Por João Miranda
Um espectro ronda a luta política – o espectro do pós-modernismo e da socialdemocracia.
Refiro-me a uma patrulha de “inteligentinos” de temperamento arrogante e, não raro, autoritário. Crentes que são moderninhos e “prafrentex”, têm (conscientemente ou não) uma função ideológica poderosa: a manutenção do sistema capitalista. Essa ação de manutenção dos projetos hegemônicos de classe no capitalismo não se dá por meio de uma apologia aberta a esse sistema, mas sim de um apoio perpetrado de forma bem mais sútil numa série de concepções que, se não defendem abertamente o capitalismo, também não o incomoda.
É difícil elucidar como se dá essa ação pró-status quo, porque ter uma noção de conjunto das diversas correntes denominadas genericamente de “pós-modernas” e “socialdemocratas” beira um castigo de Sísifo, haja vista toda a sua proporção.
O próprio termo “pós-moderno” se transformou em um tipo de “conceito guarda-chuva”, dada toda a sua abrangência, que diz respeito a quase tudo. Fala-se que são pós-modernas uma nova forma “de experienciar o espaço e o tempo” (Jameson, Harvey), “um estado da cultura” (Lyotard), uma “cultura” (Foster) ou “lógica cultural” (Jameson), “uma condição” (Harvey, Lyotard), “uma poética” ou “uma política” (Hutchon). De todo modo, o termo entrou na linguagem cotidiana para descrever indivíduos ou correntes que não estão envolvidos na construção de um novo projeto de hegemonia dos explorados, ou, ainda, que são, implicitamente ou não, contra os processos de formação de uma consciência crítica por parte dos oprimidos e na organização de suas lutas e ações políticas.
Para realizar problematizações que englobem esses diferentes impasses e dilemas e delimitem o seu sentido, é possível deslocar o olhar analítico para o que está a posteriori dessa crise e dos movimentos pós-modernos: a virada linguística. A linguistic turn foi gestada pelo vácuo aberto criado pelo colapso do real perpetrado por tendências filosóficas mais gerais do pós-modernismo, assim como do pós-estruturalismo e do neopragmatismo. Em “Histórias, estórias: morte do ‘real’ ou derrota do pensamento?”, Moraes e Duayer apontam que no início da segunda metade do século XX, teóricos que possuíam essas tendências promoveram um processo de rejeição, não raro radical, às vezes moderado, dos critérios epistemológicos, porque as proposições que “separavam o científico do não-científico, distinguiam o racional do irracional, apartavam a verdade da falsidade, estes fatos, como se veio posteriormente a ‘descobrir’, eram já produtos da linguagem, vinham carregados de interpretação, de preconcepções, noções metafísicas, valores, etc”.
Os diferentes movimentos intelectuais que estiveram associados com o termo “virada linguística” reconheceram, então, a linguagem como um agente estruturador. Como a verdade, o racional, a possibilidade de conhecer o real, dependiam destes procedimentos epistemológicos, refutá-los significaria refutar também a verdade, o racional, o real. Assim, o “assassinato da realidade” foi, como disse Baudrillard, o “crime perfeito”.
O vácuo aberto pelo colapso da possibilidade de se conhecer o real foi ocupado pelas proposições subjacentes e em torno da virada linguística, momento de inflexão em que o conhecimento científico era tido mais determinado e originado pelas estruturas de enredo próprias da cultura daquele que o constrói, do que por referenciais teóricos, procedimentos metodológicos e pelos fatos dedutíveis das fontes. Assim, cada um tem a sua teoria, cada um tem a sua verdade, e todas são igualmente válidas.
No movimento de sanitarização dos critérios e princípios epistemológicos, afirmam Moraes e Duayer, verteu-se fora não só os problemas ligados à subjetividade inerentes a esses procedimentos do fazer ciência, mas também todos os métodos de validação da plausibilidade do conhecimento sistemático e, consequentemente, a verdade, o racional e a possibilidade de representação e cognição do real. Tudo foi, então, postos fora junto com a “água e o balde”. O que ocupou esse vazio aberto foi a redução de todo o discurso, incluindo o científico, à condição de construções discursivas literárias.
Neste jogo de linguagem, tudo se passa com a falsa aparência de inocência. Mas, em tempos da “chamada pós-verdade” e de franquias do “politicamente incorreto”, esse relativismo é algo problemático porque, entre outras razões, dá guarida a posicionamentos cientifica e politicamente bastante complicados na atualidade, como é o caso dos revisionismos do holocausto, da Ditadura Civil-Militar ocorrida no Brasil, as teses que apontam que a Terra é plana, entre outros casos.
Esses revisionismos estão colocando em xeque explicações construídas ao longo de décadas de estudos científicos. Sustentados por esse quadro de relativismo exacerbado, tais revisionismos partem do pressuposto de que não existe uma interpretação precisa e única e, por isso, todas as verdades são verdadeiras. Assim, aquele que disser que, por exemplo, não houve holocausto, não só estará correto a partir do ponto de vista desse relativismo, como também essa verdade deve ter o mesmo valor que as construções discursivas científicas que, a partir de provas analisadas metodologicamente, apontam que houve sim holocausto. Luigi Pirandello, no título de sua obra, capta comicamente a posição generalizada e cômoda do ceticismo ligado ao relativismo: “Cosè è (se vi pare)”.
Recentemente, vimos isso quando atores da direita radical, incluindo o MBL (Movimento Brasil Livre) e o deputado da bancada da bala Alberto Fraga (DEM), passaram a protagonizar uma ativa campanha difamatória contra a vereadora do PSOL Marielle Franco. Marielle e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados a queima roupa no Rio de Janeiro. As postagens de Fraga e do MBL se tratavam de uma fábrica de informações falsas e boatos que aludem, sem qualquer base factual, ao envolvimento da vereadora com “bandidos”. Um dos focos para a propagação das notícias falsas foi a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), Marília Castro Neves, a qual foi uma das pessoas a disseminar uma acusação sem provas sobre a vereadora. Ela afirmou, em um comentário do Facebook, que Marielle “estava engajada com bandidos” e “não era apenas uma lutadora” e que “descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores’, que, segundo Marília, seriam do Comando Vermelho.
Esse caso deixa evidente os graves efeitos colaterais da “chamada pós-verdade”, a qual é sustentada por uma série de teorias que se baseiam no relativismo exacerbado.
Assim sendo, para o oba-oba pós-moderno não existe mais nada. Não existe o ser humano. Não existe o Brasil. Não existe o vizinho que bate na esposa. O Estado também não. O procurador jurídico da universidade que processa filho de pobre? Claro que não, brow. E a crise? Nada além de coisa da nossa cabeça. O computador em que escrevo este texto? Pira minha. E você também não existe. Tudo o que existe são discursos, estórias, narrativas que podemos organizar conforme uma estrutura de começo, meio e fim, que sempre estarão muito aquém de ser o real. Portanto, para os assassinos do real, a realidade não passa de uma série de representações, imagens, alucinações, carregadas de juízos de valor, jogos de linguagem assentados historicamente a partir do seu lugar social. É como se a vida fosse nada além do que uma viagem de ácido.
Não bastasse essas asneiras, a vibe do prafrentex pós-mod vem conjuntamente do culto à “identidade” (social, racial, cultural, sexual etc.) e seu irmão siamês: a tese de que só existe a Diferença, com letras maiúsculas. Ou seja, para essa cilada, não existe o ser humano, o que existe são americanos, chineses, brasileiros. Na verdade, para eles não existe brasileiros, mas goianos, paulistas, cariocas, paranaenses. Na verdade, para eles não existe paranaenses, o que existe são londrinenses, pontagrossenses, curitibanos. Na verdade, não existe curitibanos, mas sim mulheres brasileiras, negros americanos, gays chineses. A mulher brasileira, na verdade, também não existe: existem mulheres brasileiras brancas de classe média, mulheres brasileiras negras. E isso não é tudo. Para os pós-modernos, não existe classes sociais. Há grupos identitários, que se reformulam e se transformam a cada momento e circunstância. E por aí vai… cada vez mais compartimentando, reduzindo, individualizando, tudo a partir de um suposto predicado próprio.
A consequência disso é que toda a luta política se resume a um esforço de reconhecimento da própria identidade. Num mundo em que não nos entendemos como capazes de lutar em coletivo pelo coletivo, queremos (conscientemente ou não) que as nossas ações, o nosso estilo de vestir, pensar e falar, os nossos sonhos, projetos e posicionamentos político-ideológicos, a nossa vida sexual, enfim, queremos que tudo o que consideramos que nos caracteriza, todas as multiplicidades que entendemos que dão forma à nossa identidade, e com as quais estabelecemos uma relação de propriedade, sejam reconhecidas e valorizadas. Portanto, para o raciocínio pós-moderno que está muito presente na chamada “nova esquerda”, a luta está inundada pela necessidade de reconhecimento dos nossos predicados supostos. Nessas relações políticas, necessitamos do outro para confirmar a nossa própria identidade.
Assim, não raro o militante de esquerda anda de camisa vermelha para que o colega reconheça que ele defende o conjunto de ideias, correntes e tendências que fundamentam o comunismo. Para frisar o seu posicionamento, o indivíduo ainda se manifestará de todas as formas que conseguir, seja marcando o corpo com uma tatuagem, seja tirando uma self na manifestação e compartilhando-a em todos os cantos do mundo internético, seja colocando no perfil da rede social fotos carimbadas com frases como “Não reconheço governo golpista”, etc. Muitas vezes o militante não está se manifestando por esses ideais de esquerda em prol de um mundo melhor. Muitas vezes ele ou ela estão, na realidade, manifestando-se para que o outro reconheça que defendem esses ideais, dos quais ele se considera proprietário por crer que eles fazem parte de sua identidade.
A mesma necessidade de afirmação acontece com o indivíduo de direita, ou de qualquer outro posicionamento do espectro ideológico – e não se limita ao campo da política. Portanto, por mais que no cartaz, na camisa e na cabeça estejam discursos bem decorados sobre demandas sociais, no fundo o indivíduo vai à rua porque precisa que as suas multiplicidades sejam reconhecidas como tais no interior dos embates político-sociais. Nesse sentido, na atualidade a luta não é somente pela ampliação de direitos universais à grupos excluídos, mas é, principalmente, um processo de afirmação das idiossincrasias de cada um diante de um quadro universalista que insiste em nos homogeneizar, ao invés de atender ao nosso desejo de nos conceber como queremos que seja.
Isso não significa que as discussões sobre injustiças sociais foram deixadas de lado. Os próprios antagonismos sociais que perpassam a vida dos desassistidos são entendidos como consequências de uma falta de reconhecimento de tradições e dos modos de vida dessas pessoas desfavorecidas. As lutas políticas, então, por mais que sejam orientadas por demandas de redistribuição de riquezas, no limite visam garantir aos sujeitos o reconhecimento de suas demandas identitárias.
A teoria do reconhecimento que embasa essa discussão ressurgiu a partir dos anos 90, principalmente com Alex Honneth, filósofo alemão da terceira geração da Escola de Frankfurt, que afirmou no seu “Redistribution or recognition”, livro que escreveu conjuntamente com Nancy Fraser, que “os sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça social quando veem aspecto de sua personalidade, que acreditam ter direito ao reconhecimento, serem desrespeitados”. A sociedade justa, assim, seria aquela em que prepondere a igualdade de direitos e responsabilidades; e essa igualdade significaria a possiblidade de todos desenvolverem, formarem e afirmarem a sua identidade pessoal, individual, restrita e setorial.
Não raro, essa identidade é fortemente perpassada pelo ideal “self-made-man”, que traz a projeção do indivíduo que, apesar de ter saído do nada, no futuro será o jovem capitalista globalizado que, em cada país, assiste CNN em hotéis luxuosos, fala ao celular, anda de limusine, usa gravatas poderosas e faz refeições com o poder. A liberdade, para essa concepção, está na autonomia do indivíduo de se fazer por si próprio, com seu esforço, por suas boas qualidades. “Você S/A”, título de uma revista brasileira, retrata bem essa relação do indivíduo entendo a si mesmo como uma empresa; uma empresa de si mesmo que ele vai investindo para crescer, mantendo uma relação mercantil com o outro para confirmação de si mesmo.
A sociedade, para os lutadores pelo reconhecimento do individual, é concebida como um conjunto ordenado de indivíduos, os quais vivem em constante esforço (consciente ou não) de confirmação da própria identidade a partir do outro. Acredita-se, pois, que somos o que acreditamos ser quando o outro confirma isso para nós, reconhecendo os nossos atributos e predicados – e agimos eticamente quando reconhecemos as características identitárias do outro e este faz o mesmo por nós. Portanto, o indivíduo é ético somente quando confirma a identidade do outro, sem fazer qualquer movimento que envolva a alteração da mesma.
Toda a luta se dá, nesse sentido, para afirmar a identidade, o valor, a originalidade de um indivíduo ou grupo, pois somos, segundo esse raciocínio, indivíduos únicos formados por uma identidade pré-definida, que se modifica a partir dos nossos interesses – e que resta ao mundo reconhecer as nossas peculiaridades. O que, em si, não envolve nenhuma contradição.
Mas, no fundo, os movimentos identitários, alimentados e orientados pelas teses pós-modernas, carregam um problema, às vezes implicitamente, às vezes não. Para eles, só se pode defender a própria identidade e confirmar a do outro, como já foi dito; e essa defesa da identidade, em suma, se dá pela defesa do “diferente” em nome da igualdade, mas que, no final das contas, a igualdade fica falando sozinha. A igualdade fica de lado porque, nesse movimento de “elogio da diferença”, as distâncias são alargadas. Noutras palavras, para essa atmosfera pós-moderna que, infelizmente, respiramos nos ambientes de esquerda, nas universidades, celebra as diferenças mantendo-as intacta, porque só pode confirmar a identidade do outro, e não intervir nela.
Talvez com um exemplo fica mais fácil entender o problema disso. Se seguirmos o ideário identitário, não se pode intervir, por exemplo, na vida de um casal em que o homem bate na mulher, porque, afinal, essa violência faz parte da identidade dos dois, que só deve ser confirmada, de preferência à distância. Trata-se de um caso extremo, mas que nos ajuda a mostrar como os movimentos identitários buscam engessar a transformação social ao confirmar a diferença “pela igualdade”.
Por tudo isso afirmei no início do artigo que os pós-modernos, ao alimentarem esse apego às singularidades culturais, essa onda de celebração da diferença, defendem implicitamente a manutenção do sistema capitalista. Assim, os cacoetes pós-modernos não são nada além do que novas embalagens para antigos interesses.
Kenan Malik, escritor indiano, afirma em O Espelho da Raça: O Pós-modernismo e a Louvação da Diferença, que a “crítica pós-moderna ao universalismo, longe de formular uma crítica à teoria racial, apropria-se, na verdade, de muitos de seus temas e reproduz os próprios pressupostos sobre os quais, historicamente, assentou-se o racismo”.
O irônico de tudo é que a praga pós-moderna que infecta e que mofa as universidades – entre outras instituições – insistem, como afirmou Ellen Meiksins Wood na introdução do livro de Malik, na fragmentação, na individualização e na particularização de tudo numa época em que o sistema capitalista, como nunca, se tornou completamente totalizante e universalizante.
Essas asneiras fragmentadoras pós-modernas surgem num contexto em que autores do pós-guerra apontavam o fim das grandes Meta-Narrativas e das ideologias. Em A Condição Pós-Moderna (1979), o filósofo francês François Lyotard (1924-1988) foi um dos primeiros a abordar um giro de 180º na condição epistemológica da ciência – uma revolução científica, segundo ele – e também uma mudança na condição humana formando um “indivíduo pós-moderno”. Essas mudanças se caracterizam pelo fim dos centros no espectro ideológico e da queda de credibilidade das grandes Meta-Narrativas, entre as quais estão a Meta-Narrativa Iluminista, Hegeliana, Positivista e Marxista. José D’Assunção Barros, em “A historiografia pós-moderna”, afirma que algumas das razões para o descrédito das Meta-Narrativas são apontadas na Segunda Guerra Mundial, os Totalitarismos à Direita e à Esquerda, as crises no Socialismo Real, além dos diversos movimentos da Contracultura.
Na historiografia, campo que conheço um pouco melhor, surgem em resposta a essa suposta crise das meta-narrativas áreas da produção do conhecimento histórico conhecidas como “Nova História”, como a chamada micro-história, história oral, entre outras que possuem como corpus philosophicum o enfoque no estudo da identidade a partir da Diferença.
Além disso, depois que Daniel Bell (1919-2011), sociólogo estadunidense, formulou em seu livro O Fim das Ideologias (1960) a tese do fim das ideologias, um infindável debate se abriu. Ele trata que, haja vista o pragmatismo político e a mundialização da crítica cientifica, as grandes ideologias nascidas no século XIX, de matriz humanista, não só não tinham mais força, como também estavam desaparecendo. Numa sociedade de capitalismo avançado, as ideologias teriam perdido seu caráter mobilizador nas sociedades e, consequentemente, sua funcionalidade, gestando movimentos entendidos genericamente como “pós-modernos”, nos quais a ideologia supostamente não teria lugar.
Mais tarde, no contexto da Queda do Muro de Berlim, o filósofo e economista político nipo-estadunidense Francis Fukuyama reunirá aquelas inverdades com a tese do “fim da história”, dando a entender que o nosso horizonte final é o que já temos.
A esquerda no Brasil e no mundo foi intensamente afetada por esses movimentos chamados genericamente de pós-modernos. Ela foi afetada porque, após grande parte da esquerda se transformar de anti-sistema à legitimadora do sistema, passou a oferecer unicamente a “humanização” do sistema capitalista.
Em “Olhando para a esquerda latino-americana”, o cientista político José Fiori aponta que o pensamento da esquerda moderna começa o século XX com uma tese e uma proposta muito claras: liberdade política = igualdade econômica = fim ou diminuição do peso da propriedade privada. Entretanto, nos revisionismos promovidos ao longo da primeira metade do século XX, principalmente na década de 1950, ocorreu um giro de 180 graus nas ideias de esquerda e, consequentemente, na equação. Nessa revisão, “uma parte significativa da esquerda europeia abandonou definitivamente as propostas clássicas […] da revolução socialista e da eliminação da propriedade privada e do estado”. Assumiram que não acreditavam mais numa possível crise final do sistema capitalista e que, diante da impossibilidade da derrocada desse sistema, deveriam lutar pelo sucesso do mesmo para alcançar a igualdade social. Com essa mudança, a nova equação “pode ser resumida de forma muito simples: ‘liberdade política = igualdade social = crescimento econômico = sucesso capitalista”.
Essa transformação teórica e doutrinária foi uma das mais radicais em toda a história da esquerda. Pouco tempo depois, entre 1964 e 1983, governos majoritariamente trabalhistas e social-democratas europeus implementaram o projeto do estado de bem-estar social, que pode-se considerar como uma das primeiras experiências à esquerda pós o revisionismo de 1950. Partiam do pressuposto de que a médio prazo “as políticas ‘pró-capital’ teriam consequências ‘pró-trabalho’ e ‘pró-igualdade’”. Então implementaram políticas econômicas keynesianas, as quais defendem o ativismo estatal na economia como um meio para alcançar o pleno emprego, através de uma política fiscal de incentivo à industrialização e construção de redes estatais de infra-estrutura e proteção social universal. As estatizações de grandes empresas, nesse contexto, só seriam implementadas em casos indispensáveis, não sendo mais uma política de criação de um núcleo estratégico estatal.
Tal mudança radical na esquerda se deve em grande medida ao avanço do capitalismo na década de 1940. Nessa época, os Estados Unidos cresceram muito economicamente. Após um longo período de estagnação pós-crash da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, aproveitaram a Segunda Guerra Mundial para alavancar a sua economia através, principalmente, da indústria bélica. O que permitiu ao capitalismo realizar grandes elevações nas taxas de investimento e gerar altos índices de crescimento entre 1945 e 1975, principalmente para a economia norte-americana. Em meio a esse período do capitalismo que ficou conhecido como “trinta anos gloriosos” (Hobsbawm fala em “Era de Ouro”), além da crise da URSS stalinista enquanto modelo de país socialista, grande parte da esquerda passa a desacreditar na crise final desse sistema e começam a apostar no sucesso do mesmo. Com isso, o avanço da esquerda, paradoxalmente, passa a depender das glórias do capitalismo. Ela esperava conseguir conciliar os seus posicionamentos econômicos, com aqueles que eram, tradicionalmente, associados à direita, abraçando uma política econômica ortodoxa e políticas sociais progressistas. Como disse Criolo, “o anzol da direita fez a esquerda virar peixe”.
O Estado burguês, nesse contexto, assume um papel primordial de administração da economia. Além da sua tradicional função repressiva, inerente à sua condição de dominação, o aparelho estatal assume a responsabilidade de promover todas as ações necessárias para impulsionar o desenvolvimento do sistema capitalista. Tais promoções se dão não só no que tange à economia, como também na formação de uma cultura histórica que leve as pessoas à apoiarem e à defenderem esse sistema. Assim, quaisquer rebeliões, greves, manifestações, são imediatamente absorvidas pelo Estado através de projetos de reformas que, supostamente, atenderiam às pautas reivindicadas.
Acrescente-se a isso toda força-tarefa formada pelos meios de comunicações que promoveu uma intensa campanha, através de materiais em revistas, jornais e telejornais, filmes, rádios, etc. Assim, nas telas de todos os tamanhos, nos rádios de todos os lugares e frequências, nos jornais e revistas de todos os cantos, formou-se uma vasta maquinaria de manipulação ideológica para convencer o trabalhador sobre as benesses capitalistas, transforma-lo em um consumidor e, progressivamente, integra-lo à sociedade capitalista.
Paralelamente, parcelas consideráveis de valor são distribuídas por políticas sociais nos Estados Unidos e Europa. Essas políticas criam uma ilusão de um “Estado social”. Tal ilusão ancorou a crença da esquerda de que a renda seria progressivamente transferida do capital para o trabalho. Em “O capitalismo tardio”, Ernest Mandel afirma que as expectativas ilusórias sobre a possível “socialização através da redistribuição” no fim das contas seriam apenas os primeiros passos de um “reformismo cujo fim lógico é um programa completo para a estabilização efetiva da economia capitalista e de seus níveis de lucro”. O desenvolvimento do capitalismo através do Estado se dá através da reconstituição e manutenção da força de trabalho via políticas sociais, além das desonerações fiscais para empresas, investimentos estatais em infra-estrutura e novas tecnologias, etc.
O grande papel assumido pelo aparelho estatal criou entre os capitalistas a necessidade de eles exercerem influência sobre as decisões do Estado. Passam, então, a promover grupos de pressão (lobbies) para atuarem diretamente sobre os altos escalões dos governos, de modo a assegurarem que, para os governantes, os interesses do capital estariam sempre em primeiro lugar. Progressivamente, afirma Mandel, isso processa a “reprivatização não oficial, por assim dizer, da articulação dos interesses de classe da burguesia”.
Esse cenário realinha-se na primeira metade da década de 70, quando, pela primeira vez desde os anos 40, uma grave recessão econômica atingiu simultaneamente todos os países imperialistas. Tratava-se de uma crise que não teria fim – o que István Mészáros chamará de a “crise estrutural do capital”.
O fenômeno possui grande relevância em si mesmo, promovendo transformações no sistema capitalista, no papel do Estado e induziu a esquerda a promover um novo revisionismo para se adaptar as novas mudanças. Pode-se dizer que o ápice da crise estrutural se deu na grande depressão de 2008 que assolou o Estados Unidos e o mundo.
Diante disso, a partir dos anos de 1970, uma série de estudos e uma intensa campanha – especialmente a partir dos anos 80 – apresentavam um novo espectro de políticas e reformas econômicas, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado. Fica conhecido como “neoliberalismo” esse arcabouçou programático e teórico político-econômico que se formou a partir do ressurgimento e ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da mão-invisível.
Eurelino Coelho em “Uma esquerda para o capital”¸ livro que inspirou este artigo, afirma que a crise do capitalismo ocorrida na década de 70 abre as portas para “um período em que as crises cíclicas se tornaram mais intensas e longas e as retomadas, mais débeis e curtas. A acumulação capitalista não se interrompeu, evidentemente, mas não retornou aos patamares históricos anteriores”. Vimos novas ondas da crise desse sistema nos anos 80, no início dos anos 2000 e, principalmente, em 2008. Diante disso, os governos socialdemocratas, trabalhistas, de esquerda, ou de direita e centro-direita, promovem privatizações, buscam manter equilíbrios fiscais e somam esforços para reduzirem os investimentos em programas de bem-estar social.
No final do século XX, entretanto, foi ficando cada vez mais evidente que as novas políticas e reformas neoliberais e as constantes crises diminuíram drasticamente a participação dos salários na renda nacional, restringiram os investimentos sociais, promoveram a concentração de capital e renda entre poucos grupos e reduziram a qualidade de vida e segurança do trabalhador. Não é de se espantar, diante disso, que a esquerda europeia venha sofrendo derrotas eleitorais sucessivas, principalmente depois de 2001. E uma onda ultraconservadora e conservadora em reação a esse grande decréscimo do poder de consumo e da qualidade de vida das classes médias, aliadas as sucessivas crises econômicas, estejam varrendo a Europa e os Estados Unidos.
Na América Latina essa onda demorou um pouco mais para chegar. Enquanto nos países ricos a esquerda perdia espaço para a direita e ultradireita, no continente latino-americano a esquerda vivia anos dourados no início dos anos 2000. Como Fiori aponta, na virada para o novo milênio ocorreu uma inflexão sincrônica na América Latina, promovendo nos governos de vários países do continente uma virada democrática e à esquerda. Essa conquista político-eleitoral, sem precedentes na história latino-americana, colocou a esquerda frente ao desafio de governar democraticamente.
Se non è vero, è bene trovato que a ascensão da esquerda no início do século XXI é, entre outras razões, efeito da derrocada das reformas neoliberais impostas à América Latina pelos Estados Unidos no final da década de 1990. Essas reformas foram implementadas nos países latino-americanos através do receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, o qual promoveu a abertura, desregulação e privatização de suas economias nacionais, ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos e apresentou-se no fim dos anos 90 como incapaz de superar os problemas estruturais desses países, apesar de em alguns o processo inflacionário ter sido controlado.
Na Europa essas reformas foram promovidas por governos à esquerda, enquanto que América Latina aconteceu o contrário: era a direita que nela estava no comando dos governos e foi a responsável pela promoção do neoliberalismo em seus países. Como aconteceu no restante do planeta, as reformas intensificaram a instabilidade econômica e detonaram as lutas sociais no continente latino-americano. Isso acarretou em turbulências nos governos neoliberais no fim dos anos 90 e no início dos anos 2000. Em meio à essa deterioração da vida, cria-se uma consciência muito nítida de que é preciso mudar o governo para transcender a crise. Isso culminou num terreno propício para a guinada à esquerda na América Latina.
A chegada da esquerda no comando do Brasil, El Salvador, Guatemala, Paraguay, Perú, Uruguay, Argentina, Bolívia, Equador, Nicarágua, Venezuela, no início do novo milénio, é conquista do povo que ansiou e lutou por essa mudança.
Essa chegada ao poder de partidos, movimentos e lideranças de esquerda e progressistas nos países latino-americanos ficou conhecida como “onda rosa” e “maré rosa”. O termo “onda rosa” é inspirado na ascensão de partidos de centro-esquerda europeus ao poder na segunda metade dos anos 1990 e vale em ser adotado por seu carácter provocativo, dado que as políticas promovidas pelos governos de esquerda na América Latina não tiveram a radicalidade dos discursos antes proferidos pelos seus atores.
As características desses governos apresentam matizes variados de acordo com o tema avaliado e com o governo. Em linhas gerais, pode-se dizer que esses governos redefiniram o papel da atuação estatal em termos de intervenção na vida dos países, regulando e complementando o mercado. Nesse processo, introduziram reformas em diversas áreas, mas não na direção da superação do sistema econômico-social capitalista. Não promovem uma ruptura radical, e sim graduais processos de reforma, caracterizando, assim, seus governos como “reformistas”, ou “reformistas fracos”.
Uma década e meia depois, estamos assistindo, boquiabertos, esses governos de esquerda na América Latina serem derrubados um a um. Ensaiaram uma nova era, mas não a alcançaram. E agora estão em crise assim como a esquerda europeia.
Como não conseguiu oferecer uma alternativa econômica e política crível e efetiva, tudo o que restou à grande parte da esquerda latino-americana e europeia foi dar ênfase em suas políticas de reconhecimento da identidade. Cada vez mais aparentam ter a oferecer à população somente a defesa da humanização do sistema capitalista através do reconhecimento identitário. Reforço que essas questões ligadas à identidade são importantes, inegociáveis e devem estar presentes, mas a esquerda entrou num modelo muito ruim de utilizar essas questões como tudo o que ela tem a oferecer e deixou de buscar soluções claras e reais para outros problemas que a população enfrenta, como o desemprego estrutural.
O mais curioso é que a direita e centro direita também estão em crise, pois, assim como boa parte da esquerda que esteve ou está no poder, a direita defende com ênfases diversas a manutenção do sistema. Isso se deve ao fato de que, desde o engessamento das instituições e a intensificação da desigualdade ocorrida a partir da crise de 2008, para a população, os grupos políticos, sejam de esquerda ou direita, são considerados como “farinha do mesmo saco”. Diante dessa conjuntura de demonização da política e das instituições, a população mundial passa a rejeitar profundamente quaisquer grupos ou pessoas, independentemente se são de esquerda ou não, que de algum modo não incorporem esse teor anti-institucional tão difundido nas vítimas da crise. Concomitantemente, grupos de extrema-direita, fascistas, que perpetram um discurso anti o sistema político institucional e em defesa da “ordem”, passam a crescer consideravelmente. Apesar de no discurso se posicionarem contra o sistema político-institucional, figuras como Bolsonaro e cia, ligados à extrema-direita, estão atreladas ao ideal de um Estado forte e repressor. Estão, assim, enganando a população, vendendo gato por lebre não só no sentido de que as coisas melhorarão com as suas propostas, mas também por mentirem que são contra o sistema político-institucional; são contra esse sistema ao modus burguês, pois querem a intensificação da repressão, ao modo de uma Ditadura, como vimos com Mussolini, Hitler, Stalin.
Vimos isso na última eleição para presidente nos Estados Unidos. Parte da esquerda, setores progressistas e a centro-direita taxavam o atual presidente Donald Trump como sexista, racista, misógino, homofóbico etc. De fato ele é sexista, racista, misógino, homofóbico e muito mais. E deve ser julgado e condenado por isso. O problema é que, enquanto a oposição atacava Trump, ele fez o inacreditável: ao mesmo tempo em que era financiado pela elite financista e rentista estadunidense – o establishment –, Trump denunciava essa mesma elite política e a elite midiática por esquecimento das “pessoas comuns”, conquistando o apoio destas mesmas pessoas.
Fenômenos como Trump serão a regra daqui por diante. No Brasil temos uma versão disso: Jair Bolsonaro, um político tão violento e desrespeitoso dos direitos humanos que uma publicação australiana o elegeu como o político mais abominável do mundo. Entretanto, ingênuo aquele que pensa que todos os podres bisonhos do Bolsonaro, que ultimamente têm sido jogados pela grande mídia e que, é provável, serão ainda mais jogados nas eleições presidenciais, comoverão de algum modo aqueles que se consumou chamar de “povo”.
Vale lembrar o que aconteceu nas eleições municipais no Rio. Quando a grande mídia, principalmente a Rede Globo, deu-se conta de que Marcelo Crivella teria chance de se tornar prefeito de uma das maiores cidades do país, o que ela fez? Atacou radicalmente o pastor, mesmo não apoiando o outro candidato, o psolista Marcelo Freixo. Mas, enquanto a Globo e grupos de esquerda atacavam Crivella, a igreja neopentecostal dele e o seu partido estavam nas periferias e nas periferias das periferias conquistando apoio popular.
Pois bem, enquanto a transformação efetiva que esquerda aparenta ter a oferecer à sociedade são as políticas de reconhecimento da identidade, aliadas a um programa sócio-econômico de manutenção do sistema capitalista via socialdemocracia, a nova direita conquista cada vez mais espaço no Brasil e no Mundo.
Essa nova direita, a qual muitas vezes beira o fascismo, cresce a cada dia porque incorpora uma demanda anti-institucional que percorre de alto a baixo a população mundial. Chegou-se ao momento em que as pessoas não acreditam mais nas suas próprias instituições. E elas têm todas as razões para isso, já que as nossas instituições não conseguem mais responder às demandas populares. Consequentemente, essas demandas se encarnam muito bem em um indivíduo, partido, processo ou grupo que consegue expressar claramente a crise de representação. Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, Le Pen na França, entre muitos outros, fazem muito bem isso. Figuras como essas serão cada vez mais frequentes daqui pela frente, já que, em momentos de esvaziamento das perspectivas como esse, figuras consideradas “fortes”, que falam grosso contra o sistema político-institucional e que pregam discursos pragmáticos e de apelo à ordem, são recebidos pelas vítimas da crise como verdadeiros “paladinos salvadores da pátria”.
Nesse sentido, trata-se de um movimento neofascista, pois, diferente das vertentes anteriores que chegaram, no Brasil, a dar um golpe em 1964, figuras como Bolsonaro e Trump supostamente preocupam-se com a “opinião popular”. Isso acontece porque, para ocuparem o alto escalão do poder, precisam vencer eleições – ao menos por enquanto –, diferentemente de seus antecessores que invadiam o Planalto com tanques, fardas e outras armas.
Não é à toa que em São Paulo João Dória (PSDB), alguém que até pouco antes das eleições era um completo desconhecido no mundo da política, tenha recebido tanto apoio popular e de forma tão rápida. “Eu não sou político, não”, dizia Dória sempre que podia. Venceu por adotar um discurso que supostamente o esterilizava da política se auto-afirmando como um gestor, apesar de estar numa eleição política, pertencer a um partido político e ter conquistado um cargo político. Dória não está atrelado ao fascismo, mas incorpora o teor anti-institucional presente na nova direita.
Está ligado a esse fenômeno o fato de a insatisfação com a deficiência das instituições e com a corrupção impregnada ao sistema, além do descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, serem canalizados pela Lava-Jato. É difícil definir o que é essa operação, haja vista a sua proporção. Entretanto, nesse emaranhado é possível perceber uma espécie de vetor-chave, como o filósofo Marcos Nobre apontou em uma interessante entrevista à Agência Pública. Como sempre muito lúcido, ele afirmou que é uma característica da Lava Jato desestabilizar permanentemente o sistema político, pois a operação também se tornou uma válvula de escape para uma rejeição generalizada do sistema político-institucional.
Outro exemplo de grupo que se apropria da insatisfação com o sistema institucional e da demonização da política é o movimento chamado “Escola Sem Partido”. Não seria necessária uma lupa para constatar que esse movimento é um flerte com a estupidez e que expele muita fumaça no ar, expelida pela sociedade civil, em parte ingenuamente, quase sem entender o que está defendendo; e expelida principalmente por gente que sabe o que faz e que se beneficia, se protege e se legitima mediante o poder. Esta gente oportunista está se aproveitando do clima de descontentamento com as instituições e com a política para espalhar os seus tentáculos pela educação, no intuito de reconstruí-la de formas perniciosas. É nesse compasso que segue o ‘Escola Sem Partido’, projeto de autoria do deputado Izalci (PSDB-DF) para impedir a profusão do debate dentro da sala de aula em todo o país e que está sendo implementado via Câmaras Municipais em diversas cidades, já que não passou no Congresso.
Um exemplo de processo que é efeito do fenômeno de crise de representação foram as manifestações pós-crise de 2008: “Ocupe Wall Street” nos Estados Unidos, “Indignados” na Europa, “Primavera Árabe” no Oriente e Norte da África, manifestações de Junho de 2013 no Brasil, entre muitos outros exemplos, são acontecimentos em que os ativistas culpavam os governos e as instituições financeiras pelo crescimento das taxas de desemprego e da desigualdade em países atingidos pela crise de 2008.
Na época das manifestações de junho no Brasil, manifestantes com bandeiras de partidos, ou de movimentos sociais tradicionais, como a CUT ou MST, foram muitas vezes expulsos dos atos. Em todos os casos, as demandas que permearam as manifestações permanecem em aberto e sem comunicação institucional.
Em certo sentido, fico aliviado em ver que vivemos uma crise de representação, já que as demandas que permearam as manifestações permanecem em aberto e sem comunicação institucional. Além disso, seria preocupante se as pessoas estivessem satisfeitas com um sistema político-institucional que respira para manter intacto o pacto conservador, ao invés de formular projetos que possam de fato solucionar os problemas dos municípios, dos Estados e da União; e seria ainda mais preocupante caso as pessoas se sentissem representadas por um Congresso que mais parece um sindicato de ladrões e por um ato falho ambulante que ocupa a cadeira de presidente da república — e que precisaria melhorar muito para se tornar uma versão barata do Nosferatu.
Mas, não é legítimo que a crise de representação seja justificava para a adesão à movimentos que, muitas vezes, beiram o fascismo, como é o caso dos seguidores de Bolsonaro. E se trata de um grande movimento oportunista os fascistas e a extrema-direita se aproveitarem da dor das pessoas para aparelha-las em nome de um futuro que será muito pior do que o presente. Não queremos viver em mundo pautado pela devoção a um líder forte e pela ênfase em ultranacionalismo, etnocentrismo, militarismo e contra os Direitos Humanos. Não estamos satisfeitos com a sociedade atual; e muitos companheiros têm sido assassinados pelos antagonismos sociais e por seus posicionamentos. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que a via fascista não é o caminho. Por tudo isso e muito mais nos manifestamos contra Bolsonaro, Trump, entre outros oportunistas de plantão.
Para além disso, acho que a esquerda, caso queira sair da periferia das lutas e encontrar uma saída para a crise política, econômica, social e moral que sedimenta a nossa época, primeiro precisa transcender a melancolia e se entender como capaz de oferecer algo a mais. Ela precisa se perguntar a sua razão de existir. A esquerda existe para ser tão parecida com a direita, ou para oferecer algo novo? É preciso fazer esse questionamento.
Acima de tudo, a esquerda precisa voltar a se entender como capaz de tentar o que hoje é considerado impossível. A classe dominante quer que as pessoas olhem para si mesmas e se vejam como finitas, incapazes, limitadas aos problemas do presente. Querem que pensemos assim porque pessoas que dessa forma pensam são muito mais fáceis de serem governadas. É dessa forma que o poder age sobre nós – nos melancolizando. Afinal, é muito fácil controlar pessoas que acreditam unicamente na sua própria impotência. Mas, não podemos mais cair nas armadilhas da moral da finitude e limitar as potencialidades da criação humana aos limites do nosso tempo.
Quando falo esse tipo de coisa, muitas vezes sou taxado de moleque nefelibata, piá de bosta radical, ingênuo, porra-loca, revolucionário de boteco, ou coisa pior, mas eu digo uma outra coisa: tudo o que construímos ao longo da história da humanidade e que realmente valeu a pena um dia foi considerado impossível e impensável.
2 comentários em “Uma esquerda para o capital”
Sensacional o texto, muito bom mesmo. Queria fazer um questionamento a parte. To trabalhando com uma tese de que a Ditadura no Brasil teve profundo impacto no deslocamento do discurso da esquerda revolucionário para o pragmatismo, o que você pensa sobre isso?
A abordagem desse texto sobre a esquerda, toca realmente em pontos essenciais para que todos reflitamos.
Vai muito de encontro ao que tem me atravessado como caminho crítico e de discussão dentro das leituras que tenho feito sobre o contexto político atual.
Ao longo do texto muitas passagens me lembraram o livro “A esquerda que não teme dizer seu nome” de Vladimir Safatle, como também a entrevista que ele deu no programa “Quem somos nós?” dentro da série chamada “Nova direita” (disponível no YouTube). Entre outras coisas, o texto é muito próxima ao que diz Safatle sobre o questionamento do uso da noção de identidade como única coisa que a esquerda tem oferecer para mascarar sua incapacidade de enfrentar questões mais estruturantes.