Por Julio d’Avila
Conheces o nome que te deram,
não conheces o nome que tens
Livro das Evidências
Em seu livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma, Christian Dunker narra uma história interessante sobre a Princesa Diana e as consequências de uma declaração pública para a psicanálise na época[1]. Em 1995, a princesa deu uma entrevista em que declara abertamente ter anorexia-bulimia e diz que tal condição foi fruto de sua “baixa autoestima” e que era uma forma de “pedir ajuda”. Dois anos depois, “a fobia de engordar e a distorção da imagem corporal tornam-se sintomas dominantes no ex-protetorado britânico”[2]. Mais adiante no livro, ele mostra sua explicação para esse fenômeno. Não era apenas um caso de identificação ideológica, do tipo “agora que a Princesa Diana tem isso ou fez isso, vamos copia-la”. Para Dunker, um determinado tipo de sofrimento, antes não enunciável (as mesmas sensações que afligiam Diana perturbavam outras mulheres, mas elas não encontravam um modo de mostrar isso compreensivelmente) alcançou legitimidade e reconhecimento social (os sintomas foram identificados com um tipo específico de sofrimento, que podia ser reconhecido e nomeado)[3]. Esse episódio não é só relevante para a psicanálise, porque ele serve também de perfeito exemplo para alguns aspectos específicos da teoria deleuziana. Para Gilles Deleuze, a sociedade precisa codificar fluxos nômades, fluxos inomináveis e incompreensíveis na gramática ideológica vigente, porque teme que estes podem a desterritorializar, isto é, promover a exposição das fronteiras ideológicas da sociedade, de tal modo que essa gramática seja percebida como algo imposto, algo criado, e não como nós a vemos hoje, uma gramática correta, ratificada pela sociedade e mantida pelo Estado. Se voltarmos ao exemplo de Dunker, percebermos a profundidade da influência e o enraizamento da ideologia: um sofrimento gravíssimo só pôde ser expresso a partir do momento que um sintoma não necessariamente relacionado com ele foi associado e assimilado. A partir disso, frente aos limites da linguagem e da gramática ideológica, o sofrimento foi anunciado. As limitações são tantas que foi preciso um episódio fortuito, que codificou esse sofrimento, para que centenas de pessoas pudessem enfim dizer, mesmo que não estivessem literalmente dizendo, o que se passava com elas[4]. Porque a sociedade só compreende, só absorve e só trata daquilo que é expresso em seu código, ela precisa disso para manter “harmonia”. Desse modo, percebemos que um movimento ou ato de transformação política deve possuir essa característica perturbadora, deve ser algo que completamente desterritorializa a sociedade: deve ser inominável.
Essa proposição já foi articulada de diferentes modos ao longo da história, mas sua mais evidente e efetiva articulação foi feita por Walter Benjamin, em sua teorização sobre o que ele chama de “violência divina”[5]. Esse excerto de um artigo de Edson Sá dos Reis, VIOLÊNCIA MÍTICA E VIOLÊNCIA DIVINA EM WALTER BENJAMIN, esclarece:
“A violência divina é aniquiladora de todo o Direito, pois ela não privilegia um grupo e exclui outros, e pode ser caracterizada como justiça. Ela não possui fronteiras, pois age sobre todos os seres vivos e se desenrola no palco da vida. A violência divina não traz a culpa e a expiação inerente ao Direito, antes, expia a culpa do homem. Sob a luz da violência divina, os pressupostos de culpa e ameaça não possuem nenhuma validade, pois o palco de atuação dela é a vida. Nesse palco, a violência divina não põe no homem esses fatores presentes no Direito e muito menos reduz o homem à mera vida. Enquanto o direito remete a uma culpa inerente à mera vida, a violência divina expia o culpado e o liberta do Direito.”
Forte referencia para estudos sobre esse tema, o livro Violência (Boitempo Editorial) ,de Slavoj Zizek, cita alguns exemplos da manifestação dessa violência e do efeito que ela produz nas sociedades (certas revoluções da Primavera Árabe, a violência epidêmica e repentina em Londres em 2005, os atos de Gandhi), mas existe um exemplo mais próximo da nossa realidade que deve ser explorado (apesar de ele não ter sido radical o suficiente, permite que esse conceito seja melhor apreendido): as Jornadas de Junho. Quando irromperam, as Jornadas eram indecifráveis, cientistas políticos e sociólogos se contorciam para explicar o fenômeno que ganhava maciço apoio da população e afrontava o establishment político, que rapidamente se mobilizou para não cair (a cena mais célebre de toda Jornada é a do Itamaraty em chamas, revelando potencial revolucionário extraordinário). Enquanto manteve-se inominável, o protesto triunfava. Mas setores da mídia logo começaram a selecionar episódios e discursos que envolveram a manifestação e os inscreveram ideologicamente, submetendo a Jornada à banalidade, reduzindo-a a violência de Black Blocks, diminuindo a participação popular, tratando-a como um sintoma de outro sofrimento (a angústia dos jovens ou o aumento da passagem de ônibus) e os próprios participantes, ao tentarem atribuir uma lógica organizada à manifestação, descrevendo-a como consequência de uma específica orientação político-filosófica, criaram uma narrativa para a Jornada perfeitamente inscrita na gramática ideológica que ela inicialmente desmascarou. A falência do movimento foi não ter sido radical o suficiente, foi permitir que fosse nomeado, compreendido, porque para o que é identificável, conhecido, nomeável, existe uma resposta, existe um método corretivo pré-concebido e consensual (se a sociedade concorda com uma definição estabelecida, há de concordar com o tratamento dessa coisa definida, justamente porque o diagnóstico, a nomeação, está supostamente correta). O ato de político verdadeiramente transformador deve ser incompreendido pela ordem que ele busca derrubar. É o ato que promove o que Alain Badiou chama de Evento, um ato que transforma as noções impostas pelo Estado, particularmente a noção de possível e impossível mas, e esse é o ponto fundamental, o ato não deve realizar esse impossível, deve apenas permitir que ele possa ser pensado, de modo a remodelar as fronteiras da política, expandindo-a imensuravelmente.
Exemplos não faltam para mostrar que a esquerda hoje (se é que pode ser chamada de esquerda), está longe de pensar algo dessa natureza, já que está tomada pela onda do politicamente correto e, mesmo a esquerda que não se identifica com essas políticas, está convencida de que seu papel deve ser o de conciliar, de ceder algo aqui e ali para, no final, atingir o “máximo que o sistema permite”. A falha nesse pensamento é que ele já está restringido e limitado, submetido à lógica do sistema (como coloca Badiou: “o maior erro que cometemos hoje é pensar que a democracia pode ser salva com mais democracia”, isto é, com mais democracia do modo com ela é apresentada a nós hoje). A orientação, o eixo de articulação da esquerda, precisa ser radical. Teoria não falta para isso. Usando Benjamin, Zizek e Badiou por exemplo, é possível criar uma base intelectual para um movimento mundial da esquerda e, no Brasil, a principal referência é Vladimir Safatle que, embora manifeste hoje uma visão de curto prazo (talvez a melhor visão de curto prazo, mas ainda assim), tem uma visão parecida, pensando, similarmente a Zizek, uma violência “criativa”.
A esquerda precisa disso, precisa ser radical se quiser ser transformativa, precisa mudar a sua atual fundamentação teórica para poder ser, de fato e finalmente, inominável.
[1] Christian Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (2015) (São Paulo, Boitempo Editorial), p.263
[2] Idem
[3] Idem, p.265
[4] Isso é demonstrado de modo magistral no filme Código Desconhecido (Code inconnu: Récit incomplet de divers voyages ), de Michael Haneke, que abre com um grupo de crianças surdas-mudas jogando mímica (obviamente, uma situação de dificílima compreensão, pois depende tanto de lógicas de movimentos inerentes à criança fazendo a mímica quanto das limitações da linguagem de sinais. Basicamente, é o cúmulo da incompreensão) e em seguida mostra diversos conflitos na vida cotidiana de personagens comuns, todos gerados por entraves comunicativos, por incompreensão e dificuldades de enunciação. Na melhor cena do filme, um jovem desrespeita uma burguesa em um ônibus, clamando para que ela o reconheça, para que o note e ela, com medo, faz justamente o oposto, ignorando o menino, que vai ficando mais e mais violento.
[5] Uma explicação mais detalhada pode ser encontrada aqui: https://18.118.106.12/2017/08/09/um-manifesto-a-favor-da-violencia/
2 comentários em “O dever de ser inominável”
discordo q essa foi a falha do movimento de 2013, acho q o movimento foi muito produtivo, nao foi o suficiente, nao mesmo, mas mudou, deu-nos um passo, falta o restante, vi nas ruas muita gente que nunca tinha ido pra rua, muita gente que dizia que nao tinha causa pra lutar, entao essa gente se assustou e parou de ir, ok, mas foram, pela primeira vez e isso mudou suas vidas, formas de pensar, perspectivas, é como uma TAZ, ta ligado.
taz – zona autonoma temporaria do hakimbey e tal http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf