe o lado subjetivo da loucura: a sensação cruciante de que as coisas estão em debandada, a sensação de estar dominado pela velocidade, pelo barulho e pela violência, a de ansiedade, de pânico, de caos mental.

A dor força-nos a procurar uma ordem no mundo que não podemos encontrar porque ela não existe. No entanto, essa ânsia pela ordem existe, sim: é o incentivo para construir uma ponte sobre o abismo de entropia, uma ponte entre as diferentes mentes singulares. A partir dessa conjunção, evoca-se e aplica-se o significado do mundo: uma semiose compartilhada, uma respiração consonante.

A condição da construção infundada do significado é amizade. A única coerência do mundo reside em compartilhar o ato de projeção do significado: a cooperação entre os agentes de enunciação.

Quando a amizade se dissolve, quando a solidariedade é banida e os indivíduos ficam sozinhos e enfrentam a escuridão da matéria em isolamento, então a realidade volta a ser o caos e a coerência do ambiente social se reduz à execução do ato obsessivo de identificação.

Há algo obsessivo nesta tentativa de estreitar a faixa de vibração da qual emerge a possibilidade, e de reduzir a imprevisibilidade de eventos futuros.

“Nunca pude saber até que ponto eu era perpetrador, configurando as configurações ao meu redor, oh, o criminoso sempre volta à cena do crime! Quando considerarmos a grande quantidade de sons, formas que nos atingem a cada momento de nossa existência… o enxame, o rugido, o rio… nada é mais fácil do que configurar! Configurar! Por uma fração de segundo esse mundo me pegou de surpresa como uma fera selvagem numa floresta escura, mas logo mergulhou no tumulto das sete pessoas sentadas aqui, falando, comendo, a ceia continua.”1     

‘De remi facemmo ala al folle volo’, diz Ulisses no Canto XXVI da Divina Comédia.

“Já com popa ao Nascente flamejante.

Asas os remos são na empresa ousada,

E o lenho sempre à esquerda voga avante”.

‘Volo’ que leva ao conhecimento é ‘folle’ (tolo), visto que desafia os limites estabelecidos da razão.

O mundo moderno surge da imprudência das explorações geográficas, do desejo de responder à pergunta: onde estão as fronteiras do mundo?

A indagação penosa do trapaceiro picaresco, que procura responder ao irrespondível: quem sou? De onde venho?

O mundo moderno resulta da indagação de uma ordem não teológica e essa indagação leva ao estabelecimento da ordem burguesa cuja medida (ratio) é tempo, trabalho e acumulação de valor.

Essa ordem baseou-se na organização e codificação semióticas das energias desacorrentadas pela explosão da velha ordem teocrática medieval e pela intensificação da experiência humana que se seguiram às inovações técnicas de impressão de livros e de travessia dos oceanos. Essa ordem é o resultado de um ato de nomeação que dá sentido e escopo aos fluxos evolutivos de informação, descoberta e tecnologia.

Então veio a entropia e dissolveu paulatinamente aquela ordem: no fim do ciclo capitalista, a riqueza produzida pelo trabalho se transforma em miséria, e a liberdade do conhecimento é restringida por uma nova teologia baseada em dogmas econômicos. Mas a aplicação de dogmas econômicos não pode substituir a velha convenção burguesa baseada em medição. Quando o tempo de trabalho e o valor começam a divergir, então a loucura torna-se a linguagem geral do sistema social.

O capitalismo é um cão morto, mas a sociedade é incapaz de sair debaixo do cadáver putrefato, por isso a mente social é devorada por pânico e impotência furiosa, até que por fim recorra à depressão.

A mente social procura uma nova forma de semiotização que possa se adaptar melhor à composição mutante do mundo, mas a vibração de sua criação assume a forma de um espasmo, uma sacudida frenética e dolorosa da própria alma e do próprio corpo.

Os sinais do espasmo podem ser detectados por todos os lados, e a reação a ele assume uma variedade de formas paranóicas: Donald Trump jacta-se da glória passada da América e da retomada do uso legal da tortura. A união Européia é despedaçada pelo absolutismo financeiro e pela agressão nacionalista e está construindo campos de concentração para migrantes nas costas da Turquia, do Egito e do Líbano. Um exército de fanáticos muçulmanos decapita pessoas inocentes por amor a Deus. Nas Filipinas, um assassino autoproclamado é eleito presidente e exige a violência em massa contra os desistentes sociais.

Setenta anos após a derrota de Hitler, Hitler está de volta, multiplicado por uma dúzia de imitadores, sendo que alguns deles estão dotados de armas nucleares.

Os contornos da convenção social foram eliminados, e os fluxos não filtrados de imaginação invadem a mente social. A esquizofrenia corre em muitas direções, porquanto vê o horizonte da possibilidade, mas é incapaz de dar forma à sua busca do horizonte, por isso ele se esquiva dela para sempre.

Nas últimas décadas, a mente social foi tomada por um vórtice de transtornos bipolares: uma longa sucessão de euforia e tristeza levou à atual estagnação secular e a um estado de depressão constante.

O horizonte da possibilidade é percebido como uma propagação infinita de flamejantes pontos conectivos. Essa percepção gera ansiedade e pânico: a obsessão paranóica pela ordem tenta reduzir o horizonte à repetição, ao pertencimento e à identidade.

O poder baseia-se na hipostatização das relações existentes de potência, na absolutização sub-reptícia da necessidade subentendida em rapport de force (relações de força) existente. O poder cristaliza-se em uma fixação paranóica a fim re-compactar o mundo por meio de rituais de identificação. A necessidade relativa da ordem transforma-se arbitrariamente em necessidade absoluta: o capitalismo absoluto baseia-se neste truque de lógica. Acumulação, lucro e crescimento transformam-se sub-repticiamente em leis naturais, e o campo da economia legitima essa ilusão.

Quando a sociedade entra em uma fase da crise ou se aproxima do colapso, podemos vislumbrar o horizonte da possibilidade. Esse horizonte em si é difícil de distinguir, e o território, que se limita com esse horizonte, é difícil de descrever ou mapear.

O horizonte da possibilidade pode ser melhor descrito com as palavras de Ignacio Matte Blanco, que definem o inconsciente: ‘O inconsciente lida com os conjuntos infinitos que não apenas têm o poder do enumerável, mas também o do continuum.’2

A explosão da esfera semiótica, a intensificação absoluta da estimulação semiótica, provocou simultaneamente uma intensificação do horizonte da possibilidade e um efeito de pânico no neuro-sistema social.

Nessa condição de pânico, a razão torna-se incapaz de dominar o fluxo de eventos ou de processar os semio-estímulos liberados na Infosfera. Um modo esquizofrênico espalha-se pela mente social, mas essa aflição tem duas faces: é dolorosamente caótica, mas também pode ser vista como a vibração que precede à emergência de um novo ritmo cognitivo.

De acordo com D. E. Cameron, a esquizofrenia pode ser definida como um modo excessivamente abrangente de interpretação.3 De fato, o pensamento esquizofrênico parece ‘abranger excessivamente’ vários objetos irrelevantes e sugestões ambientais na interpretação de uma enunciação: o esquizofrênico parece ser incapaz de limitar a atenção aos estímulos relevantes para a tarefa por causa de uma ampliação excessiva do significado de sinais e de eventos.

Eis porque Guattari vê o esquizofrênico como portador de mudança paradigmática (de ‘caosmose’, no linguajar de Guattari). De fato, o esquizofrênico é a pessoa que perdeu a capacidade de perceber os limites da enunciação metafórica e, portanto, tende a tomar a metáfora como descrição. O esquizofrênico é então o agente de uma experiência trans-racional que pode levar à emergência de um ritmo inteiramente novo.

Podemos chamar essa dimensão de ‘caótica’ porque não corresponde às leis de ordem existentes; não obstante, o possível surge a partir dessa esfera do caos.

A intuição de uma infinidade de possibilidades é a fonte de pânico contemporâneo, aquilo que pode ser descrito como espasmo doloroso. Em Guattari, porém, o espasmo tem um lado caósmico: é a partir da hiperintensidade caótica que um novo cosmo está prestes a surgir.


  1. Witold Gombrowicz, Cosmos: A Novel, trans. Danuta Borchardt (2005), pp. 54-5
  2. Ignacio Matte Blanco, The Unconscious as Infinite Sets: An Essay in Bi-logic (1975), p.17
  3.  D.E. Cameron, ‘Early Schizophrenia’, American Journal of Psychiatry95: 3, pp. 567-82

 

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