Por Daniel Santos da Silva
“O tempo não é medida, é ética”.[i]
A velocidade com que presentemente as palavras voam ao nosso redor e distorcem-se não apenas em sentido, também em conformação física (a “gramática” de emoticons consegue ser tão profunda quanto hilária), tem exigido adaptações estruturais na forma como comunicamos o saber, mas também tem mexido com a paciência requerida para que a experiência se torne conhecimento e sirva ao presente e ao futuro; em consequência, quer-se mais ansiosamente prognosticar o devir próximo, e em diversos terrenos fazer contornos estratégicos de ataque e defesa que possam ser praticados amanhã; é uma exigência maior que a boa paciência individual e não pode ser simplesmente desprezada – socialmente, a velocidade com que muitos somos violentados hoje é supersônica, caem mais direitos apenas em um país como o nosso que abelhas em todo o globo aquecido, os ritmos dos combates se modificaram.
Entretanto, essa pressa (re)ativa embaça a vista tanto para trás como para frente, é como caminhar de óculos na chuva sem tecido seco que nos auxilie. Sem esse lenço, seguimos na caminhada e arriscamos a cada passo esbarrões e buracos imprevistos, apenas não queremos parar. E nem devemos, entenda-se. Alguns agem como apostadores que creem ter um método efetivo de adequação das previsões aos verdadeiros resultados que logo ocorrerão – contudo o pensar ainda provoca experimentação e requer coragem. Nunca se errou tanto como agora em prever o desdobrar-se dos acontecimentos sociais e políticos dos dias seguintes, todavia peca mais quem deixa de arriscar-se a expressar suas ideias do quem banaliza toda forma de expressão aderindo à superficialidade do dito pelo dito, do vagar vazio que tenta propagar, por exemplo, a sensação de avanço e de estabilidade – assim como de segurança diante da guerra que tem se tornado o presente -, enquanto são aplicadas às populações castigos pelo que de fato nunca fizeram. Há, de um lado, promessa; de outro, a cobrança de uma dívida ancestral.
Até o momento, pelo menos, nem toda profundidade foi destruída pela adesão ao superficial, e podemos até afirmar que tal aderência fácil e perigosa pode ser combatida, que a superficialidade não passa de uma tábua de salvação que nos lançam para que apenas não nos afoguemos; mesmo assim… resta uma sensação de que a profundidade é que pode ser a ilusão, de que estamos à beira e basta tocar o pé no chão: tudo está no raso. Essa sensação, porém, dá-se mais na solidão que é empurrada à força (do medo) para dentro de nossas entranhas; quando a construção do coletivo traz consigo a mutação do tempo individual em solidão, o aprofundar-se na vida torna-se contraproducente, o que importa e determina é a competição com o outro, e é isso que estamos aprendendo desde os primeiros anos da escola e desde as primeiras experiências.
Trazemos dessa época de primeiros passos o canibalismo forçado e amarras que são difíceis de desatar, medo e esperança prendem cada paixão uma perna; “estudamos” por um futuro, fazemo-lo aprendendo a temer o tempo, aos outros e a nós próprios. Como o tempo mescla-se ao temor – e em tempos como os nossos, a esperança cai e o temor cresce -, as disciplinas que envolvem tal matéria (tempo) e seu aprofundamento são manipuladas para esvaziarem-se daquilo que de fato importa do ponto de vista do conhecimento: o entranhamento afetivo com o que constitui os pedaços de nossas vidas – impedindo-nos, assim, de uni-los em movimento, forçando-nos a enxergar o próprio tempo paralisadamente, fazendo-nos esquecer inclusive de nossa finitude (e esquecer a morte é paralisar a vida), fazendo-nos crer em uma noção de infinitude das mais perversas, pois que acaba esgotando aos que virão a matéria de que a vida se alimenta – oxigênio, encontros reais e os afetos que daí derivam.
E mais uma vez há um cerco geral que busca comprimir o tempo da experiência e os tempos das coletividades em minúsculos átomos de personalidade(s), de imediatidades, provocando confusão perceptiva e conceitual entre autodeterminação e esvaziamento da singularidade – mesmo que cada um à sua maneira, há uma lógica que pesa sobre todos e nos inclina à concorrência, que nos impõe certo medo de ficar para trás, que nos põe as vestes de uma microempresa e tudo o que isso acarreta. Esse ataque explícito e violento às singularidades tem sido tragado com o aroma da reforma – previdência, trabalho e a que mais chama a atenção pelo perigo de morte que acarreta, educação. Fosse o caso de termos de lidar, de novo, apenas com a saída de disciplinas fundantes como filosofia e sociologia, o ataque seria menos frontal. O que está sendo pensado por trás do termo educação, agora, é a possibilidade mesma de minimizar o singular, perverter experiência em autoinvestimento, reduzindo infinitamente, ainda, a capacidade de sermos afetados das formas mais plurais. Toma a frente, em nossos sentimentos mais cotidianos, o medo.
Em outras palavras, afirmo que o atual ataque à educação passa por retirar do espaço – político – curricular disciplinas importantes que tratam do conhecimento, sugando a substância daquelas que tratam do tempo; assim, retirar sociologia, filosofia, educação física e artes da estrutura curricular deixa a história isolada e presa a falsas linearidades temporais; também implica pendurar disciplinas como matemática e física, química e geografia, no teto das simples formalidades, bem dirigidas pelos interesses “flexibilizantes” do mercado. A própria ideia de educação é ainda mais manchada com tais violências reformadoras. Os que defendem e assumem o direcionamento da reforma educacional são aqueles que sempre foram inimigos do viver livre, aqueles que receberam junto à sua herança monetária a crença de que liberdade é privilégio.
Há algo novo, um golpe a mais, entretanto. Tomando o tempo necessário para isto, diversos pensamentos têm destrinchado a novidade das técnicas contemporâneas de domínio, muitos deles seguindo a arqueologia foucaultiana do poder em todas as esferas da vida. Há algo de novo, sim. Pois o desejo de ser livre não está agora primordialmente sendo bloqueado (ainda o é, pois os inimigos da vida livre sempre terão inimigos), mas está sendo velado de tal maneira que muitos nem se recordam de sua existência – assim como muitos não “recordam” de que houve ditadura capitalista-militar sangrenta no Brasil; de que todos os dias Rafaeis Bragas, Amarildos e Marcos Vinícius têm suprimidas suas vidas e liberdades pelo Estado; não recordam que quando tudo explodir apenas quem está próximo a nós, espacial e/ou afetivamente, poderá nos ajudar de fato.
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No século XVII, a ética de Espinosa causou incômodo às tradições filosóficas, religiosas e políticas pelo que trazia de radical, em vários sentidos. Não é aqui que isso deve ser explicado, mas me apraz recorrer constantemente a uma ideia presente no livro da Ética: nossa liberdade é indissociável da nossa capacidade de afetar e ser afetado de múltiplas maneiras. Nesse sentido, não há pecado ou vício inerente às nossas paixões, tampouco justiça e injustiça instrísecas às nossas ações, já que essas noções passam a valer apenas nas coletividades organizadas de algum modo político (um conceito mais amplo que o vulgar de político, obviamente). A política é instituída como um meio de resistência ao que míngua a força dos indivíduos – não é uma finalidade, não descreve nenhuma essência humana metafísica, e, na medida em que o instituído tem insistentemente empobrecido nossa abertura ao plural, é sempre legítimo resistir.
Ser disposto ao múltiplo nem de longe significa querer sentir tudo. É de potência que Espinosa tratou – na filosofia, ele e outros poucos, na verdade. De força de existir e agir por conta própria, de poder experienciar as diferenças sem descaracterizar sua singularidade essencial (irredutível a qualquer outro ser) e histórica. Qualquer confinamento espacial ou temporal – e nossos confinamentos também se iniciam como forma de “educação”, nos espaços especializados e cronometrizados – implica assim uma violência direta a essas forças singulares, aos corpos que dão vida a qualquer cidade; em direção oposta, sabemos que as ruas são cada vez menos das pessoas e cada vez mais das mesas de galerias e da polícia. E isso do espaço público, que de tão privatizado precisa ser constantemente (re)ocupado – incluindo, também, escolas – para que funcione como deveria, sempre do ponto de vista do desejo de liberdade.
Quanto ao tempo, que eticamente é a chave de nossas multiplicidades, sua coisificação há muito é coisa de crime violento.[ii] A engenharia que pretendesse ocultar o passado e o presente em épocas de internet seria quimérica, mas das mesmas “mágicas” que nos trazem informações vemos saltarem as técnicas de amortecimento afetivo, e há quem pense que chegou o momento de desfechar o golpe de misericórdia – se as farsas históricas já se alimentam a si próprias, interessa mais urgentemente apagar em nossas singularidades os desejos que nascem de nosso apego aos que lutaram e aos que morreram pela liberdade. Quer-se tapar a visão de que o passado funde-se ao presente pela triste permanência do genocídio. Como “fim” do processo, quer-se atacar mortalmente nossa capacidade de ser afetado de liberdade. Bloquear aquilo que do passado pode alimentar a revolta presente só faz sentido quando é bloqueada nossa capacidade de sentir o múltiplo das temporalidades nossas.
Os séculos de Bacon, Espinosa e Kant (17 e 18) são às vezes acusados de criar a mentalidade dominadora do homem sobre a natureza. A coisa é mais antiga e nem chega perto de definir alguma coisa de universal sobre os seres humanos. Mas o passo além de nossos dias está em produzir instrumentos humanos atacando diretamente a já capenga função integradora que tinha a educação escolar: em vez de integrar ao meio os pobres e mal formados estudandes (integrá-los ao sistema de servidão que é o capitalismo), quer-se apropriar finalmente do desejo quase incontível dos jovens e torná-lo um meio de mortificação coletiva.
A escola e o aparato que a acompanha não são suficientes para isso – nada nunca vai ser. Mas quando vemos quem são os financiadores da reforma “educacional”, fica claro que a quem interessa esse é um terreno mais que estratégico – e muitos que não frequentam (e muitos que sim, frequentam) a escola são dados a morrer pela mão do Estado. No capitalismo, esses que são assassinados talvez tenham sido os únicos a serem educados realmente pelo Estado; educados a não trazer nada de novo ao mundo, educados a deixar o mundo caducar e envelhecer até a decrepitude (outra educação possível se insere justamente nesse interstício, pelo menos se pensamos com Arendt que a educação está entre o mundo tão mais velho que os jovens e a energia renovadora que estes trazem consigo). Os que sobrevivem não devem ser educados, senão mortificados – quem não sente viver em alguma medida essa experiência, que agora que alcançar seu zênite?
São movimentos difíceis de decifrar em sua abertura ao futuro, mesmo próximo. Muitos dos que escrevemos e atentamos contra as diversas formas de dominação do capitalismo resistimos deliberadamente a entregar os pontos – porque, apesar de “educados”, nossa experiência política faz-se também de desejos, e eles sempre circulam por aí abraçando fragmentos de liberdades complicados de conciliar, mas sensíveis como momentos de liberdade a servirem de alimento a toda prática ou teoria desalinhada com os imperativos da “vida” aprisionada. A liberdade, no caso, só pode ser vivida como experiência e historicamente se manifesta pela necessária recusa, irmã da experiência da dor e do dilaceramento de nossas integridades multimorfas. Por bem dizer, se há ou não sujeito, é particularmente ambígua toda luta por subjetivação ou singularização quando se ancora em velhas ideias a respeito da ação política ou porque crê secundária a ideia de ação política.
A recusa que às vezes segue a dor pode ser anulada pelo terrorismo das reformas? Não. O desejo – que não distingue prática e teoria – dialoga com as dores e lutas do passado no seu fazer-se cotidiano, porque quando busca a vida nunca o faz sozinho e nem preso ao presente e temendo o futuro. A ação política é ação direta e refunda linguagens, necessariamente, pressupondo que quem age sozinho não tem como enxergar muitas cores, discernir várias perspectivas. Nesse sentido, sem parar os movimentos contra a instituição das reformas, temos de lembrar-nos cotidianamente que instituído não resume o político e que nossa formação não deve significar escolarização – ao contrário, não de hoje formações éticas e políticas de contestação são hostis à escolarização (não apenas à escolarização a serviço do neoliberalismo, mas à escolarização que mata em germe nossa experiência política, o que gera a necessidade de formular outras práticas).
Os pilares dessa formação estão aí, no nó entre as temporalidades passadas e presentes, pois a recusa à morte em vida propagada pelos poderes instituídos nunca desaparece completamente, nem sob o mais duro dos regimes autoritários. Como senti nos mais diversos “ares”, em todos os cantos há quem queira retomar seu tempo próprio de vida, instaurar seus próprios sentidos, sofrer das próprias dores e das próprias alegrias, sem nada sentir que deve – e sem nada sentir, realmente, só. O chavão de que aprendemos no bar e na rua nunca foi tão real, ou deveria ser. Da diversidade explícita de lutas hoje, aprendemos principalmente que é a espontaneidade cotidiana que deve ser reapropriada por nós, que as picuinhas e felicidades quase invisíveis do correr diário são, sim, espaços de luta que podem ser colonizados e mesmo extirpados da existência. Mesmo com eleições este ano, não podemos esperar que outro governo nos recobre a experiência do aprender como disposição ao conflito, à liberdade e à solidariedade.
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O mais didático da propaganda pela reforma do ensino médio no Brasil foi o escancaramento de como se brinca com a ideia de liberdade e de como, com isso, se quer deixar para trás todo sentimento real ligado a algo mais que o escolher servir. Como alguém que joga um abacaxi na mão dos outros, a reforma do ensino médio quer passar a imagem de que os adolescentes são responsáveis pelos caminhos que vão tomar – como se a divisão do trabalho já não estivesse aí, imposta, e como se as opções disponíveis de itinerários tivessem algo a ver com efetivo exercício de liberdade, quando ela é experiência que se toma de assalto em circunstâncias incontíveis em “caminhos” pré-determinados por interesses sociopatas (pode-se ler: econômico-financeiros).[iii]
A experiência política de muitos jovens foi aprofundada “precocemente” nos últimos anos porque (não pela primeira vez na história), de fato, tiveram que criar a própria luta, forjar a própria resistência e perceber na carne que educação política exige aprender a autodefesa ante centenas de facetas da humanidade, muitas das quais sanguinárias, outras tantas sedutoras e não menos assassinas – coisas da ordem do consumismo, por exemplo.Viram que ocupar espaços era, sem paradoxos, explodir confinamentos, e alguns pagaram com a própria vida ou com a tranquilidade mental essa experiência de ação direta.
Não se pode esperar, pois, que algo inextricável da educação política que é a vivência dos conflitos seja obra do instituído ou venha a ser produto de reforma. A educação política, de certo modo, sempre está aí, até porque é nas particularidades das ações de resistência e de exigência que ela se concretiza; porém, o passo a mais (para trás) da atual reforma é propagar a igualdade pela institucionalização da diferença (a imensa maioria das escolas públicas vai se tornar ensino técnico enquanto as melhores particulares aproveitam e “modernizam” seus currículos); e, também, propagar a liberdade de escolha pela institucionalização do imposto, do empurrado à força (enquanto algumas escolas particulares poderão aprofundar todos os cinco itinerários, a maioria das públicas terá de optar capengamente por uma ou duas). Ou seja, com a premissa de que se mantenha o genocídio em dia entre os mais pobres, os que sobrevivem já terão seu caminho traçado em sentido inverso ao da comunhão e da solidariedade, pois serão mortificados pelo confinamento social a que estão sendo condenados.[iv]
A relação disso com a segurança é fácil de ver. Primeiramente, são assegurados os privilégios dos que teimam em mentir sobre segurança pública, aproveitando-se de uma ilusória proporção inversa entre segurança e liberdade – essa dinâmica habilita políticas que retiram verba da educação para investir em “segurança”; paralelamente, cria-se uma dinâmica que, entre medo e esperança, o medo, resumidamente, prevaleça, e que a sensação de insegurança, em todos os níveis da vida, seja sensação condicionante de nossos pensares e atitudes. Outras tantas relações poderiam ser desdobradas, suas perspectivas são indefinidas e justamente se conectam a partir daquilo que compõe (ou deveria compor) a substância: tanto das disciplinas atacadas diretamente pelas reformas impostas de cima, como daquilo que é o substrato das relações mais bem-sucedidas do ponto de vista da educação, feitas de baixo e que trazem em si o envolvimento afetivo, a criação de vínculos (especialmente o de solidariedade, que nada tem de místico) e a atividade direta em meio àquilo que constitui a existência, como a comunidade.
[i] Frase de Antônio Negri, em “Espinosa: cinco razões para a sua atualidade”, texto que compõe o livro Espinosa subversivo e outros escritos (p. 21 da Ed. Autêntica).
[ii] Sem ceder ainda à sedução do radicalismo de Pedro Garcia Olivo a respeito de uma “educação democrática”, trago apenas uma simples observação sua, em O educador mercenário, que ilustra essa situação perfeitamente (p. 41 da Ed. Monstro dos Mares): “(…) o Estado não só ‘sequestra’ e ‘confina’ diariamente os jovens, como também ‘força’ os pais, sob ameaça de uma intervenção judicial, a consentir esse rapto e inclusive a torná-lo viável”.
[iii] Em reportagem do The Intercept Brasil, do ano passado, a questão é posta diretamente: “Ora, por que incluir a reformulação do ensino médio na lista de medidas econômicas? E por que ela traz felicidade a investidores internacionais? Mais que um ato falho, quando o presidente do Banco Central cita uma mudança na política educacional como parte das políticas econômicas, revela a lógica por trás do “novo” ensino médio: a educação deixa de ser efetivamente tratada como um direito e passa a ser encarada como mero serviço a ser precificado.” Mais relevante é a fala clara de uma estudante, “Larissa Coelho, 18 anos, (que) participou do movimento (contestatório à MP) no Colégio Pedro II de Realengo, na zona norte do Rio de Janeiro e entende que isso representará um aprofundamento de uma desigualdade de oportunidades que já existe: ‘Essa ideia de possibilidade de escolha sobre o que se vai fazer é uma falácia. O aluno da escola pública, que muitas vezes precisa logo colocar dinheiro dentro de casa, não escolhe fazer o técnico, é movido pela necessidade. E nem considera a faculdade, porque isso não é permitido a ele’.” Cf. o link https://theintercept.com/2017/10/20/sob-aplausos-do-mercado-financeiro-empresarios-ja-lucram-com-reforma-do-ensino-medio/.
[iv] Em outro contexto, ainda pouco trazido às escolas do país, o apagamento literal de rastros espaciais e memoriais foi sempre a tônica do Estado brasileiro com as comunidades indígenas. Ao ler o relatório da Comissão Nacional da Verdade, capítulo a respeito dos indígenas, tive a sensação de que a violência contra suas comunidades é o que nos une como nação (os exageros em certos casos são perspectivas afetivas e consideráveis). Separei um trecho relativo aos fins dos anos 70, especialmente porque ao fim tem voz uma mulher que sentiu diretamente a violência. O texto é facilmente encontrado na rede, e a página em que se encontra a citação é a 209: “Na região de Laguna Carapã, acontece, entre 1977 e 1979, um dos dois primeiros casos em que uma dessas remoções teve visibilidade nacional, por conta de denúncias de indigenistas e lideranças indígenas à imprensa de São Paulo e Rio. A comunidade de Rancho Jakare, que se encontrava instalada em antigas terras da Matte Laranjeira, é, por duas vezes, removida. Na segunda delas, em 1978, a Funai, em diálogo com os fazendeiros, toma a iniciativa de levar os indígenas para a reserva Kadiweu, a mais de 400Km dali, no Pantanal. No local onde foram despejados, enfrentaram as ameaças de posseiros que pleiteavam aquelas terras. Meses depois, os indígenas retornam a pé para sua terra. Devido às más condições na jornada, eclode uma epidemia de sarampo, e três crianças morrem. Silva registrou o testemunho da idosa Livrada Rodrigues, de rancho Jakare, sobre o episódio: ‘Daqui eles nos levaram em gaiola, gaiola mesmo, vieram três gaiolas, na gaiola que nós fomos. (…) Pelo caminho, dormimos, nos alimentaram, nos davam pãozinho para não morrermos de fome, tampavam da gente a gaiola para não vermos nosso rastro‘.”
Ainda em outro contexto, também aprofundado pelos trabalhos das Comissões, vimos a resistência à ditadura ocorrer conciliando festa, alegria e educação política – os bailes nas comunidades trouxeram à superfície problemas do estado racista, que passou a persegui-los com mais afinco; passo o link de uma matéria que apresenta, a quem quiser assim ver, um exemplo interessante de educação (subversiva) que relaciona o questionamento político a partir de traços distintivos (como desses bailes de negros nos subúrbios cariocas) com a resistência política mais generalizada, aquela contra a opressão que gera outras opressões, na história e cotidianamente: http://www.historiadaditadura.com.br/destaque/dancando-sob-a-mira-do-dops-bailes-soul-racismo-e-ditadura-nos-suburbios-cariocas-nos-anos-1970/ ; do candomblé aos pontos de encontros de gays e lésbicas, não faltam exemplos de que a educação política não pode prescindir do envolvimento afetivo e de muitas formas de ação direta, da festa ao contato mais carnal com o divino.