A lei moral entre o dever e o desejo

Por Daniel Alves Teixeira, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia

Algumas pesquisas em antropologia do direito, como as de Paul Bohannan e Max Gluckman, destacam em suas análises a presença de palavras ou expressões nas sociedades primitivas que convergiriam para aquilo que no mundo ocidental chamaríamos de “dívida”. “Hka” entre os barotse, ou “injô” na sociedade Tiv, a atenção atraída por tais expressões estaria no fato delas serem utilizadas em situações que afetam o status dos indivíduos da comunidade, estabelecendo relações obrigacionais normal nascidas em situações de conflitos e resolvida através de um conselho de juízes da tribo a que eram submetidos os casos.


“Já descrevi como os Barotse concebem todas as relações, quer as de status estabelecido, quer as resultantes de “contrato”, em termos de dívida (….)”[1]

Assim, diversos fatos da vida social das tribos, como as discussões sobre um penhor, a invasão de um terreno ou pequenos furtos, geravam situações sociais de “dívida”, em que uma parte, lesada, buscava ser ressarcida dos danos causado submetendo a questão ao julgamento dos sábios da tribo. Como destacam os autores, é importante ter em mente que aquilo que as tribos chamariam por expressões correspondentes à ocidental palavra “dívida” não estariam relacionadas a quebras de contrato. Estender a ideia de “contrato”, um conceito especificamente ocidental, às relações entre os membros das tribos primitivas, seria já analisá-las a partir de conceitos que não fazem parte daquela sociedade. Além disso, a ideia de “dívida” seria muito mais abrangente do que as obrigações derivadas de relações contratuais, pois “quase todo tipo de obrigação legal entre dois Kacchin pode ser descrito como uma dívida”[2].

De qualquer forma, o que nos interessa é mesmo a questão da dívida propriamente dita, pois através dela buscaremos demonstrar que o fato de algumas linhas de pesquisa da antropologia do direito terem focado nessa questão da dívida está diretamente ligado aos impasses da modernidade e do entendimento moderno e contemporâneo sobre o fenômeno do direito. Ou seja, o fato do foco ter se dado sobre a questão da “dívida” ocorreu principalmente pela tentativa de entender a relação do sujeito a lei, um problema candente da modernidade e seus processos de racionalização e secularização do direito.

Essa tentativa se mostra ainda mais interessante ante a certa recusa que existe no meio  antropológico a especulações ditas metafísicas. O caráter investigativo e empírico das pesquisas antropológicas deveriam ter por meta a análise de situações concretas e materiais, das experiências vividas pelos sujeito das sociedades analisadas e pelos próprios antropólogos em suas análises de campo. Não afastaremos a validade dessa premissa, assim como não é nossa intenção polemizar com ela. Podemos dizer que nossa pesquisa buscará antes, através da filosofia e da psicanálise, entender porque a noção de dívida possui um caráter tão central em algumas pesquisas, e o que isso diz sobre nossa (ou a Ocidental, no caso) forma pela qual vemos os acontecimentos que chamamos de jurídicos.

Como destacamos, em todos os casos reais citados por Gluckmann e Bohannan, podemos verificar o estabelecimento de relações de dívidas ou obrigações. Partindo dessa constatação, aparentemente nada de novo surgi, pois esta é mesmo uma espécie de “senso comum” sobre o direito. Dever algo a alguém, descumprir ou danificar algo de outrem, com a obrigação de reparação, este parece ser mesmo a base do sistema de direitos e deveres do direito moderno. Porém, isolemos, nestas análises, a simples situação de estar em dívida. Pensemos muito simplesmente naquele que, por alguma ação sua, violou a expectativa do outro, e se encontra assim com seus “status” afetado pela obrigação surgida. Em situações tribais como as analisadas, tal condição era resolvível através da reparação da dívida ou do dano, por vezes com a mediação de mestres da tribo, de sorte que após o pagamento da dívida o indivíduo afetado retornava ao seu status normal. Não se imaginava, a priori, que o indivíduo pudesse ficar nesta situação permanentemente, já que seu status estava diretamente ligado à situação conflituosa a que deu ensejo. Ou, se isso acontecesse, o indivíduo estaria definitivamente proscrito da sociedade, perdendo seu lugar nela, não sendo mais reconhecido como membro daquela comunidade.

Todavia, este é nosso ponto, o olhar ocidental, ao olhar para o indivíduo em dívida, já estava olhando para o sujeito moderno, e divisando ali algumas das questões fundamentais da modernidade, como a autonomia e responsabilidade individual. De forma mais clara, a modernidade pode ser também pensada como um movimento pelo qual a noção de dívida (ou dever) deixa de ser uma situação passageira e resolúvel, como era nas tribos antigas, para se tornar o próprio fundamento da subjetividade moderna. E isto pode ser mais bem demonstrado na obra de Kant e seu conceito de “imperativo categórico”.

O imperativo categórico de Kant e a forma dever.

Primeiramente, vejamos a distinção que Kant faz entre uma ação “legal” e uma “ação moral”. Enquanto aquela trata do simples fato de uma ação estar em conformidade com uma lei existente, esta diz respeito à vontade do indivíduo em agir em conformidade com a lei moral:

“A mera conformidade ou não conformidade de uma ação com a lei, independentemente do incentivo para isto, é chamado sua legalidade, mas essa conformidade na qual a Ideia do dever manifesto pela lei é também o incentivo da ação é chamado sua moralidade.”[3]

Então, por exemplo, uma pessoa que ande a 60 km/h em uma rodovia que permite velocidade máxima de 70 km/h enquanto pensa nas tarefas de seu dia ou no resultado do seu time de futebol, está praticando uma ação que é legal, mas não uma ação moral, pois, para que este seja o caso, sua intenção deveria ser expressamente a obediência à lei, ou seja, o cumprimento do dever legal de andar abaixo de 70 km/h teria de ser diretamente o objeto de sua vontade. Zupančič coloca então que Kant está tentando discernir o problema da forma dever, a própria “forma-dever” tem de se tornar o motor da ação do indíviduo:

“O ponto de Kant, eu repito, não é que todos os traços da materialidade têm de ser purgados do fundamento determinante da vontade moral mas, antes, que a forma da lei moral tem de ser tornar ela mesma “material”, para que ela possa funcionar como força motivadora da ação”.[4]

Dois pontos são importante aqui. Além da questão da forma-dever ser tornar a própria motivação da ação, a “purgação dos traços da materialidade” tem a ver com o que Kant chamava de “objetos patológicos” que poderiam igualmente servir de motivação para a ação individual. Kant estava preocupado em articular o problema da vontade moral em sua forma “purificada”, ou seja, de forma que objetos “patológicos” como o interesse ou ganho pessoal (ganho não só em sentidos de lucros, o prestígio pessoal ou o afeto de outrem poderiam também ser considerados objetos patológicos da vontade) não fossem os incentivadores da ação individual.

Agora podemos situar melhor nossa tese sobre a relação entre a modernidade e as pesquisas antropológicas de Gluckmann e Bohannan. O “dever” como eixo das relações obrigacionais salta qualitativamente de proporção na passagem para o mundo moderno, deixando de ser uma mera situação transitória e obrigacional para ter de se tornar a própria forma da motivação dos indivíduos.  Não por outra razão que Kelsen vai falar em dever-ser, dando ao “dever” uma forma “existencial”, digamos assim, que deveria fundamentar o ordenamento jurídico. Dever uma cabra, reparar um dano ou ser punido por uma infração de um dever tribal, estão situações cotidianas das tribos não tinham ainda por fundamento a questão da forma-dever como Kant a colocou. Pode-se argumentar que levar as categorias kantianas para análise de sociedades ditas primitivas seja uma anacronia ou um desvio do empirismo que deve pautar a investigação antropológica. Contudo, nosso passo aqui é mais para valer-se dos caminhos abertos pela antropologia jurídica para pensarmos os próprios impasses da modernidade. De fato, a antropologia, na sua forma moderna, surge mesmo e extrai a força de sua análise dessa estranha sobreposição entre “moderno e antigo”, “civilizado e primitivo”. É uma mirada no espelho que o Ocidente busca pela antropologia, um olhar para um passado-presente que permitiria vislumbrar o que seria nosso futuro.

Em suma, o dever ter deixado de ser um momento “contingente” da vida social para se tornar seu próprio motor[5] é algo de enormes consequências. Enquanto que em situações “normais” de débito eu sei ou posso vir a saber aquilo que devo (um pagamento, devolução de um produto igual, etc), a forma-dever como motivação das ações deixa o indivíduo exposto a um “Tu deves!” que nunca pode ser completamente traduzido em uma obrigação concreta:

“Segundo a crítica-padrão, a limitação da ética universalista kantiana do “imperativo categórico” (a injunção incondicional de cumprimento de nosso dever) reside em sua indeterminação formal: a Lei moral não me diz qual é o dever, apenas me diz que devo cumprir meu dever, e assim deixa espaço para o voluntarismo vazio (o que eu decidir que é meu dever é meu dever).”[6]

O problema da forma deve ocupar aqui uma posição central. É ele que põe em relação a subjetividade e a lei para, ultrapassando as figuras concretas da legislação. Para além do problema das normas concretas impostas pela lei (pagar tal imposto, cumprir suas obrigações contratuais, etc), aparece o problema da pura forma da lei, que não possui conteúdo e sentido precisos:

“Tendo em vista a tensão entre as leis transcendente e imanente e Homo Sacer, notamos a seguinte verdade que Sade traz a Kant: pura enunciação de uma lei que nada significa – pura forma de lei, a Lei transcendente – não é capaz de resistir à injunção perversa que torna indistintas vida e lei.”[7]

E, segundo Zupančič, é justamente essa “possibilidade de converter uma mera forma em um impulso materialmente eficaz”[8] que pauta a ética kantiana (e lacaniana). E nossa abordagem da antropologia jurídica visa também trazer à tona as razões que a fizeram focar na questão do dever através do que poderíamos chamar de materialidade do sujeito, em contraposição às afirmações de que o sujeito seria uma “abstração” da ciência ou filosofia moderna.

Alguns autores apontam que é esta indeterminação da lei moral que a aproxima perigosamente do conceito psicanalítico do superego, conceito criado por Freud para falar sobre as instâncias psíquicas de exigências morais e éticas. A impossibilidade de cumprir satisfatoriamente a demanda do Outro, de saber de uma vez por todas qual o seu dever com a sociedade, pode levar a pessoa a um vórtice de culpabilidade e auto-depreciação. De outro lado, é fácil também verificar o fundo teológico que compõe o problema. Somente nas sociedades judaico-cristã ocidentais a mitologia religiosa envolve diretamente questões de “pecado” e “redenção” que estão diretamente ligadas ao problema do dever. Se o Deus do primeiro testamento é o Deus do débito infinito, a passagem para o novo testamento ponta justamente para uma perspectiva de “pagamento do débito” através do sacrifício de Cristo. Não há dúvida alguma que a moralidade religiosa foi fundamental para a construção dos conceitos modernos de sujeito e lei, principalmente em sua versão protestante. A forma “vazia” do dever “puro” expõe o indivíduo a uma tarefa ética de purificação infinita da vontade que em muito se aproxima de algumas formas de ascese religiosa. Agir tendo como objeto da vontade a forma-dever, sem saber exatamente qual é este dever, qual a origem da lei, é uma característica marcante da subjetividade moderna.

A lei e o desejo

O caminho para aclararmos esta relação entre um dever incondicional e uma lei sem conteúdo está na relação que Lacan estabelece entre a lei e o desejo. Pois assim Lacan enuncia:

“O desejo, portanto, é a lei.”[9]

Para a psicanálise lacaniana, existe uma ligação direta entre o desejo e a lei, o que nos oferece uma porta para uma comparação entre a subjetividade psicanalítica e a jurídica. A estrutura do desejo, tal como delineada pela clínica lacaniana, se aproxima do problema do fundamento da lei e, o mais importante, traz como eixo fundamental a relação ao Outro, à alteridade, trazendo ao plano ético a relação do sujeito com seu desejo. Este é um ponto importante. Trazer o desejo ao primeiro plano envolve, para Lacan, uma questão psicanalítica fundamental, pois o desejo será pensado em relação à uma ética, de onde uma de suas máximas éticas de Lacan seja “não ceder em seu desejo”.

Será fundamental fazermos essa analogia, já que podemos traduzir o problema do “vazio” da forma-dever como o problema de saber o que o Outro quer de mim, qual o desejo do Outro. Como explica Zupančič, o problema está novamente na forma, tanto a lei moral kantiana como o desejo do Outro se apresentam na forma de um enigma:

“Tomemos como ponto de partida a famosa afirmação de Lacan segundo a qual o desejo é (sempre) o desejo do Outro. É importante ter em mente que isto não exclui a máxima ética: “não ceda no seu desejo”. Em outras palavras, a dimensão do Outro não exclui a autenticidade do desejo do sujeito. Mas como é isso é possível? Somente se admitimos que o desejo do Outro não se apresenta na forma de uma resposta ou de um mandamento (‘Eu quero isso ou aquilo’), mas – como Lacan pontua – na forma de uma questão ou um enigma, comparável ao que a Esfinge coloca para Édipo. O sujeito irá responder e, respondendo de uma maneira ou de outra, ele irá escrever o destino de seu desejo. A afirmação ‘o desejo é o desejo do Outro’ postula o Outro como o local de onde a questão do desejo originalmente emerge.

O ponto não é que o desejo do Outro existe em algum outro lugar, com o sujeito sabendo o que ele é e fazendo dele o modelo de seu próprio desejo. Exatamente o mesmo se pode dizer sobre o Lei moral kantiana. O sujeito não sabe o que a lei quer. É neste ponto que podemos simular uma convergência ou um encontro entre Kant e Lacan. “A lei é uma lei do desconhecido “é a proposição fundamental de qualquer ética digna do nome.” [10]

Mais especificamente, o problema da lei não está nos seus enunciados, mas, muito mais fundamentalmente, em sua forma de enunciação:

“A lei moral tem a estrutura de uma enunciação sem um enunciado: ela tem a forma de um enigma ou oráculo.”[11]

É esta dimensão radical da lei moral, a ausência de um “conteúdo concreto” e a sua forma de enigma, que levou Kelsen a postular a Norma Fundamental como “pressuposição lógico-transcendental” diante do impasse gerado por sua estrutura escalonada de normas. Toda a pressuposta unidade do ordenamento jurídico só se sustenta na exclusão desse “lugar vazio” que é o ponto fugidio da enunciação da lei, lugar que, dada sua necessidade estrutural, já foi ocupado por Deus e que já se tentou ancorar em ideias como “nação”, “povo”, ou “vontade geral”.

Mas desta forma “enigmática” ou “vazia” da lei, não podemos concluir que é impossível saber meu dever, que a lei nunca pode ser completamente desvelada. Ao contrário, como explica Žižek em continuação ao trecho supracitado, o âmago da ética kantiana e sua visão da autonomia subjetiva está justamente em impedir qualquer justificação do indivíduo em uma figura do grande Outro, livrando-se da responsabilidade por suas ações.

“Entretanto, longe de ser uma limitação, essa característica nos leva ao âmago da autonomia ética kantiana: não é possível derivar da própria Lei moral as normas concretas que tenho de seguir em minha situação específica, o que significa que é o próprio sujeito que tem de assumir a responsabilidade de traduzir a injunção abstrata de Lei moral numa série de obrigações concretas. A aceitação total desse paradoxo nos obriga a rejeitar qualquer referência ao dever como uma desculpa: “Sei que é pesado e pode ser doloroso, mas o que posso fazer? É o meu dever….”. É comum considerar que a ética do dever incondicional de Kant justifica essa atitude – não admira que o próprio Adolf Eichmann se referi-se à ética kantiana para tentar justificar seu papel no planejamento e na execução do holocausto: estava apenas cumprindo seu dever e obedecendo as ordens do Fuhrer. Entretanto, o propósito da ênfase de Kant na autonomia e na responsabilidade totais do sujeito é exatamente impedir quaisquer dessas manobras para jogar a culpa em alguma representação do grande Outro.”[12]

Ou, em outras palavras, a lei, para se constituir plenamente, depende sempre do ato do sujeito:

“Então “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal”: esse é um exemplo paradigmático de um “meio-dito” [le mi-dire] que, para se tornar uma lei, tem de ser suplementado com um ato atual do sujeito. A lei moral como atemporal e trans-subjetiva “depende” de um ato temporal do sujeito, um ato que não tem uma garantia estabelecida na lei (no ‘grande Outro’), pois é somente neste ato que a lei em si mesma é constituída.”[13]

É importante ter em mente que disso não aponta, como disse Žižek, para um voluntarismo, ou arbitrariedade da lei, em que cada um ficaria responsável por dizer aquilo que entende por ser a lei. O termo fundamental aqui é sujeito, pois o que importa não é o conteúdo objetivo daquilo que é postulado como seu dever, mas antes o próprio ato que retroativamente “cria” seu lugar na lei, abre espaço para sua autonomia:

“Pode-se admitir que é somente com seu ato que o sujeito cria o que o Outro (a Lei) quer. Este é, por exemplo, o ato de Édipo: Édipo retroativamente cria o débito simbólico no qual ele deveria ter nascido, mas que foi tomado dele em uma série de tentativas de escapar seu destino. A lição desta história não é que “tudo já está decidido” (pelo grande Outro), e não importa o que o sujeito faça, ele está perdido de antemão. Ao contrário, a estória de Édipo nos mostra, antes, que é o grande Outro que está perdido sem o sujeito. Sem o ato de Édipo, o oráculo não seria nada senão um falastrão inconsistente e sem sentido. Em outras palavras, sem o ato de Édipo a lei de oráculo seria somente o que ela é: um “meio-dito” que “teria se tornado” a Lei somente no ato do sujeito. É nesse nível que nós devemos situar a liberdade, e a real dimensão do ato. Isso, entretanto, requer uma definição a mais: se a Lei é constituída como Lei somente pelo ato do sujeito, e se o sujeito suplementa a lei com alguma parte de si mesmo, deveria ser remarcado que essa “parte de si mesmo” não é reconhecida pelo sujeito como tal (como pertencendo a ele). Dever-se-ia dizer, ao contrário, que o ponto de encontro entre a lei e o sujeito é ex-tima[14] à ambos.”[15]

Sem a existência deste “débito simbólico”, não haveria sujeito, ou seja, o correlato “objetal” do sujeito é justamente a falta no Outro, é e neste esquema que deve ser situada a liberdade subjetiva. Alguns rituais de tribos serviam justamente para “inscrever” o sujeito no campo simbólico, e isto se dava através de uma marca ritualisticamente infligida no corpo, muitas vezes de mutilação[16], tornando-o então reconhecível e admitido na tribo. O “dever” (e a lei), como relação com a falta do Outro, tem não só a forma de uma obrigação de fazer isso ou aquilo, mas também a forma daquilo que faz laço, ligação social, e daí o interesse que desperta na antropologia jurídica.

Em sociedades “primitivas”, ou pré-modernas, este problema do enigma da Lei era resolvido através de mitos que contavam a origem da sociedade, ou sábios que mantinham os segredos da comunidade e o privilégio da interpretação das leis, e assim ocupavam posições sagradas na sociedade. Figuras do grande Outro que apareciam como portadoras da lei ou conhecedoras de seu significado. De onde também a ligação íntima entre religião e direito. Mas o advento das filosofias iluministas e suas exigências de racionalidade colocaram em xeque os mitos de origem que fundamentavam as leis antigas, como demonstram de forma exemplar Adorno e Horkaheimer em “A dialética do esclarecimento”, cuja um dos ápices foi, como vimos, a ética kantiana do imperativo categórico e a problemática da “forma-dever”. Assim a antropologia jurídica, ao esbarrar no “dever” como ponto nodal da juridicidade na vida social, estava também se deparando com uma questão de grande importância para a filosofia moderna, e que ecoa ainda nos dias de hoje. A consciência moral e o dever, sob as luzes da psicanálise, ganham novos paradigmas, fundamentais para tempos de processo acelerado de globalização em que o avanço das formas sociais e culturais do Ocidente trazem, muito mais do que as soluções, conflitos e antagonismos, ao mesmo tempo que demonstram a inexorabilidade do universalismo que carregam.


[1] GLUCKMANN, Max. Obrigação e dívida, em Antropologia do Direito, Estudo Comparativo de categorias de dívida e contrato.

[2] GLUCKMANN, Max. Obrigação e dívida, em Antropologia do Direito, Estudo Comparativo de categorias de dívida e contrato.

[3] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg 12.

[4] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg. 15.

[5] Neste sentido, de valiosa leitura e análise o capítulo de Giorgio Agamben “As duas ontologias, ou como o dever entrou na ética”, em sua obra “Opus Dei”, com referências diretas a Kelsen.

[6] ŽIŽEK, Em defesa das causas perdidas, São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, pg 231.

[7] Revista Cult, Jacques Lacan: Além da Clínica, Edição Especial nº 8, Janeiro 2017.

[8] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg.15

[9] LACAN, Jacques. Seminário X: A angústia. 1ª Edição Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pg 166

[10] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg. 164

[11] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg. 164.

[12] ŽIŽEK, Em defesa das causas perdidas, São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, pg 231.

[13] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg. 163.

[14] Referência ao termo lacaniano êxtimo, que é um neologismo criado por Lacan para indicar algo do sujeito que lhe é mais íntimo, mais singular, mas que está fora, no exterior.

[15] ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real. Londres: Verso Books, 2000, pg. 167

[16] “No entanto, para que essa transposição da realidade biológica imediata do corpo para o espaço simbólico da linguagem aconteça, ela tem de deixar uma marca de tortura no corpo na forma de mutilação.” ŽIŽEK, Menos que Nada, 1ª Ed. São Paulo: Ed. Boitempo. 2013, pg. 507.

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