Por Anielson Ribeiro da Silva, graduando do curso de Língua Portuguesa e suas Literaturas pela UPE – Campus Petrolina e Militante da União da Juventude Comunista.
“A violência, portanto, não pode ser entendida simplesmente, no sentido liberal, como mera intenção de agressividade física, mas é aqui expressa através de um desejo contestador, que hostiliza a aparente realidade pacífica da “alta literatura” e conduz a linguagem a uma nova manifestação de ser livre.”
INTRODUÇÃO (OU DIAGNÓSTICO)
O título escolhido para este trabalho não é meramente uma provocação, mas o resultado de uma investigação teórica sobre o conceito de violência. Parece um tanto quanto incoerente dizer que Allen Ginsberg, um dos fundadores da beat generation[1], “papa” dos hippies, zen-budista e famoso por seus discursos pacifistas contra a guerra no Vietnã, possa ter sido um escritor que experenciou a violência em sua linguagem poética. Ainda mais: é um risco afirmar que há violência na linguagem, que segundo o senso comum é o meio par excellence da não-agressão e do diálogo. Antes, é preciso desmitificar e estabelecer consistência ao sentido geral do fenômeno da violência.
Todo fenômeno é uma totalidade de determinações em movimento que o levam a ser arrancado para fora e aparecer. Para compreender o fenômeno, é preciso penetrá-lo através do conhecimento científico até o seu conceito. Para Hegel (2005), fora do conceito, o que há é extensão e profundidade vazias, idênticas à superfície imediata. O conhecimento científico demanda uma renúncia da superficialidade desse fenômeno, ir a fundo em sua investigação estrutural e, por fim, retornar ao objeto com um algo a mais, que é o conceito. É desta forma que é possível entender até que ponto a aparência é determinada por sua essência. O conceito de violência atualmente está estritamente dominado pela aparência no discurso liberal, que é mera reprodução do senso comum, em que cabe somente uma noção da violência como manifestação de agressão física, vandalismo ou terror sanguinário. Nesse sentido, o sujeito violento é aquele que está fora de seu comportamento usual, que rompe com alguma espécie de contrato social. O que não é exatamente falso, mas é unilateral e mantém a ideia sempre em seu começo, não avança no aprofundamento em direção à sua substância. Ao deter o fenômeno num fosso ideológico limitado, incutindo que violência e bestialidade são sinônimos perfeitos, mantém-se o conhecimento do objeto apenas no senso comum, que é intuição, não ciência; e, aí sim, a aparência de uma ideia que circula sem conceito será sempre usada como arma para domesticação dos dominados:
“O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido. É o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhecimento algo como já conhecido e deixá-lo tal como está. Um saber desses, com todo o vaivém de palavras, não sai do lugar – sem saber como isso lhe sucede. Sujeito e objeto etc.; Deus, natureza, o entendimento, a sensibilidade etc. são sem exame postos no fundamento, como algo bem-conhecido e válido, constituindo pontos fixos tanto para a partida quanto para o retorno. O movimento se efetua entre eles, que ficam imóveis; vai e vem, só lhes tocando a superfície. Assim o apreender e o examinar consistem em verificar se cada um encontra em sua representação o que dele se diz, se isso assim lhe parece, se é bem-conhecido ou não.” (ibidem, p. 43).
Para uma melhor compreensão das formas de violência, é interessante verificarmos as colocações de Slavoj Zizek. Para o filósofo e psicanalista esloveno, há duas principais manifestações de violência: uma subjetiva e outra objetiva. A violência subjetiva é aquela manifestação que está na superfície e é diretamente visível, exercida por um agente claramente reconhecível, ou seja, emana de um sujeito determinado, como em revoltas populares, atos terroristas, homicídios, agressões físicas e morais, depredação de propriedade privada ou pública etc. Enquanto que a violência objetiva, isto é, aquela do objeto-sistema, está anonimamente envolta em um simulacro ideológico aparentemente “abstrato”, mas é, na verdade, a expressão das relações autopropulsivas que determinam as estruturas sociais da realidade: a concentração de riqueza, a consequente marginalização de indivíduos pobres, além das sutis manifestações de racismo ou machismo estruturais etc. (ZIZEK, 2014).
Para Walter Benjamin (2011), uma causa só se transforma em violência quando interfere em relações éticas, ou seja, quando intervém no direito e na justiça, o que implica em questões do Estado. Assim, para se combater a violência de uma manifestação popular, p. ex., o Estado utiliza a sua violência institucionalizada, retroativa e protecionista (polícia, leis etc.). Entretanto, se dermos um passo para trás e verificarmos o porquê da violência da primeira, poderemos constatar que muito provavelmente é gerada por algum problema condicionado pelo próprio Estado: seja a negligência do poder público, a retirada de direitos etc. Portanto, a violência exercida pelo manifestante é retroativa antes mesmo da violência estatal sê-la, isto é, a manifestação é sintoma de uma enfermidade societária. Mas a violência do Estado, seja em forma de má distribuição ou de encarceramento, para quem vê de fora, será sempre benquista como os anticorpos do sistema imunológico e não o corpo estranho causador da inflamação naturalizado que tem repelido a resistência da febre. E apesar de, no plano do aparente, essas diferenças se apresentarem como independentes, i. e., apesar da violência do Estado combater a violência do manifestante, em sua essência, uma não existe sem a outra, e se dissolvem em uma unidade conflitiva. Para elucidar isso, basta recorrer concisamente ao método dialético:
“O jogo das duas forças consiste, pois, nesse ser-determinado oposto de ambas, em seu ser-para-um-outro nessa determinação, e na absoluta troca imediata das determinações […] A solicitante, por exemplo, é posta como meio universal; e em contraste, a solicitada como força recalcada. Mas a primeira só é meio universal porque a segunda é força recalcada; ou seja, essa seria antes a solicitante em relação à outra, pois faz que ela se torne o meio. Aquela só tem sua determinidade mediante a outra.” (HEGEL, 2005, p. 113).
Nesse caso, a violência da manifestação é aparentemente solicitante e a intervenção dos aparelhos do Estado, a força solicitada para sua contenção; mas, na realidade, são dois lados de uma mesma moeda: o Estado capitalista é que cria as condições para que a primeira seja antes solicitada, e só então aciona os aparelhos que a contenham. Desta forma, se a violência é um problema social, a força solicitada não a resolve, pois não vai ao cerne da questão, já que, para isso, seria necessário substituir a própria dinâmica do Estado que a regula – renovar o organismo. Assim, percebe-se que a violência não é somente uma demonstração de força física ou um insulto direto a alguém, mas tem, pelo menos, duas facetas: a violência subjetiva, que é uma perversão, uma ruptura e um desejo de subversão que se lança na direção do fluxo “natural” das coisas, e a violência objetiva, que opera violentamente a manter a legitimidade do sistema contra qualquer perturbação. A partir de então, discutiremos como a violência é experenciada no poema em questão.
1. Ginsberg entre os estudiosos da guerra
O poema “Uivo”, escrito em 1955, foi dedicado ao escritor neodadaísta Carl Solomon, amigo de Ginsberg. O contexto histórico foi o então recente fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos conflitos da Guerra Fria, bipolarizada entre o macarthismo reacionário, burguês e anticomunista e a ortodoxia burocrata estalinista. Por isso, os versos de “Uivo” carregam essas nódoas de seu tempo, a angústia existencial, a busca pelo real sentido de liberdade. Afinal, toda a literatura mantém certa relação com seu tempo histórico, não simplesmente por ser escrita em um contexto específico nem por necessariamente o descrever, mas principalmente porque produz sobre o leitor, enquanto ser social, efeitos de percepção e de posicionamento sobre o mundo, independentemente de o texto ser, p. ex., realista, distópico ou um conto de fadas. A leitura fará com que o sujeito celebre, seja indiferente ou se incomode com a sociedade em que vive, tendo como referencial o texto lido. Nesse sentido, a poesia moderna de Ginsbeg exala um sentimento ambíguo entre a aproximação participativa e uma repulsa que é a manifestação de um desejo de mudança em relação à realidade. De qualquer forma, a literatura é formada por um conjunto de discursos e signos ideológicos que remetem a algo exterior ao texto, com intencionalidades latentes ou visíveis, seja no momento da escrita ou da leitura. Desse modo, a literatura, ao participar da história, também produz história.
Ginsberg era judeu, zen-budista e pacifista, mas, sobretudo, foi um fenômeno símbolo de rebelião estética e comportamental que influenciou toda uma geração de descrentes e órfãos do sonho americano. Portanto, o poeta beatnik praticou um tipo de violência subjetiva, pois incitava a quebra do ciclo pacificador das normas estabelecidas. Sua literatura refletia muito bem os anseios e a realidade crua de sua época, através uma escrita alucinada que, com frases aparentemente desconexas, impunha um desejo de liberdade e de descobertas sem limites no âmbito da significação. Assim, a poesia de Ginsberg é o extrato quimérico da própria realidade, um surrealismo sem sono, a impecável transcrição do pesadelo americano. Para o establishment da época, entretanto, se tratava apenas do produto de uma mente perturbada. Mas, afinal, quem eram realmente os loucos: os que estavam nos manicômios ou os que estavam nas trincheiras da guerra?
Para exemplificar como a arte mantém uma relação com seu contexto histórico, há uma anedota em que, durante a Segunda Guerra, um oficial alemão visita o estúdio de Picasso, em Paris, e fica horrorizado com o vanguardismo de “Guernica”, e pergunta: “Foi você quem fez isso?”. Então, tranquilamente, Picasso responde: “Não, isso foi feito por vocês” (ZIZEK, 2014, p. 23). Essa poderia muito bem ser a resposta de Ginsberg aos seus críticos, contudo, não foram os nazistas que afligiram mais uma vez a um judeu, mas o próprio Estado americano que escreveu com sangue essa travessia pelo inferno chamada “Uivo”, que denuncia seu conservadorismo sistêmico, sua homofobia e seu racismo estruturais. O que se percebe nos versos iniciais:
“Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
[…] que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos da cidade contemplando jazz,
[…] que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra
que foram expulsos da universidade por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel, escutando o Terror através da parede.” (GINSBERG, 2006, p. 25).
Nesse trecho, pode-se constatar que a linguagem está infectada pela violência, não só no sentido de descrevê-la, mas no próprio sentido de ser, com suas indigestas combinações que se lançam com cólera contra as limitações da língua. Além disso, as descrições dos ambientes de pobreza e sujeira têm um papel importante para a sua poética, não de forma a celebrá-las como pretendia o futurismo fascista de Marinetti[2] quanto à guerra, mas para impactar ferozmente ao denunciá-las como armas de uma guerra histórica oculta no âmago da própria América. Esse choque se dá porque, enquanto esperamos da poesia somente o doce aroma das flores, Ginsberg nos faz sentir o odor pútrido dos apartamentos pobres, das ruas sujas e do “Terror através da parede”, e isso nos desestabiliza, evoca um estranhamento em relação à ordem:
“A sujeira de qualquer tipo nos parece inconciliável com a civilização […] Mas, enquanto não podemos esperar que predomine a limpeza na natureza, a ordem, pelo contrário, nós copiamos dela […] A ordem é uma espécie de compulsão de repetição que, uma vez estabelecida, resolve quando, onde e como algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico.” (FREUD, 2011, p. 38).
Deste modo, se a limpeza é civilizatória (não-natural), enquanto a sujeira é bárbara, e copiamos aquela através da ordem, tudo o que rompe com a rotina da limpeza aparece como violência e desagrado aos nossos olhos. Assim, a limpeza em geral é a sublimação do instinto de parcimônia direcionada para a ordem, mas a sujeira neste poema é a sublimação direcionada contra a ordem. Jacques Lacan (1999) complementa mostrando que a violência é a ruptura com o objeto pacificador da dispersão pulsional, que seria a linguagem enquanto um âmbito de não-agressão, ou seja, pertencente ao Simbólico. Assim, a linguagem se transforma em violência quando extravasa o plano do Simbólico por excesso de pulsão e de gozo e, desta forma, retorna para o Real. A poesia do “Uivo”, essa “ode obscena nas janelas do crânio”, é o melhor exemplo desta violência da significação, pois a tensão que ela exige eleva os significados ao infinito, pressiona as palavras para fazer implodir os microcosmos do cotidiano em sensações ilimitadas que nos ferem com ódio, loucura, miséria e a sujeira da imoralidade. Entretanto, a insurreição deste poema deve ser entendida não somente como uma revolta contra a pobreza dos “apartamentos sem água quente”, ou seja, não apenas como exterior ao texto, mas também como uma rebeldia interna contra todas essas relações de poder que moldam a literatura enquanto produto social da cultura. Assim, essas instâncias se determinam mutuamente e a poesia aqui fricciona tudo isso em uma dialética da destruição.
2. Um molotov contra Moloch: o capitalismo como religião
A segunda parte de “Uivo” faz referência a uma divindade pagã (amalequita) que é citada na Bíblia, para a qual eram ofertados sacrifícios humanos, principalmente crianças, conhecida como Moloch. Segundo Benjamin (2013), o capitalismo não é só condicionado pelas relações com a religião, como Max Weber afirma quanto ao protestantismo, antes, o próprio sistema se configura como uma estrutura ético-religiosa. A alusão ao deus-devorador, portanto, pode ser entendida como uma crítica à civilização capitalista da modernidade. Ginsberg desenvolve uma alegoria poético-mística para a personificação desse deus do capitalismo, em evidência nos trechos:
“Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? Moloch!
[…] Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é um dínamo canibal.” (GINSBERG, 2006, p. 34).
A característica essencial das grandes metrópoles urbanas é representada aqui pela imponência dessa “esfinge de cimento e alumínio” que, com sua dinâmica, devora nosso tempo e nossas potencialidades sem, antes, nos fazer a charada, pois é ela mesma a charada e a resposta. Para não ser desvelada e preservar sua existência, porque a investigação do seu funcionamento é o primeiro passo para sua destruição, a esfinge consome nossas imaginações, mas não nos deixa sem nada (pois o nada é sempre desejo de ser), pelo contrário, ao sugar nossa força das horas de trabalho nas fábricas, escritórios etc., em lugar dessa energia imediata, o que nos alimenta é uma espécie de excremento ideológico do que Moloch devorou: é assim que, no capitalismo, os explorados se relacionam com a reprodução do mundo que produziram, de uma maneira precária. Aos versos seguintes, segue uma personificação ainda mais evidente de Moloch, “cuja mente é pura maquinaria” e “seu sangue é dinheiro corrente”: é o signo da grande indústria e de seu progresso desenfreado, que aniquila ou se apropria de todas as relações primitivas, inclusive do próprio Deus, em nome do capital. Nos trechos “cujos dedos são dez exércitos” e o “peito é um dínamo canibal”, pode-se compreender a corporificação simbólica da guerra e do imperialismo em Moloch, pois o deus-devorador necessita de holocaustos constantes em seu nome para manter o seu coração bombeando o dinheiro que flui em suas veias.
Pode-se sentir toda a verve incendiária da rebeldia nas linhas deste poema, o que descortina a face monstruosa de Moloch e que nos leva à percepção do caos da ordem. Quem seria o maior representante da religião do capitalismo, senão os Estados Unidos da América? Moloch representa a dimensão espectral da ideologia burguesa e seu receptáculo de “incorporação” é o Estado americano. Nesse sentido, fica claro porque o texto se refere ao deus pagão como um lugar:
“Moloch em quem permaneço solitário! Moloch em quem sonho com anjos! Louco em Moloch! Chupador de caralhos em Moloch! Mal-amado e sem homens em Moloch!
Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch em quem sou uma consciência sem corpo!
[…]
Eles quebraram suas costas levantando Moloch ao Céu.” (GINSBERG, 2006, p. 35).
Deste modo, o eu lírico estabelece uma relação de pertencimento tempo-espacial, ainda que forçada, a Moloch. Mas o capitalismo em si é um não-lugar, que é aparentemente abstrato, mas é real na medida em que conduz a produção e a reprodução da vida social dos indivíduos: penetra nossas almas. O capitalismo como religião é essa fantasmagoria circulante e que se solidifica através dos poderes de dominação do Estado, é o sistema adquirindo a ressignificação mística da miragem ideológica em que habitamos, é toda a estrutura político-econômico-teológica que determina nossas percepções individuais sobre a realidade social. E é no trecho “Moloch em quem sou uma consciência sem corpo”, que se pode entender melhor a solidificação dessa estrutura através do olhar pessimista do autor, pois mesmo que se compreenda a realidade, enquanto as relações de produção que determinam as inter-relações sociais continuarem sendo capitalistas, os corpos continuarão “levantando Moloch ao Céu”, enquanto sentem o peso da miséria, da solidão e do desamor em suas costas. É fundamental, portanto, uma reestruturação radical.
Se o capitalismo é uma religião, esta existe sem dogmas nem teologia, pois consegue cooptar, a partir da produção, todas as relações sociais para manutenção do seu funcionamento. O único dogma é o próprio sistema capitalista, que é também um mito, em que não há uma transcendência expiatória-salvadora, mas sim um aprofundamento da culpa e do desespero inerentes. Assim, o Estado burguês se apresenta como seu fervoroso sacerdote. Ele repreende qualquer perturbação no fluxo natural das coisas através de sua violência objetiva institucionalizada. A violência objetiva é uma violência invisível, sustenta a normalidade, que, porventura, é o referencial que faz com que percebamos algo como subjetivamente violento. Essa violência objetiva é configurada para barrar qualquer tentativa humana de agir histórica e livremente, é um disciplinamento imperceptivelmente inquisidor contra os hereges da religião de Moloch.
3. O dilaceramento do Eu: visões de Rockland
A terceira e última parte do poema Uivo se dirige diretamente a Carl Solomon. Ginsberg o conheceu em seu internamento no Instituto Psiquiátrico de Columbia. Logo depois, Solomon fora transferido para o Pilgrim States. A troca pelo nome do hospital psiquiátrico de Rockland, inúmeras vezes evocado como um refrão, tem apenas intenção poética: Rockland significa “terra da rocha”, uma referência à aridez desértica experimentada no lancinante uivo do poeta, como se enfrentasse junto ao seu amigo os quarenta dias no deserto e já estivessem em direção ao Gólgota da crucificação. Esse companheirismo é expresso nos versos:
“Carl Solomon! Eu estou com você em Rockland
onde você está mais louco do que eu
Eu estou com você em Rockland
onde você deve sentir-se muito estranho
Eu estou com você em Rockland
onde você imita a sombra de minha mãe
[…]
Eu estou com você em Rockland
onde você martela o piano catatônico a alma é inocente e imortal e nunca poderia morrer impiamente num hospício armado,
Eu estou com você em Rockland
onde com mais cinquenta eletrochoques sua alma nunca mais retornará a seu corpo de volta da sua peregrinação rumo a uma cruz no vazio
Eu estou com você em Rockland
onde você acusa seus médicos de loucura e prepara a revolução socialista hebraica contra o Gólgota nacional e fascista
Eu estou com você em Rockland
onde você rasga os céus de Long Island e faz surgir seu Jesus vivo e humano do seu túmulo sobre-humano.” (GINSBERG, 2006, p. 36-37).
Cada verso aqui é ferino, é a violência se manifestando em seu misterioso estágio divino devastador. A violência divina é um gesto destrutivo de caráter revolucionário. A aniquilação instituída por esta não é vazia, não é um fim em si mesma; é, contudo, a criação de uma abertura para a possibilidade de uma mudança efetiva e da fundação reivindicativa de uma justiça pelos sofridos séculos de violência sob o jugo das classes dominantes (BENJAMIN, 2011). Para compreender isso, é necessário notar que o eu-lírico não evoca o mote “Eu estou com você em Rockland” apenas como singela proposição de companheirismo, mas como forma de justiça: não é só o eu lírico que se sente com Carl Solomon onde a alma “nunca poderia morrer impiamente”, mas principalmente o leitor. Ginsberg utiliza a catarse como forma de violência e induz ao estranhamento que revela a estrutura caótica da realidade. Para fazer o leitor “despertar em Moloch” e romper com as barreiras psicológicas da ideologia burguesa, o eu lírico o leva até o calvário de Solomon, porquanto é preciso não só denunciar, mas, sobretudo, fazê-lo sentir os eletrochoques, a fome, o desespero, a lobotomia e o próprio sofrimento. Assim, o leitor atravessa uma reinterpretação radical da cena da transfiguração de Cristo para se tornar, primeiro, eu lírico ao se integrar ao texto através do mote “eu estou com você em Rockland” e, ao compartilhar esse fardo, se tornar Solomon e tomar o padecimento como seu. É através dessa violência que a poesia de Ginsberg arranja um momento de abertura no Eu, para ascender da própria experiência tranquila e ser-um-Outro-em-si, pois
“[…] não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto.” (HEGEL, 2005, p. 44).
Em vista disso, é pelo olhar do leitor sobre o outro que Ginsberg tenta incitar a violência, não por vias de uma abstrata solidariedade humana, mas através da desconfiança a respeito da vitória dos dominadores: um olhar que é o vir-a-ser da solidariedade com os dominados. Como entendido no verso “sua alma nunca mais retornará a seu corpo de volta da sua peregrinação rumo a uma cruz no vazio”, o poema é o testemunho da crucificação de um Jesus vivo e americano, que é imagem e semelhança de todos os pobres, abandonados e massacrados pela América, dos que morreram em manicômios usados simplesmente como forma de castigo para aqueles que ousaram pensar além dessa “simples vida”, como Allen Ginsberg[3] e Carl Solomon, que “imita a sombra de minha mãe”[4]. A violência divina é a manifestação do excesso, a pulsão desse “túmulo sobre-humano” transpondo a regularidade da lei da religião do capitalismo, aquilo que reside na potência de romper com o direito e subverter a ordem, sendo expresso no verso “onde você acusa seus médicos de loucura”. A ruptura com esse modo limitado de vida através da violência divina é o que o eu-lírico evoca em “revolução socialista hebraica”: retomar a vida do profano de Moloch.
“Uivo” é uma oração em que ecoa, por detrás de cada verso, as lamúrias do “Eli, Eli, lama sabachthani”[5]. Mas, se o Cristo bíblico sofreu sua morte no lugar de todos os homens para perdoá-los e, assim, cortar o laço que os prendiam à antiga lei, o crucificado de “Uivo” sofre não para salvá-los da culpa, mas para açoitá-los com ela, para dissipar o efeito anestésico que age sob os oprimidos e fazê-los sentir novamente a dor de sua própria morte, para que cada um se sinta responsável pela própria salvação e, ao mesmo tempo, a do outro[6] e, deste modo, abrir a possibilidade de romper com a naturalização mítica de um sistema que se interpôs como uma onipresença político-teológica sem início nem fim – um eterno “agora”. Para isso, com os termos de Benjamin (1985), é preciso friccionar os estilhaços messiânicos até implodir o continuum da história, interromper o tempo-de-agora e transformá-lo em um percurso transitório interminável. A poesia de Ginsberg consegue abarcar essa dimensão messiânica, marcando a si mesma com as feridas dos fantasmas do passado para vingá-los através desta auto-revolução poética permanente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A rebeldia existente no poema analisado mostra que não se pode reduzir a realização e compreensão de uma obra a uma relação sociedade-arte e que, para estabelecer um reconhecimento dialético coerente do fenômeno literário enquanto produto social, é preciso também perceber que, mesmo com todas as forças dominantes que o afetam e o afligem, o artista nunca é um mero espelho passivo que respeita objetivamente as leis impostas pela sociedade do seu tempo; mas, sobretudo, é necessário compreender que o artista tem um grande poder de subjetivação, isto é, tudo que passa por ele se transforma, se combina e pode ser devolvido à realidade como um objeto artístico que resguarda um conteúdo explosivo. Mas, mesmo com todo esse espírito de revolta contido nas linhas desse poema e exaltado por este artigo, é preciso reiterar, para não deixar lacunas de más interpretações idealistas, que não são poemas ou molotovs que fazem revoluções, mas a organização de homens e mulheres.
A análise dos fragmentos destacados evidencia como a dimensão violenta do poema “Uivo” é manifestada. A violência, portanto, não pode ser entendida simplesmente, no sentido liberal, como mera intenção de agressividade física, mas é aqui expressa através de um desejo contestador, que hostiliza a aparente realidade pacífica da “alta literatura” e conduz a linguagem a uma nova manifestação de ser livre. Entretanto, é impossível conhecer verdadeiramente uma obra de arte ao exilá-la no plano estético; a arte é um produto social do seu tempo, mas, concomitantemente, também interfere na dinâmica de percepção sobre a sociedade. É nesse momento de anseio pelo novo que a literatura pode se constituir como violência subjetiva, e então se torna a causa a ser combatida pela violência do já-estabelecido, que, por sua vez, é objetiva, sistêmica e repreende tudo aquilo que tentar subverter a ordem existente. E, no caso de “Uivo”, a ordem em questão é o capitalismo, que se reflete tanto como elemento histórico-social estruturante do tecido textual como no trato dado inicialmente pelo establishment à obra já socializada, pois é assim que esse sistema político-econômico funciona: penetra em todas as relações sociais de base e assume uma estrutura político-teológica em que naturaliza este “modo de vida”, como se existisse desde o início dos tempos uma maneira determinada de crer, de ser, de escrever etc., e, portanto, convence seus “fiéis” de que não há alternativa. Em “Uivo”, essa estrutura é representada pela figura monstruosa de Moloch. A violência subjetiva do novo precisa exceder essa vida artificial, provocar o estranhamento que revela as contradições da realidade e então infringir a lei para se transformar na violência divina revolucionária. Essa poesia enfurecida tem o dedo de Deus.
[1] Movimento literário americano surgido nos anos 50.
[2] BENJAMIN, 1985, p. 195.
[3] Segundo Willer (2009), o poeta beat se internou por decorrência dos escândalos envolvendo seu comportamento e sua literatura.
[4] Naomi Ginsberg, judia e comunista, também internada por distúrbios mentais. Pode-se notar, nesta passagem, um sentimento que remete à relação edipiana de Allen com sua mãe sendo transferido para Solomon.
[5] “Senhor, Senhor, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46).
[6] “Assim, sou responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem que escolho ser; ao escolher a mim, estou escolhendo o homem.” (SARTRE, 2014, p. 21)
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. 257 p.
______. Para uma crítica da violência. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Ernani Chaves. Org. Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 121-156.
______. O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. Org. Michael Löwy. São Paulo: Boitempo, 2013. 192 p. (Coleção Marxismo e Literatura)
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 3 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2005. 552 p.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics & Companhia das Letras, 2011. 93 p.
GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. Trad. Claudio Willer. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2006. 208 p. (Coleção L&PM Pocket, v. 188)
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. João Batista Kreuch. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Vozes de Bolso)
WILLER, C. Geração Beat. Porto Alegre: L&PM, 2009. 128 p. (Coleção L&PM Pocket, v. 756)
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014.195 p.