Por Slavoj Zizek, via RT, traduzido por Rodrigo Gonsalves
Donald Trump não deveria receber o prêmio Nobel da Paz. Mas será que ele vai? Os franceses têm uma bela expressão, “voyons voir”, que pode ser traduzida a grosso modo como “vamos esperar e ver o que acontece”.
Quatro presidentes dos EUA já receberam o Prêmio Nobel da Paz: Theodore Roosevelt, Woodrow Wilson, Jimmy Carter (após deixar o cargo) e Barack Obama em 2009 por seus “extraordinários esforços em fortalecer a diplomacia internacional e a cooperação entre as pessoas“. Agora, essa explicação era uma completamente farsesca, e expressava apenas a esperança de que Obama agisse dessa maneira de lá para frente.
Por mais inacreditável que seja a proposta de Trump receber o Prêmio Nobel da Paz, devemos, no entanto, reagir a ela de três maneiras.
Em primeiro lugar, devemos ter em mente que o grande compromisso que possibilitou o avanço rumo a uma solução pacífica da crise coreana, foi feito não por Trump, mas sim por Kim Jong-un. Foi Kim quem fez a concessão chave, o que significa que qualquer prêmio deveria ser direcionado ao par em conjunto. E a fraqueza dessa idéia é óbvia – seria ridículo entregar o Prêmio Nobel da Paz ao líder do que é provavelmente o regime mais opressivo do mundo.
Em segundo lugar, lembrem-se de que, há pouco tempo atrás, Trump estava competindo com Kim acerca dos botões para acionar mísseis nucleares que eles têm à disposição, com o americano afirmando que seu botão é maior do que o da contrapartida de Pyongyang.
Sendo assim, as oscilações extremas na percepção pública acerca da crise coreana são significativas. Em uma semana, nos dizem que estamos à beira de uma guerra nuclear; então há uma semana de descanso, daí a ameaça de guerra explode novamente.
Vibrações diferentes
Quando visitei Seul em agosto de 2017, meus amigos me disseram que não havia uma ameaça séria de uma guerra porque o regime norte-coreano sabia que não poderia sobreviver. No entanto, as autoridades sul-coreanas por vezes prepararam sua população para uma guerra nuclear.
E, recentemente, nossa mídia relatou a troca cada vez mais ridícula de insultos entre Kim Jong-un e Donald Trump. Mas a ironia da situação é que, quando temos (o que parece ser o caso) dois homens imaturos soltando a sua raiva e lançando insultos um ao outro, nossa única esperança é que haja alguma restrição institucional anônima e invisível que impeça sua fúria de explodir em uma guerra completa.
Geralmente, tendemos a reclamar que na política alienada e burocratizada de hoje em dia, as pressões e restrições institucionais impedem que os políticos expressem suas visões pessoais. Mas, neste caso, esperamos que tais restrições impeçam a expressão de visões pessoais muito amalucadas.
Sendo assim, deveriam Donald e Kim serem recompensados por simplesmente realizarem uma meia-volta repentina e não agirem como loucos, da maneira como temíamos?
Em terceiro lugar, a verdade desagradável (para os liberais esquerdistas) é que, longe de ser apenas o líder belicoso dos EUA, Trump não se saiu tão mal em comparação com Hillary Clinton.
De fato, quando a atriz Susan Sarandon foi questionada pelo The Guardian se ela realmente acredita que Clinton seria mais perigosa do que Trump, a mesma respondeu: “Eu acho que ela era muito, muito perigosa. Nós ainda estaríamos praticando fracking, estaríamos em guerra [se ela fosse presidente]. Não seria muito mais suave.
“Veja o que aconteceu sob a administração Obama que nós não percebemos. Ela teria feito da maneira como Obama fez, que foi sorrateiramente. Ele deportou mais pessoas do que deportamos recentemente. Como ele conseguiu o Prêmio Nobel da Paz, eu não sei,” ela acrescentou.
Por certo, devemos sempre ter em mente que, no pior dos cenários, Trump está apenas continuando a política de seus predecessores.
Escapando por um triz
Quem, então, realmente merece um Prêmio Nobel da Paz? Provavelmente, são aqueles que, com certeza, jamais os receberão. Tente re-lembrar de um detalhe assustador da crise dos mísseis cubanos: quando só mais tarde soubemos o quão perto da guerra nuclear estávamos durante uma batalha naval entre um destróier americano e um submarino soviético B-59 de Cuba em 27 de outubro de 1962.
O destróier lança mísseis de profundidade para perto do submarino para tentar forçá-lo à superfície, sem saber que este possuía um torpedo com pontas nucleares. Vadim Orlov, membro da tripulação do submarino, disse na conferência em Havana que o submarino tinha autorização para disparar caso três oficiais concordassem. Os oficiais começaram um debate feroz sobre afundar ou não o navio. Dois deles disseram que sim e o outro, disse não.
“Um cara chamado Arkhipov salvou o mundo“, foi um comentário amargo[1] de um historiador sobre o acidente.
Não contamos, todos nós, silenciosamente, com algo similar na troca acalorada entre os EUA e todos os outros – que, em um momento decisivo, um único indivíduo encontrará forças para interromper o louco círculo de ameaças nucleares e as contra-ameaças?
Um ato similar, muito menos conhecido, também foi cometido na União Soviética em tempos ainda mais sombrios. Sophia Karpai era a chefe da unidade cardiográfica do Hospital do Kremlin no final da década de 1940. Seu infortúnio (acidental) foi que era o seu trabalho realizar duas vezes o eletrocardiograma de Andrei Zhdanov, em 25 de julho de 1948 e em 31 de julho, dias antes da morte de Zhdanov, devido a uma parada cardíaca.
O primeiro eletrocardiograma, tomado depois de Zhdanov demonstrar alguns problemas cardíacos, foi inconclusivo (um ataque cardíaco não pôde ser confirmado ou desconfirmado), enquanto o segundo mostrou uma imagem surpreendentemente muito melhor (o bloqueio intraventricular desapareceu, uma indicação clara de que não havia um ataque cardíaco).
A trama da doutora
Em 1951, ela foi presa sob acusações de que, supostamente, em uma conspiração com outros médicos que tratavam de Zhdanov, ela falsificou os dados, apagando as claras indicações de que um ataque cardíaco ocorreu, privando assim Zhdanov dos cuidados especiais necessários para uma vítima de parada cardíaca. Depois de um tratamento duro, incluindo uma surra brutal, todos os outros médicos acusados confessaram. “Sophia Karpai, que seu chefe médico, Vinogradov, descreveu como nada mais do que “uma pessoa típica da rua com uma moral pequeno burguesa”, foi mantida em uma cela refrigerada, sem dormir para forçar uma confissão. No entanto, ela não confessou.” (Jonathan Brent e Vladimir P. Naumov, Last Crime de Stalin, Nova York: HarperCollins 2003, p. 307) E o impacto e a importância de sua perseverança não podem ser superestimados: sua assinatura teria pingado o ‘i’ no caso do promotor na “trama da doutora”, pondo imediatamente em movimento o mecanismo que, uma vez rolando, levaria à morte de centenas de milhares, talvez até mesmo a uma nova guerra européia (segundo o plano de Stalin, a “trama da doutora” deveria ter demonstrado que a agências de inteligência tentaram assassinar os principais líderes soviéticos e, assim, serviram como desculpa para atacar a Europa Ocidental).
Ela persistiu o tempo suficiente para que Stalin entrasse em seu coma final, depois disto todo o caso foi imediatamente descartado. E seu simples heroísmo foi crucial na série de detalhes que, “como grãos de areia nas engrenagens da enorme máquina que havia sido posta em movimento, impediu mais uma catástrofe na sociedade soviética e na política em geral, e salvou a vida de centenas, se não de milhares, de pessoas inocentes“. (Op.cit., P. 297)
Esta simples persistência contra todas as probabilidades é, em última análise, a coisa do que verdadeiros heróis são feitos. Aprendemos sobre esses casos apenas às vezes e apenas anos depois do ocorrido. Então, se há uma justiça mínima em quem recebe o Prêmio Nobel da Paz, ele não deve ser dado a políticos ativos por seus atos no presente (ou seja, por não ser tão brutal quanto se espera que eles sejam) nem a políticos em nome do que se espera de seus atos futuros; o prêmio deveria ser dado retroativamente a heróis sem nome como Arkhipov e Karpai.