Por Ernest Mandel, artigo originalmente publicado pela revista Monthly Review, v. 31, n. 3, jul.-ago. de 1979, traduzido Morgana Romão.
I
Paul Sweezy finalmente começou a discutir a tradição marxista – que, ele reconhece, é amplamente representada pelo trotskismo – no que diz respeito à Revolução Russa e seu destino subsequente. É verdade, ele ainda rejeita essa interpretação. No entanto, Sweezy está pelo menos disposto a discutir isso, e seus primeiros comentários feitos na Monthly Review (out. de 1978) são de natureza provisória. Ao responder a eles e aos principais desafios que levantam, nós esperamos ser capazes de contribuir para um debate construtivo – tanto com Paul Sweezy, quanto com os editores da Monthly Review e os leitores dessa revista – sobre o que continua a ser a questão-chave para o futuro do movimento internacional dos trabalhadores.
Sweezy nos leva a repetir – após quarenta anos da análise de Trotski de 1939 – as teses segundo as quais o destino da União Soviética e, portanto, a questão da natureza da burocracia, ainda não foram resolvidas. A análise de Trotski, Sweezy argumenta, fez sentido porque ele colocou essa questão em uma perspectiva de curto prazo. Mandel, prossegue Sweezy, apenas repete Trotski sem perceber que a própria escala de tempo em que ele está falando prejudica a credibilidade da teoria.
O que Sweezy parece perder de vista é que o que estava envolvido nas questões colocadas por Trotski não era um problema de escala temporal, mas as tendências básicas de desenvolvimento do mundo contemporâneo. Isso fica claro, se nós reproduzirmos novamente as duas passagens do artigo de Trotski A URSS na Guerra, citado por Sweezy:
“Se, não obstante, se concede que a guerra atual provocará não uma revolução, mas um declínio do proletariado, então permanece outra alternativa: o aprofundamento da decadência do capitalismo monopolista, a sua fusão posterior com o Estado e a substituição da democracia, onde quer que ela ainda permaneça, por um regime totalitário. A inabilidade do proletariado em tomar em suas mãos a liderança da sociedade poderia realmente levar, nessas condições, ao desenvolvimento de uma nova classe exploradora a partir da burocracia fascista bonapartista.”
E, novamente:
“Se, ao contrário de todas as probabilidades, a Revolução de Outubro falhar no curso da presente guerra, ou imediatamente depois dela, em encontrar a sua continuação em qualquer um dos países avançados; e se o proletariado for jogado para trás em todos os lugares e em todas as frentes, então nós deveremos, sem dúvida, rever as nossas concepções sobre a presente época e suas forças motrizes. Nesse caso, não seria uma questão de colar uma etiqueta na URSS ou na gangue estalinista, mas de reavaliar a perspectiva histórica do mundo para as próximas décadas, senão séculos: nós entramos na época da revolução social e da sociedade socialista, ou, pelo contrário, na época da sociedade em declínio da burocracia totalitária?”
Agora, ressalta Sweezy, não houve nenhuma nova vitória da revolução proletária em um país avançado, seja no decorrer da Segunda Guerra, ou imediatamente depois. Isso é, sem dúvida, verdade. Mas Sweezy se esquece da segunda questão levantada por Trotski: Houve um “declínio do proletariado”? Em números? Em habilidade? Em níveis de organização ou de combatividade? Como lançar mão de tal argumento depois do Maio de 1968, que se deparou com três vezes mais grevistas ocupando fábricas na França do que no nível recorde anterior, de junho de 1936? Após o outono de 1969, na Itália, que viu um número oito vezes maior de trabalhadores ocupando fábricas do que na famosa onda de greves de novembro de 1920? Depois dos primeiros seis meses de 1976, na Espanha, com três vezes mais grevistas do que o auge da revolução de 1936? Além disso, as lutas da classe trabalhadora na Grã-Bretanha, no Japão, nos países europeus menores, em Portugal e em outros lugares, ultrapassaram, na última década, os seus níveis mais altos em comparação ao pré-guerra.
Foi o proletariado “jogado para trás em todos os lugares e em todas as frentes”? Foi a democracia (burguesa), onde quer que ela ainda tenha permanecido em 1939-40, substituída por um regime totalitário? Novamente, é óbvio que não. Não é, portanto, por hábito ou por um exagerado respeito pelo “mestre” que nós ainda seguimos os termos da análise de Trotsky de 1939. Nós chegamos a essa conclusão porque nos baseamos em uma análise sóbria do que aconteceu nos últimos quarenta anos.
De fato, a questão da tendência secular é e continua a ser aquela colocada por Trotski em sua tese de 1939. No entanto, a escala temporal estava obviamente errada. E, por causa disso, uma variante “intermediária” foi deixada de fora, o que explica precisamente por que a questão ainda não foi decida pela história. Houve a expansão da revolução mundial durante e após a Segunda Guerra Mundial. Houve um aumento e não um declínio da luta de classes. Entretanto, devido aos efeitos de vinte anos de derrotas da revolução sobre a consciência média da classe trabalhadora, essa expansão foi apenas parcial, e por conta disso pôde ser canalizada por forças políticas das, ou originadas nas, burocracias do movimento tradicional dos trabalhadores (Partido Trabalhista Inglês, Partidos Comunistas francês, italiano, grego, titoísmo, maoísmo, etc.).
Em alguns países semicoloniais, isso não impediu novas revoluções socialistas vitoriosas, mesmo que fossem burocraticamente deformadas desde o começo (Iugoslava, China, Vietnã). Nos países imperialistas, por outro lado, onde a burguesia é muito mais poderosa, e, portanto, um nível muito maior de consciência e liderança do proletariado é necessário para uma vitória revolucionária, isso levou à castração do potencial anticapitalista das lutas das massas, mas não sem que a classe trabalhadora tenha adquirido novas e importantes reformas dentro da sociedade burguesa e impedido a burguesia de recorrer às ditaduras abertas.
Por razões que não serão tratadas aqui, um novo período de acelerado crescimento econômico se seguiu nos países imperialistas, conduzindo a um novo crescimento do proletariado. Esse processo, por sua vez, estabeleceu as bases para um novo potencial revolucionário no Ocidente – cuja primeira expressão foi o estrondo do Maio de 1968. Em outras palavras, não houve um “recuo do proletariado de todas as frentes”, mas um aumento, que, embora insuficiente para derrubar o capitalismo, foi capaz de prevenir o desmoronamento na “sociedade em declínio da burocracia totalitária.”. No entanto, após a “longa onda de expansão” do capitalismo do pós-guerra, a virada do final dos anos 1960 inaugurou implacavelmente um novo período de uma profunda e prolongada crise que reafirma o problema nos termos de Trotski.
Acrescentemos que o artigo de 1939 de Trotski era somente um primeiro esboço da perspectiva histórica em relação à Segunda Guerra Mundial. Em um documento mais programático – seu verdadeiro testamento político –, o Manifesto da Conferência de Emergência da Quarta Internacional (maio de 1940), Trotski coloca o problema da escala de tempo de forma muito mais realista:
“A revolução não será traída desta vez também, na medida em que há duas Internacionais a serviço do imperialismo, enquanto os genuínos elementos revolucionários constituem uma pequena minoria? (…) Para responder esta questão corretamente, é necessário posicioná-la corretamente. Naturalmente, esta ou aquela revolta pode terminar e certamente acabará derrotada devido à imaturidade da liderança revolucionária. Mas a questão não é sobre uma única revolta, mas de toda uma época revolucionária.
“É necessário se preparar para longos anos, senão décadas, de guerra, revoltas, breves intervalos de trégua, novas guerras e novas revoltas. Um jovem partido revolucionário deve se basear nesta perspectiva. A história fornecerá oportunidades e possibilidades suficientes para se testar, acumular experiência e amadurecer.”
Nesse sentido, a questão da escala de tempo do pós-guerra, que Sweezy opõe à análise de Trotski, é justamente a mesma em que este revela uma formulação mais programática e menos propagandista acerca dessa questão. Mas, pode-se perguntar: o que tudo isso tem a ver com a natureza de classe as burocracia soviética? Ao responder a essa questão, estamos no coração histórico do “trotskismo”, isto é, do marxismo revolucionário contemporâneo. O trotskismo sustenta que os trabalhadores e os camponeses pobres devem tomar o poder sempre que surgir a oportunidade. Na época do imperialismo, ela pode se apresentar em um país menos desenvolvido antes de ocorrer nos mais avançados. Mas a tomada do poder (e a supressão da propriedade privada dos meios de produção) é uma pré-condição necessária, mas por si só insuficiente, para a construção do socialismo. Esse processo só pode ser realizado de forma bem-sucedida em uma escala internacional. (Ele deve, é claro, ser iniciado onde quer que o poder seja tomado das mãos dos capitalistas).
O estalinismo, que representa a vitória da burocracia na União Soviética, é resultado de derrotas parciais da revolução mundial. Esta não se espalhou para os países avançados, mas tampouco foi derrotada até o ponto em que o capitalismo pudesse ser restaurado na União Soviética (os imperialistas tentaram muito atingir esse ponto, em 1918-21, em 1941-44, e novamente, embora menos diretamente, em 1948-51). O destino final da URSS depende do resultado da luta mundial entre capital e trabalho. Se o proletariado mundial for decisivamente derrotado, então a burocracia se tornará uma classe dominante (se será uma nova classe ou uma capitalista, é outra questão). Se, por outro lado, a revolução socialista triunfar no Ocidente ou a revolução política triunfar na Europa Oriental, então não demorará muito para que o proletariado soviético derrube o governo burocrático na URSS antes que a burocracia tenha tido a chance de se tornar uma classe dominante.
Nós enfatizamos: “ou a revolução política triunfar na Europa Oriental”. Pois o outro argumento de Sweezy, de que a classe trabalhadora dos países estalinistas aceita o regime, embora a contragosto, é contrariado pelos acontecimentos espetaculares aos quais ele não se refere: o levante dos trabalhadores na República Democrática Alemã de 1953, a Revolução Húngara de 1956, a Primavera de Praga de 1968, e as repetidas rebeliões em massa dos trabalhadores poloneses. Não é verdade que a ideia “abstrata” da revolução política, apresentada por Trotski e a Quarta Internacional há cerca de 45 anos, recebeu um verdadeiro conteúdo “concreto” por esses eventos históricos?
II
A hipótese de que a burocracia soviética é uma nova classe dominante não corresponde a uma análise séria do real desenvolvimento e das reais contradições da sociedade e da economia soviética nos últimos cinquenta anos. Tal hipótese deve implicar, do ponto de vista do materialismo histórico, que um novo modo de produção explorador surgiu nesse país. Se assim fosse, seríamos confrontados, pela primeira vez na história, com uma “classe dominante” cujo comportamento geral e interesses privados (que, obviamente, determinam esse comportamento) são contrários às necessidades e à lógica interna do sistema socioeconômico existente. Realmente, uma das principais características do sistema econômico soviético é a impossibilidade de conciliar as necessidades de planejamento, de otimização do crescimento econômico (não de um ponto de vista “absoluto”, mas dentro de uma lógica do próprio sistema) com o interesse material próprio da burocracia.
Todas as sucessivas reformas econômicas introduzidas na URSS sob a burocracia – desde a reintrodução nas empresas da contabilidade de custos (khozrazhot), sob Stálin, ao sovnarkhoz [conselho de economia regional] experimental de Khrushchev, ao projeto de uso de lucros como indicador do desempenho econômico geral, de Liberman, até a introdução dos “indicadores mistos” para medir esse desempenho, de Kosygin – foram projetadas para superar essa contradição, mas não obtiveram sucesso duradouro. Pode-se facilmente explicar esse aparente paradoxo enfatizando a natureza parasitária da burocracia, que age de forma contrária à lógica do sistema. Pode-se também acrescentar que o planejamento social pode funcionar sem problemas somente sob a gestão de produtores associados, interessados materialmente no “dividendo social” e não na separação dos ganhos distintos, que colocam fábricas contra fábricas, cidade contra cidade, ramo contra ramo e região contra região. No entanto, tudo isso implica precisamente que a burocracia – que procura tais ganhos particulares – não é uma nova classe dominante, gerindo um novo modo de produção capaz de auto reprodução, mas um câncer em uma sociedade de transição entre capitalismo e socialismo. A direção burocrática não somente é um desperdício cada vez maior, como ela também impede que o sistema de economia planejada, com base em propriedades socializadas, funcione efetivamente. Esse fato inegável é, por si só, incompatível com a caracterização da burocracia como uma classe dominante e da URSS como um novo “modo de produção exploratório”, cujas “leis de movimento” nunca foram especificadas.
Em segundo lugar, estaríamos diante, também pela primeira vez na história, de uma classe dominante sem capacidade de se perpetuar através da operação do funcionamento do próprio sistema socioeconômico. Não há garantia para um burocrata de que ele ou ela continuará sendo um burocrata. Nós concordamos que a mobilidade vertical na sociedade soviética – uma das muitas válvulas de segurança social sob Stálin – diminuiu significativamente durante as últimas décadas. A “gerontocracia” do Presidium é um emblema do que está acontecendo em toda a sociedade soviética. A “segurança de posse do cargo” dos burocratas aumentou, sem dúvida. Mas isso só leva a aumentar a tensão social (por exemplo, pressão para o acesso ao ensino superior), e não a uma real solução para o problema da inabilidade dos burocratas de garantir a permanência de sua posição de poder e privilégio. Além disso, essas posições continuam essencialmente amarradas a funções particulares e dependem de decisões políticas (a famosa nomenklatura, por exemplo) e não a um papel específico no processo de produção social. Daí a pressão dos burocratas em obter laços permanentes com fábricas específicas, empresas, trustes (ou seja, para restaurar, no sentido econômico do termo, a propriedade privada, antes de restaurá-la no sentido jurídico). Daí a consistente pressão das largas camadas da burocracia para obter um posto qualitativo mais elevado de autonomia no nível da fábrica ou da filial (ou seja, para escapar da estrutura de ferro de um plano centralizado). Daí a tendência em direção à acumulação privada de capital através de subornos, corrupção, operações em mercado negro e “cinza”, acúmulo de moeda estrangeira e de ouro, etc. Daí também a tendência em direção a uma crescente “simbiose” com seus suas contrapartes no Ocidente, incluindo o estabelecimento de contas bancárias em bancos ocidentais (especialmente visível nas “Democracias Populares”).
Tudo isso aponta em direção à potencial emergência de uma “nova classe dominante” – não uma “nova”, mas a boa e velha classe capitalista, baseada na propriedade privada. No entanto, antes que este processo possa se concretizar, dois obstáculos formidáveis devem ser superados: a resistência da classe trabalhadora, que tenderia a perder, no decorrer de tal restauração, aquilo que mais valoriza na atual configuração (na verdade, provavelmente a única coisa que valoriza): a garantia de segurança no emprego. Ou seja, o direito ao trabalho, o pleno emprego e, decorrente disso, um ritmo de trabalho muito menos febril do que no Ocidente; e a resistência de setores-chave do aparato do Estado (observe a maneira como Tito reprimiu os “bilionários” iugoslavos no início dos anos setenta, quando o perigo de “restauração” se tornou real). Portanto, dizer que uma nova classe dominante existe e governa é interpretar mal as verdadeiras lutas sociais que ocorrem nesses países. Pensar assim é assumir como já decidida no passado uma luta cujo resultado ainda está em aberto.
Em terceiro lugar, seríamos confrontados, também pela primeira vez na história, com um representante da “classe dominante” de um “modo de produção” cujo “derrube” deixaria intacta a estrutura econômica básica. Em uma passagem bem conhecida do terceiro volume de O Capital, Marx escreve que cada modo de produção é caracterizado por uma forma específica de apropriação do excedente social. Agora, na URSS, o excedente é apropriado de forma dupla: na forma de valores de uso, na medida em que é composto, em grande parte, por equipamentos e matérias-primas adicionais; e sob a forma de mercadorias, na medida em que é composto, em menor parte, de bens de luxo (e de serviços especiais), comprados pela burocracia com sua renda privilegiada. Entretanto, após a derrubada da ditadura burocrática, essa forma dupla de apropriação do excedente social não mudaria, porque os trabalhadores soviéticos certamente não transformariam os meios de produção em mercadorias (o que significaria restaurar o capitalismo!); mas eles também seriam incapazes de suprimir rapidamente o aspecto da mercadoria da natureza dos bens de consumo (uma nova revolução na URSS não permitiria a construção do socialismo em um país). Do mesmo modo, nem a supressão da propriedade privada dos meios de produção, nem o planejamento centralizado, nem o monopólio estatal do comércio exterior seriam alterados por tal revolução (que preferimos chamar de política). Se alguém reunir todos esses fatores, obviamente obterá uma estrutura econômica que permanece basicamente inalterada.
É verdade, haverá uma mudança radical no modus operandi do sistema. A massa de produtores terá a palavra decisiva sobre o que é produzido e como deve ser produzido. A desigualdade social será radicalmente reduzida. O enorme desperdício causado pela má gestão burocrática cessará. Haverá uma reformulação radical na organização do trabalho e em sua estrutura hierárquica. Mas a estrutura acima esboçada – a forma específica de apropriação do excedente social – permanecerá basicamente a mesma.
Em quarto lugar, a hipótese de que a burocracia seja uma nova classe dominante leva à conclusão de que, pela primeira vez na história, somos confrontados com uma “classe dominante” que não existe como uma classe antes que ela realmente governe. De onde isso vem? Sweezy responde: “A nova classe exploradora se desenvolve a partir das condições criadas pela própria revolução”. Isso realmente gera uma dúvida. As classes sociais são grupos de seres humanos envolvidos em relações específicas que emanam do processo de produção (“relações de produção”). As transformações sociais podem mudá-las, mas não podem criá-las a partir do nada (ex nihilo). Na realidade, só faz sentido uma teoria consistente de uma “nova classe exploradora” na União Soviética, se assumirmos que os setores da classe trabalhadora (a aristocracia e a burocracia proletárias) e da intelligentsia (a pequena burguesia e os funcionários de alto escalão do Estado) foram potencialmente uma nova classe dominante mesmo antes de “assumirem o poder”, ou seja, antes da “revolução”. [1] Há, todavia, consequências formidáveis envolvendo praticamente todos os aspectos da luta de classes contemporânea em todo o mundo, além de uma revisão de todos os elementos constituintes da teoria marxista, da qual decorre tal pressuposto. Sem essa suposição, a noção de uma “nova classe dominante”, surgida “fora do processo histórico”, torna-se totalmente absurda. Afinal, a burocracia tomou o poder; como pode uma camada social “inexistente” assumir o poder?
III
A ideia de que a burocracia soviética (assim como a burocracia sindical no Ocidente) não cortou seu cordão umbilical com a classe trabalhadora, e que seus interesses específicos e decisões políticas podem ser vistos no âmbito dessa relação parasitária especial com o proletariado, leva à conclusão de que a luta de classes nos países capitalistas continua a ser um processo bipolar: capital versus trabalho (com a burocracia operando essencialmente como “lugar-tenente do capital entre os trabalhadores”).
A ideia de que a burocracia soviética é uma nova classe dominante e a conclusão inevitável de que os partidos comunistas que não estão no poder podem ser vistos – ao menos no que diz respeito aos seus aparatos centrais – como núcleos de uma nova classe exploradora em potencial, implica a necessidade de uma revisão completa da maneira de olhar para toda a história do século vinte. A luta de classes agora se torna uma disputa tripolar: “capital versus trabalho versus nova classe exploradora em potencial”.
Esta não é simplesmente uma questão de modificar a análise histórica (que, por si só, já seria de arrepiar os cabelos e, pelas evidências, uma tarefa impossível). Tal ideia tem implicações políticas da maior e mais grave magnitude. Somos então deixados apenas com a escolha entre dois males, que levam a conclusões que poderiam levar defensores consistentes da teoria de uma “nova classe exploradora” a se posicionarem contra a luta da classe trabalhadora internacional pela emancipação. Existem, de fato, somente duas maneiras possíveis de se ver a alegada nova “classe exploradora”. Ou ela é global e essencialmente progressista em relação à classe capitalista, isto é, está na mesma relação com a burguesia como esta estava com a aristocracia semifeudal antes e durante as revoluções burguesas. Tal hipótese seria perfeitamente consistente com uma aguda crítica do seu caráter explorador. No entanto, isso significaria que em todos os conflitos diretos entre a burguesia e a “nova classe em potencial”, seria preciso dar à “nova classe” o mesmo tipo de “apoio crítico” que o Manifesto Comunista prevê para a burguesia revolucionária. E seria necessário então restringir – pelo menos parcialmente, senão completamente – as lutas antiburocráticas da classe trabalhadora, a fim de não prejudicar a vitória da burocracia “progressista” sobre a burguesia reacionária.
A própria ideia de uma revolução socialista e uma conquista do poder pela classe trabalhadora se tornaria pelo menos questionável. É reconhecido: pode-se dizer que o capitalismo decadente poderia levar ao socialismo ou ao estabelecimento de um novo sistema de classes, progressista, se comparado ao capitalismo. Nesse caso, porém, todas as revoluções vitoriosas que ocorreram até o presente momento teriam de ser recaracterizadas como “revoluções burocráticas”, e não proletárias. Nesse sentido, se tornaria bastante plausível, para dizer o mínimo, que a ideia de uma transição direta do capitalismo para o socialismo seria um erro conceitual utópico de Marx e dos marxistas.
Se a “nova classe dominante” é progressista em relação ao capitalismo, isso implicaria que a sociedade de classes, ao contrário do que Marx pensava, não esgotou seu potencial progressista com a ascensão do capitalismo; que esse desenvolvimento novo e importante das forças produtivas – que a longo prazo conduziu a um desenvolvimento mais amplo do “indivíduo social”, ou seja, da liberdade humana – ainda era possível sem a abolição da sociedade de classes. O socialismo se tornaria uma mera preferência moral, e não uma necessidade histórica para evitar a barbárie e o declínio da civilização humana.
Assim, apesar de condenar a burocracia como novos exploradores, sanguessugas, inimigos mortais da classe trabalhadora e da liberdade humana, etc., etc., – e, sem dúvida, noventa e nove por cento da real motivação de qualquer autoproclamado marxista que chame a burocracia de uma nova classe dominante decorre dessas compreensíveis indignações morais, em vez de uma calma análise científica – se acabaria, paradoxalmente, por justificar historicamente essa mesma burocracia, ou até se tornar um apologista direto de todos os seus crimes.
Isso não é acidental. Dentro do quadro conceitual do marxismo clássico, as classes – incluindo as classes dominantes – são, pelo menos em algum momento de sua existência, historicamente inevitáveis, isto é, instrumentos necessários de organização social. Se a burocracia soviética é uma nova classe dominante e progressista em comparação à burguesia, a conclusão é incontestável: a burocracia desempenhou, pelo menos temporariamente, um papel necessário e progressista na sociedade soviética. Então, depois de um longo desvio, se acabaria de volta ao começo. É certo: o Gulag não é tão bom, o código trabalhista mais severo do mundo era bastante desagradável, mas realmente havia alguma escolha? Afinal, a Rússia teve de ser industrializada e modernizada, e não se pode fazer uma omelete sem quebrar ovos, somente se poderia superar o atraso por meios bárbaros. Ontem, “nós” chamávamos isso de construção do socialismo “por meios bárbaros”. Hoje, “nós” chamamos de construir uma nova sociedade de classe mais avançada do que o capitalismo “por meios bárbaros”. Hoje, entretanto, assim como ontem, “nós” temos que “objetivamente” aprovar a burocracia – não obstante todos os seus crimes despóticos – como “historicamente necessária”. E assim por diante, ad nauseam.
Essa armadilha é facilmente evitada pela interpretação marxista, ou seja, trotskista, da história soviética e do papel da burocracia. Tudo o que é progressista sobre o desenvolvimento da Rússia, China, etc., é produto de uma revolução socialista. Tudo o que é reacionário é produto do domínio da burocracia. Não há interseção lógica, mas uma contradição flagrante entre ambos. Isso implica que a burocracia não é uma classe, mas um câncer parasitário no corpo do proletariado: a sociedade soviética não é um novo modo despótico de produção, mas uma sociedade em transição entre capitalismo e socialismo, presa em seu desenvolvimento progressista – atolada, congelada – por uma ditadura burocrática, que deve ser derrubada para reabrir o caminho para o socialismo.
No entanto, se a suposição de que a burocracia, como uma nova classe dominante exploradora, é progressista em comparação com a burguesia leva a conclusões graves, a suposição de que ela é reacionária em relação aos capitalistas tem implicações dez vezes piores. Isso significaria que, em um conflito entre a “nova classe”, ou a “nova classe” em potencial, e a burguesia, seria necessário dar um apoio crítico a esta última contra a primeira.
IV
Se a sociedade burguesa não liderou e não conduziu – pelo menos no futuro previsível – a revoluções proletárias, mas “burocráticas”, e se em uma dúzia de países não há um Estado operário (seja ele fortemente burocratizado), mas uma nova sociedade de classe despótica que substituiu o capitalismo, conclui-se que havia, obviamente, algo errado com as projeções e perspectivas históricas de Marx e dos marxistas clássicos. Além disso, havia também, obviamente, algo de básico errado com a sua análise social, econômica e política da sociedade burguesa em si, da natureza de suas contradições internas e, especialmente, da natureza do proletariado moderno.
O conceito de socialismo de Marx – que foi compartilhado por quase todos os socialistas até o final da década de 1920 – era o de uma sociedade livre de produtores associados, desenvolvida a partir das características econômicas, sociais, políticas, culturais e mesmo psicológicas específicas da classe trabalhadora (a classe assalariada), esboçada no Manifesto Comunista e refinada nos escritos subsequentes de Marx e Engels sobre o assunto.
Se alguém acredita que o capitalismo poderia levar a uma nova sociedade de classes tanto como ao – ou, no lugar do – socialismo, que a classe trabalhadora poderia dar lugar a uma nova “classe dominante exploradora” ao invés de liderar o processo de emancipação humana em geral, então surge a questão: essa análise do potencial revolucionário e libertador da classe trabalhadora moderna não estava completamente errada desde o início? Não foram poucos os teóricos que se lançaram nessa direção, sendo o último capítulo de Capital Monopolista, de Baran e Sweezy, um dos primeiros e mais notáveis esforços nesse caminho. Recentemente, o comunista oposicionista da Alemanha Oriental, Rudolf Bahro, manchou o seu livro A Alternativa – no geral um livro impressionante, de longe a crítica marxista mais completa que saiu de um país dominado pela burocracia estalinista desde A Revolução Traída, de Trotski – por um julgamento ainda mais franco e sintético deste tipo: “O proletariado luta espontaneamente apenas para adotar o modo de vida da burguesia, pelo menos da pequena burguesia, que é mais próxima dele”. É claro que Herbert Marcuse, como se poderia esperar, expressou entusiasmado acordo com esse julgamento.
Não vamos nos debruçar sobre a questão de saber se tal rejeição da análise marxista clássica da classe trabalhadora – a ocidental assim como a soviética – implica ou não que o socialismo e uma sociedade sem classes se tornaram impossíveis. As várias tentativas de encontrar um “sujeito revolucionário” substituto do proletariado moderno – camponeses do Terceiro Mundo, estudantes revolucionários, a intelligentsia, ou mesmo pobres marginalizados – não levam em consideração o que foi o principal avanço alcançado por Marx para o movimento socialista: que a natureza da sociedade a ser criada está pelo menos correlacionada com a natureza social, o poder econômico, o potencial sociopolítico e os interesses materiais do “sujeito revolucionário”, e não ao grau de indignação moral e rebelião individual contra a ordem existente desse ou aquele grupo de pessoas. Não se pode demonstrar como nenhum dos estratos sociais acima mencionados poderia desenvolver quaisquer condições materiais e sociais necessárias para criar uma sociedade verdadeiramente sem classes em um grau mais elevado do que a classe trabalhadora moderna. É verdade, no entanto, que 150 anos de luta de classes do proletariado moderno (deixando de lado as revoltas de fome dos estágios iniciais, que Bahro exclui corretamente de sua análise e caracterização) podem ser subsumidos na fórmula de “espontaneamente… apenas para adotar o modo burguês – ou pequeno burguês – de vida”?
O quão cego é necessário ser à rica, variada e apaixonada história das lutas da classe trabalhadora, na qual capítulos de “conformismo” monótono se colocam lado a lado com capítulos de capacidade de tirar o fôlego de imaginação, de inovação, de heroísmo inigualável, para se fazer tal generalização tão injustificada! Estavam os trabalhadores da Comuna de Paris, os trabalhadores revolucionários da Rússia em 1917-21, da Alemanha em 1918-23, da Espanha em 1936-37, da Iugoslávia em 1941-1945, da Hungria em outubro-novembro de 1956, de Cuba em 1959-65, da França em maio de 1968, de Praga em 1968-1969, da Itália no outono de 1969, de Portugal em 1975, do Irã em 1979, apenas “tendendo espontaneamente adotar o estilo de vida da burguesia”? E, novamente: estavam os trabalhadores da Espanha em 1975-76 – onde nós testemunhamos, pela primeira vez na história, diante de um intacto aparelho repressivo fascista, várias greves gerais regionais de caráter político em prol daquela típica “demanda de estilo de vida burguês”, a defesa e a libertação de prisioneiros políticos – se comportando de acordo com os preceitos de Bahro? E estes são apenas os exemplos mais destacados que vêm à mente. Podem-se acrescentar dezenas de outros exemplos a esta lista – alguns poucos da história da classe trabalhadora americana também.
Diante dessa imagem real da luta da classe trabalhadora ao longo do último século ou mais, diante da evidência histórica esmagadora, a pergunta “por que não houve uma revolução socialista vitoriosa no Ocidente?” deve ser reformulada em sua maneira historicamente correta, assim: “por que ainda não houve tal vitória, apesar das tentativas espontâneas e periódicas do proletariado de reconstruir a sociedade ao longo de linhas socialistas – tentativas que, obviamente, confirmam a possibilidade de tal vitória?”. Dessa forma, a resposta deve ser procurada em termos da dificuldade de empreendimento, do papel do fator subjetivo, da necessidade de uma liderança revolucionária, do desenvolvimento desigual da consciência da classe proletária, do papel de freio deliberado, primeiramente desempenhado pela social-democracia (Alemanha 1918-19), e, posteriormente, pelos partidos estalinistas (Espanha 1936-37). Ou seja, a verdadeira dialética histórica das pré-condições objetivas e subjetivas para o socialismo mundial, que só podem surgir como um empreendimento consciente e por uma sociedade objetiva e materialmente capaz de realizá-las. Não há força desse tipo na sociedade burguesa que não seja o proletariado moderno.
Os marxistas não são pessoas religiosas. Nossa convicção sobre o potencial revolucionário do proletariado baseia-se em análises científicas e verificação cuidadosa do registro histórico – não em uma fé irracional ou silogismos escolásticos. Se a esmagadora evidência histórica demonstrasse que os pressupostos de Marx provaram-se errados, então não haveria escolha senão declarar a verdade – no verdadeiro espírito do próprio Marx, que, não apenas como um gracejo, afirmou que seu lema favorito era omnibus dubitandum [deve-se duvidar de todas as coisas].
No entanto, nós argumentamos que as evidências fornecidas pela história não justificam qualquer generalização tão precipitada. É o capitalismo ocidental e a ditadura da burocracia que estão hoje em profunda e insolúvel crise social, e não o marxismo. Se alguém quiser evitar recuar em uma simples racionalização ou decepção própria com a relativa lentidão do processo histórico, da revolta contra os políticos enganadores, da fadiga e da desmoralização, então se deve manter uma sensação de proporção e dizer: vamos esperar e ver como os trabalhadores vão lutar nas próximas décadas, nem meio século. E não aguardemos passivamente, mas façamos o que pudermos para garantir que essas lutas dos trabalhadores terminem na revolução socialista vitoriosa, antes de desenhar balanços prematuros e antes da barbárie assumir.
Estamos de volta ao ponto em que começamos, mas com uma vingança. Sim, a questão de saber se a burocracia soviética é uma nova classe dominante está diretamente ligada à questão do futuro da revolução mundial e, portanto, do futuro da humanidade, além de estar também diretamente relacionada à questão do potencial socialista revolucionário da classe trabalhadora e à própria possibilidade do socialismo, isto é, ao socialismo científico como tal. Essas questões estão no centro da análise de Marx e do “sistema marxista”. E não há evidências de que esse sistema já não seja tão sólido e firmemente baseado como sempre foi.
Notas de rodapé:
[1] A tomada do poder pela burocracia não “se desenvolve a partir das condições criadas pela própria revolução” – declaração que evita tomar posição sobre as lutas políticas concretas que ocorreram durante os anos vinte na URSS! Desenvolve-se a partir de uma contrarrevolução política vitoriosa (uma “contrarrevolução dentro da revolução”, se se desejar, o precedente clássico é o Termidor durante a Revolução Francesa). À luz desse fato, Sweezy faz à Oposição de Esquerda uma séria injustiça ao não mencionar que ela começou, em 1923 – possivelmente alguns anos mais tarde –, uma luta consistente pela democracia soviética e pelo aumento dos direitos políticos para a classe trabalhadora.
* Agradeço a atenciosa revisão feita pelo meu companheiro, amigo e camarada Marcio Lauria Monteiro. [M.R.]