A psicanálise sem édipo: uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan – Philippe Van Haute & Tomas Geyskens

Por Pedro Ambra[1]

Há psicanálise para além do Complexo de Édipo? Esta é a pergunta que guia as instigantes reflexões de Philippe Van Haute e Tomas Geyskens em “Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria nos trabalhos de Freud e Lacan” (Autêntica). Com a cuidadosa tradução de Mariana Pimentel Fischer, o livro chega ao Brasil num momento em que uma nova onda do feminismo, Teorias de Gênero e queer, bem como novos fenômenos clínicos parecem colocar o dogma edipiano na berlinda e, com ele, a psicanálise e sua teoria do psiquismo. Estimulante e bem argumentado — mas sem perder a clareza —, o trabalho abre novas perspectivas para a teoria e a prática psicanalíticas que se autorizem a repensar e até subverter posições consolidadas.


Os autores iniciam seu percurso por uma retomada dos primeiros escritos freudianos, demonstrando que a construção da teoria do Complexo de Édipo é relativamente tardia, mas assume um papel tão central que por vezes vem a se confundir com a própria psicanálise. Um exemplo refere-se à edição original do conhecido Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, primeira grande publicação freudiana sobre a constituição do psiquismo, na qual não há nenhuma menção ao referido complexo. Mais ainda, a estruturação tanto da sexualidade em seu sentido de práticas quanto em seu caráter identitário, parte de uma matriz denominada pelos autores como patoanalítica, na qual o que é considerado como “normal” tem a mesma estrutura do dito “patológico”. Em outras palavras, Freud defenderia que no limite toda sexualidade é perversa, no sentido em que não há um caminho pré-estabelecido entre a pulsão e seu objeto. Tal racionalidade é possível pois Freud defende que há uma bissexualidade psíquica primária, e que, no limite, somos todos homens e mulheres, gays e héteros, cis e trans. Em contraste a essa abordagem, há o chamado desenvolvimentismo edipiano, no qual os processos de subjetivação e sexuação têm um roteiro relativamente bem estabelecido, que partem de uma indeterminação polimorfa, sem lei e patológica, chegando a um estágio heterossexual, monogâmico e saudável. É precisamente a partir dessa segunda abordagem que o Édipo se torna a chave interpretativa maior da subjetividade em Freud, eclipsando outras leituras, como aquela da bissexualidade psíquica e da pulsão polimorfa.

Assim, ao sublinhar a existência de um Freud não-desenvolvimentista, os autores apresentam leituras extremamente originais e pertinentes de textos classicamente pensados a partir do Édipo, como o “Caso Dora”, densamente discutido nos capítulos 2 e 5. A histeria torna-se aí sobretudo uma demonstração da incompatibilidade entre a teoria edipiana do desenvolvimento e os problemas encontrados na clínica, posto que a centralidade de Complexo de Édipo diria respeito não à totalidade dos sujeitos, mas apenas a casos de neurose obsessiva. Não por outro motivo, Freud associa a histeria à literatura, lembrando não se tratar não de uma patologia em si, mas de uma disposição com expressões universais, para além do Édipo.

Suas teses, no entanto, não param aí. Ao retomar a interpretação feita por Lacan do complexo de Édipo, Van Haute e Geyskens mostram que mesmo se desvencilhando do desenvolvimentismo imaginário de Freud, Lacan carregaria ainda uma leitura demasiado normativa da histeria e da feminilidade. Tal compreensão só irá encontrar uma conceptualização alternativa ao final de seu ensino, onde não por acaso abandona explicitamente o Édipo, retomando (à sua maneira) as primeiras teses freudianas referentes à bissexualidade psíquica. Lacan operaria assim, em suas últimas reflexões, um retorno mais radical à Freud na medida que em que subverte o que até então poderia ser considerado sua pedra fundamental. Psicanálise sem Édipo? demonstra que levar Freud a sério é também poder usá-lo contra ele mesmo, face a desafios clínicos e teóricos de nosso tempo.


[1] Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Université Paris VII, é Professor Titular do Mestrado da Universidade Ibirapuera, Professor convidado do Departamento de Psicologia Social da USP e autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade.

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1 comentário em “A psicanálise sem édipo: uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan – Philippe Van Haute & Tomas Geyskens”

  1. Vale a pena mergulhar nesse livro. Este estudo abre portas da psicanálise que antes não pareciam possíveis de serem abertas!
    Penso ser muito válida esse tipo de discussão! Pedro Ambra é um dos autores que alimentam o movimento. Continuemos!

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