Por Camila Carolina Hildebrand Galetti[1]
Publicado na língua inglesa em 2004 e apenas no ano passado em português, pela editora Elefante, o livro Calibã e a bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva se propõe analisar os desdobramentos capitalistas sob uma perspectiva feminista. Considera o conceito de acumulação primitiva – funcional no pensamento marxista, porém, fazendo a crítica à análise de Marx, que partiu do ponto de vista do proletariado assalariado do sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadoria.
A autora baseia-se nas teorias marxistas, nas teorias feministas e na teoria foucaultiana para redefinir categorias históricas das estruturas que, segundo Federici, ficam ocultas nas discussões de dominação e exploração.
O título é inspirado na peça A tempestade, de Shakespeare, e reflete o desejo de repensar o desenvolvimento do capitalismo, resgatando as raízes da exploração social e econômica das mulheres. Bem como, a autora Silvia Federici analisa a caça às bruxas do século XVI e XVII, revisitando o modo como a história das mulheres se entrecruza com a história do desenvolvimento capitalista (p.44). Ressalta-se, assim, que não se pode compreender tal história se preocupando apenas com os terrenos clássicos da luta de classes, mas sim, dando visibilidade ao desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho, divisão esta que potencializou a desvalorização das mulheres.
A historiadora italiana pontua, desde o início de sua análise, o quão raramente apareceu na história do proletariado a caça as bruxas, e tal ausência invisibiliza a força e resistência das mulheres no processo de consolidação do capitalismo na Europa, e como a tal caça nivelou o terreno para a construção de uma nova ordem patriarcal baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens. Da mesma forma, essa caçada foi uma ferramenta singular para consolidar uma “ordem” sexual. Ora, uma das condições para o desenvolvimento do capitalismo foi o processo que Foucault definiu como “disciplinamento do corpo”, que para Federici consistia em uma tentativa do Estado e da Igreja de transformar as potencialidades dos indivíduos em força de trabalho.
Essa conjuntura de perseguição e consolidação de uma possível ordem sexual evidencia que o preço da resistência era sempre o extermínio. A violência foi o fio condutor: nas palavras da autora, “a violência foi a principal alavanca, o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva” (p. 121), afetando brutal e diretamente as mulheres e sua autonomia.
No que tange a aplicação da violência sob as mulheres, cabe ressaltar a questão da mobilidade, pois essas tinham a mobilidade reduzida, principalmente quando os vilarejos se desintegraram e muitas pessoas passaram a vagar pelas ruas: para as mulheres era muito mais difícil tornarem-se “vagabundas” ou trabalhadoras imigrantes, como ressalta Federici, pois uma vida nômade as expunha ainda mais à violência masculina (p. 144). Essa dificuldade também se deu pela redução da mulher ao espaço privado, aos afazeres domésticos, cuidado dos filhos, marido… A dicotomia espaço público versus privado reduzia sua mobilidade. Isso sobretudo no período dos cercamentos[2], pois, assim que houve a privatização da terra e começou-se a consolidar as relações monetárias, a dificuldade por parte das mulheres de se sustentarem piorou bem mais se comparadas aos os homens.
Nesse novo regime monetário, o trabalho realizado no âmbito doméstico foi invisibilizado, sendo intensificada a naturalização do trabalho reprodutivo às mulheres, como se fosse uma vocação, ou exclusivamente um “trabalho de mulheres”. Com o surgimento do Estado, por outro lado, foi reforçado esse como supervisor da reprodução da força de trabalho; já no âmbito privado, o marido tornou-se o representante do Estado, controlando de forma mais estrita a conduta das mulheres.
Foi dada, enfim, uma nova importância à família como “instituição-chave que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho” (p. 173), acompanhada por uma constante intervenção do Estado nessa instituição, no que diz respeito à supervisão da sexualidade, da procriação e da vida familiar.
Nesse contexto, o corpo torna-se fundamental para a discussão, pois o corpo da mulher é fronteira na qual o capital se apropria e avança; é condição de existência de força de trabalho. Nesse sentido, a tentativa de sintetização do corpo com ao conceito de acumulação primitiva é relevante, pois essa foi, sobretudo, uma acumulação de desigualdades, diferenças, hierarquias, divisões. (p.232)
Porém, que corpo é esse? Por que o corpo foi tão relevante para a política estatal? A autora pontua que Marx fala da alienação do corpo nas relações de trabalho, como traço distintivo da relação entre capitalista e trabalhador. Isso porque, ao transformar o trabalho em mercadoria, o capitalista faz com que os trabalhadores subordinem sua atividade a uma ordem externa, sobre a qual não têm controle e com a qual não podem se identificar (p. 243). Além disso, tal processo conduz a uma dissociação com relação ao corpo, o corpo proletário vira capital (vivo). Pode-se afirmar, assim, que a primeira máquina desenvolvida pelo capitalismo foi o corpo humano e não a máquina a vapor, nem tampouco o relógio: o corpo se tornou o centro do debate à época, e principalmente quais artefatos seriam utilizados para controlá-lo.
A autora afirma que o corpo gerou meda para a classe dominante, o corpo feminino potencializa ainda mais esse medo, e, no nascimento do capitalismo, uma nova concepção política do corpo começou a tomar forma. Com isso, Federici retoma a filosofia de Descartes e Hobbes e seus diferentes projetos com relação à realidade corporal. É nessa especulação filosófica de ambos que se encontram as primeiras conceitualizações sobre a transformação do corpo em máquina de trabalho, o que constitui uma das principais tarefas da acumulação primitiva.
Para que houvesse a racionalização capitalista do trabalho, o corpo e as práticas que destoassem de uma norma racional deveriam ser erradicadas. Com isso a magia tornou-se rival do trabalho e da disciplina, resultando nas razões pelas quais o Estado lançou a campanha de terror contra a magia e métodos de controle social.
Cabe ressaltar sobre esse processo de enfrentamento à magia, as mulheres eram os alvos mais prováveis, pois no contexto de desigualdades, aumento dos preços, crise econômica, as mulheres eram na maioria das vezes as que dirigiam e iniciavam as revoltas. Em diversos trechos do livro, Federici ressalta que as mulheres invadiam hortas, roubavam de seus vizinhos ou mendigavam. E, caso algo de ruim acontecesse com os proprietários dessas terras ou esses vizinhos que negassem ajuda, eram tidas como bruxas. Feminilizando, assim, a pobreza e associando o feminino à prática da bruxaria, à magia. Fator que foi ignorado na historiografia e nas discussões das revoltas de classe que marcaram o século XVI.
Com isso, Federici pontua que a caça as bruxas foi o primeiro passo à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação, o que resultou também na condenação do aborto, tirando completamente o direito das mulheres de decidirem pelos seus próprios corpos, além do fato de que essa caça na Europa e na América foi um meio de desumanização, uma forma paradigmática de repressão que servia para justificar a escravidão e o genocídio e a consolidação do capitalismo.
O livro “Calibã e a bruxa” proporciona diversas entradas de discussões no que tange mulheres, corpo, racionalização do trabalho e visibilidade da história apagada da caça às bruxas. Dessa forma, avança sobre grandes e atuais preocupações de diversas teóricas feministas, como um dos grandes buracos das teorias marxistas, que é compreender os impactos das crises capitalistas (econômicas, políticas, ou ideológicas) na reprodução e no trabalho domiciliar e o quanto estas afetam propriamente as mulheres, o quanto o corpo feminino é fronteira nestes eventos.
Em linhas gerais, Silvia Federici busca fazer um feliz panorama apontando a efetividade da caça às bruxas para consolidação do capitalismo, bem como do controle do Estado sob o corpo feminino, além da desvalorização do trabalho feminino e invisibilidade do trabalho reprodutivo. Deixa ainda evidente a impossibilidade de qualquer associação do capitalismo com qualquer forma de libertação ou de atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas.
Ressaltar a omissão de Marx sobre a condição das mulheres ao conceitualizar a acumulação primitiva é de extrema relevância, pois essa acumulação diz respeito às origens históricas do trabalho assalariado, assim como à acumulação, nas mãos dos capitalistas, dos recursos necessários para empregá-los, como ressalta Harvey. Invisibilizar as mulheres ao falar dessas origens é negar o quão seus corpos foram apropriados nesse processo de consolidação do capitalismo.
Sobre a base teórica da autora, conforme citado no início desse texto, a mesma utiliza da teoria marxista, das teorias feministas e de conceitos foucaultianos. Apesar de se basear em conceitos foucaultianos como a disciplinarização do corpo, Federici critica o fato de que nos escritos de Foucault, principalmente em suas obras sobre a História da Sexualidade, o autor foca tanto no caráter “produtivo” das técnicas de poder de que o corpo foi investido. Sua análise descarta qualquer crítica das relações de poder, além de se omitir sobre a caça as bruxas e sobre o discurso a demolonogia na sua análise sobre a disciplina dos corpos.
Além disso, o título do livro faz referência ao Calibã, que é uma alegoria que representa a escravidão. O personagem shakespeariano serve ao rei Próspero, outra analogia, no caso ao sistema colonial, a colônia personificada. E, a meu ver, o corpo que a autora enxerga no decorrer de seus escritos, é apenas um corpo feminino branco, lacuna essa que poderia ser desenvolvido em seu livro. Como se articulariam a acumulação primitiva “interna” à “externa”, na metrópole e na colônia? Como os corpos de outros povos e raças entrariam na equação do capitalismo nascente? Seriam algumas perguntas a se fazer diante dessa lacuna.
Por fim, pode-se afirmar que a caça às bruxas se repete na contemporaneidade, com outras roupagens, amparada nas políticas neoliberais e no insistente controle do corpo feminino, o que faz com que a identificação das feministas com as bruxas seja ainda atual.
[1] Mestra e Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Bolsista CNPq.
[2] Entende-se aqui por cercamentos o período em que houve o processo de exclusão dos trabalhadores de seu meio de sustento, as terras produtivas, na transição do feudalismo para o capitalismo.
1 comentário em “Calibã e a bruxa: notas críticas”
Uma análise excelente da grande obra de Federici!!! Creio que as lacunas deixadas por Sílvia, como o debate sobre as mulheres negras, podem ser preenchidas por nós ao usarmos espaços como este das redes sociais para ampliarmos essa discusão tão necessária.
Sua resenha é muito importante para conhecermos e compreendermos essa obra tão fundamental para ampliar nosso conhecimento e nossa consciência.