Este será o primeiro escrito de uma série sobre a luta de classes no Brasil, a crise da Nova República e a aceleração radical na criação de um novo padrão de dominação política, representada pela eleição do neofascista Jair Bolsonaro. Pretendo escrever quatro textos. Cada um pode ser lido separadamente, pois terão focos diferentes, mas os quatro vão se completar num quadro mais amplo e com pretensões totalizantes na análise da dinâmica política brasileira.
O primeiro será um balanço da candidatura da Frente de Esquerda, liderada por Guilherme Boulos e Sônia Guajajara. Buscarei, nessa reflexão, tocar não em questões importantes da campanha eleitoral, como a tática de comunicação e o papel da Mídia Ninja, a imagem dos candidatos ou o roteiro de campanha. Estas questões, embora relevantes, não me parecem as determinantes e não me considerando um especialista em comunicação e marketing eleitoral para tratar destes temas com qualidade.
Dito isto, focarei nos determinantes políticos e ideológicos da luta de classes, que considero os mais essenciais. Por fim, ainda no âmbito das advertências, o recorte histórico de nossa análise vai começar em 2013. Reconheço que é necessária uma análise global do que foi a Nova República para ter uma boa perspectiva histórica e analítica. Contudo, como já disse, este será o primeiro escrito de quatro. A leitura conjunta de todos possibilitará traçar uma análise panorâmica, ainda que não exaustiva, da luta de classes no Brasil desde o fim da ditadura empresarial-militar.
2013: o começo
Nossa análise começa em 2013. Não necessariamente partindo de Junho de 2013 e das polêmicas de interpretação deste fenômeno. O ano de 2013 marca o renascimento de um fenômeno que o Brasil tinha vivido entre 2004 e 2007. Nesse período histórico, frente aos limites e ao conservadorismo do primeiro governo petista, – o terceiro governo da Era FHC, como disse Chico Oliveira – uma série de militantes e ativistas tentou se deslocar do petismo e criar alternativas à esquerda [1]. É o auge das tentativas de ser o guia da oposição por parte do PSTU, o surgimento do PSOL, da Intersindical e mais uma série de organizações populares, de esquerda e socialistas. Foi o ano também que uma candidatura da Frente de Esquerda conseguiu o maior número de votos e peso eleitoral numa eleição: Heloísa Helena e Cesar Benjamin conseguiram mais de seis milhões de votos na aliança entre PCB, PSOL, PSTU e uma série de outros movimentos (sem entrar no mérito, contudo, do conteúdo da campanha de HH e na sua estética discursiva moralista) [2].
Essa onda, porém, passou. A partir de 2007 começa o período de maior popularidade do petismo. Crescimento econômico acelerado, grandes programas de obras públicas, expansão de escolas técnicas, hospitais, universidades, concurso público para todo lado, extrema popularidade internacional de Lula, etc. Ele termina seu mandato com 83% de aprovação. A maior aprovação presidencial da história brasileira. Todavia, já nos primeiros anos do governo Dilma, o projeto petista dava sinais de esgotamento, e Junho de 2013 faz explodir uma série de contradições e limites não mais possíveis de se contornar. Se inicia um novo ciclo de ascensão das organizações populares à esquerda do PT.
Quando comecei a militar na UJC (União da Juventude Comunista) em novembro de 2013, fui o quarto militante da organização na UFPE. Não existia RUA, JUNTOS, Brigadas Populares, JCA, Polo Comunista “Luís Carlos Prestes”, Alicerce, Barricadas, MTST e mais uma série de organizações do campo da esquerda socialista em Pernambuco. Entre 2013 e 2016, várias destas organizações surgiram no estado e cresceram muito rapidamente – assim como a UJC e o PCB. Entre 2013 e 2016, as organizações à esquerda do PT ganharam vários e vários DCE’s, DA’s, sindicatos, eleições para os conselhos de categorias, associações de moradores, passaram a ter maior adesão no campo da cultura, formar novas figuras públicas e ter maior penetração no movimento de massas.
A maioria desse processo aconteceu nos setores da juventude, camadas médias, funcionalismo público, trabalhadores com histórico de organização sindical e militância e nos setores ligados ao trabalho cultural. O conjunto da classe trabalhadora não organizada permaneceu sob a influência do petismo ou se deslocou para um liberalismo-conservador guiado pelo “trabalho” das igrejas neopentecostais. O processo de crescimento da esquerda à esquerda do PT também teve uma clara concentração geográfica: os grandes centros urbanos do Sul, Sudeste e Nordeste, ficando alheios ao Norte, Centro-oeste e as regiões interioranas e cidades pequenas e médias de todo Brasil. A despeito de todos os seus limites, diferente de 2007, o petismo estava numa encruzilhadas e não conseguiria mais, como no segundo governo Lula, reverter esse processo com facilidade.
No final de 2015 aconteceu um protesto nacional em São Paulo organizado pelo Espaço Unidade de Ação. Essa iniciativa congregava uma série de organizações de esquerda e movimentos populares que buscavam organizar a resistência ao ajuste fiscal operado pelo Governo Dilma e seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o preposto do Bradesco. A intenção era se diferenciar do petismo e da oposição de direita, naquele momento liderada por Aécio Neves e seu PSDB. Devido ao sectarismo e ao hegemonismo do PSTU, a organização com mais peso sindical nesta frente, a mesma ruiu como um castelo de cartas e daí por diante começa a longa noite de decadência do PSTU.
Na virada de 2015 para 2016, substituindo o Espaço Unidade de Ação, surge uma nova frente política: a Povo Sem Medo. Criada no final de 2015, a frente tinha forte participação de organizações do campo do petismo com a CUT, CTB (central sindical do PCdoB), UNE (dirigida pela UJS e tendências do PT), Mídia Ninja etc. Contudo, rapidamente, firmou-se a hegemonia do MTST nessa frente. A linha do MTST, movimento que foi da CSP-Conlutas e rompeu, era não criticar o petismo, evitar um confronto direto do ponto de vista político e ideológico, mas superar na prática seus limites apostando numa perspectiva de mobilização social. Enquanto as forças da Frente Brasil Popular se concentravam em ser apenas força de sustentação para o moribundo governo Dilma, evitando fazer qualquer crítica ao ajuste fiscal, criando, inclusive, a ridícula palavra de ordem “Fora Levy” (como se Levy tivesse caído do céu), a Povo sem Medo fazia um firme combate ao ajuste fiscal e às tentativas de impedimento da presidenta Dilma.
No ano de 2016 em Pernambuco, por exemplo, ocorreram vários embates entre a Frente Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular pela condução dos atos e por sua linha política. Representando o PCB, pude conceder várias entrevistas, falar em carros de som, participar de reuniões de organização, atuar na comissão política de atos e bater de frente com representantes da CUT, PT, PCdoB e afins que não queriam nenhuma crítica ao governo Dilma. O MTST e a Frente Povo Sem Medo representavam, nesse período, uma real alternativa ao petismo enquanto forma de fazer política (ainda que não enquanto estratégia política). A fórmula apresentava resultados positivos: buscar superar os limites do petismo na prática, mas sem criticar diretamente o partido, evitando delinear uma estratégia alternativa com coerência e cultura política própria. As organizações que compunham a Povo Sem Medo, como as tendências do PSOL e o PCB, também experimentavam maior crescimento e protagonismo político. Foram tempos interessantes!
Quando o PT sofreu o golpe parlamentar e Michel Temer assumiu o governo, e ao longo do período das eleições municipais de 2016 (PT tinha 630 prefeituras e termina com 256), o campo democrático-popular que engloba PT, PCdoB, Consulta Popular, CUT, CTB, majoritária da UNE e mais uma série imensa de organizações partiu para a ofensiva. Se antes era necessário não colocar muito peso nas ruas, blindar o impopular governo Dilma e fingir que coisas como o ajuste fiscal não existiam, agora, na oposição, se tornava possível assumir o papel de defensores dos direitos sociais e trabalhistas, das empresas públicas e da soberania nacional. O PT e seu campo político mesclaram um discurso de defesa acrítica do legado petista com oposição liberal de esquerda ao programa antipopular de Michel Temer.
Lembre-se que o MTST e Guilherme Boulos (a principal força política da FPSM e sua principal figura pública) não criticavam abertamente a estratégia democrático-popular do PT e seu campo político, fazendo uma crítica branda à governabilidade do “lulo-pragmatismo” (como gosta de chamar o camarada Milton Temer). Na época, Guilherme Boulos dizia, basicamente, o seguinte: a) a época do “ganha-ganha” acabou e para construir direitos dos debaixo agora é necessário enfrentar os privilégios do “andar de cima”; b) a esquerda precisa voltar a fazer trabalho de base, se reconectar com o povo e voltar a estar no seu dia-a-dia; c) não é possível construir um projeto popular com as elites e os partidos de direita como o PMDB, a nossa aliança tem que ser com os movimentos populares.
Estas críticas, quando o PT era governo, causavam certo constrangimento. Quando o PT passou a ser oposição, se tornaram inofensivas. O PT e seu campo político passaram a operar duas ofensivas muito bem coordenadas e planejadas: a) houve um forte giro em direção das disputas de sindicatos, conselhos de categoria, entidades nacionais e do movimento estudantil, com o alocamento de recursos materiais e quadros experientes. Houve uma reversão intensa, ainda que apenas parcial, de posições conquistadas pela oposição de esquerda no período de 2013-2016 em diversos espaços de militância. Dois episódios são simbólicos dessa retomada de bases pelo campo do petismo. O DCE da USP, a maior universidade pública do país, estava sob a direção da esquerda socialista há mais de dez anos e o campo democrático-popular conseguiu vencer a eleição em 2017. Na UNE e na UBES o campo da Oposição de Esquerda (OE) teve um resulto pífio, o pior em anos, e a maioria das forças políticas da OE ou diminuiu ou manteve suas forças – o resultado não foi pior porque as juventudes do PCB e MAIS/Resistência passaram a compor a OE, com peso expressivo; b) o segundo movimento foi procurar realizar um abraço de urso na Frente Povo Sem Medo, atrelando-a com a Frente Brasil Popular, se tornando cada vez mais indistinguível a linha política das duas Frentes.
Depois de eventos grandiosos, como o maior ciclo de ocupações de escolas secundaristas, escolas técnicas e universidades da história brasileira; a marcha dos 200 mil em Brasília; atos gigantescos pelo país todo e com interessante (ainda que limitado) nível de adesão de trabalhadores não organizados em defesa dos direitos trabalhistas e da previdência; e uma grande paralisação geral; finalmente a direção política do movimento de oposição ao governo Temer foi conquistada pelas centrais sindicais, o que na prática significava a direção da oposição pela CUT e pela Força Sindical. O petismo, habilmente, influenciava o movimento através da Frente Brasil Popular, dirigia por meio do comando das centrais e ainda pautava várias ações da Povo Sem Medo mediante atos e ações conjuntas.
Entramos na segunda metade de 2017 com as centrais cancelando greves gerais em troca de negociar a permanência do imposto sindical [3], trocaram a luta de massas por “pressionar parlamentares no aeroporto” [4] depois da marcha dos 200 mil em Brasília e abandonaram a tentativa de derrubar o governo Temer em nome da palavra de ordem em favor de “novas eleições”. Entra 2018 e o petismo e seu campo político não querem saber de radicalidade nas ruas: já era hora de compor as velhas alianças com os que até pouco tempo antes eram chamados de golpistas e manter o governo Temer apenas desgastado para tirar proveito eleitoral disso. A caravana de Lula pelo Nordeste foi o auge desse movimento [5].
E as organizações socialistas diante de tudo isso? Não conseguiram, por diversos motivos, impedir o processo. O PCR e seus coletivos estavam mais preocupados em tentar vencer a burocracia do TSE (na época dirigido por Gilmar Mendes) e legalizar o seu partido, a Unidade Popular. O PSTU vivia duras crises internas, pesando sobre si um sectarismo doentio e um racha depois do outro. O PCB manteve seu crescimento lento e constante, porém não conseguiu ter qualquer papel de protagonismo nesse processo. A maioria do PSOL realizou um giro em direção ao petismo, deixando escancarado algo evidente para qualquer observador mais ou menos lúcido: o PSOL nunca conseguiu desenvolver uma estratégia e uma cultura política alternativa ao petismo. Realizava, no máximo, uma oposição tática e moral (importante) [6], mas quando o PT passou a ser oposição, as diferenças entre petismo e psolismo foram ficando cada vez mais opacas. Inclusive, vale ressaltar: quando a crítica à corrupção petista foi totalmente capturada pela direita política, figuras de proeminência nacional do PSOL (como Luciana Genro, a que falou “Viva a Lava-Jato”) foram completamente apagadas da conjuntura nacional e isoladas politicamente.
As organizações que foram oposição à esquerda ao petismo transitaram entre três posturas básicas. Ou se isolaram por diversos motivos, como o PSTU e a Intersindical Vermelha; ou realizaram um giro petista, como a majoritária do PSOL; ou não tiveram peso de massas e político para fazer hegemônica sua estratégia alternativa ao programa democrático-popular, como o PCB, PCR e Polo Comunista “Luís Carlos Prestes” (este último, assim como o PSTU, vivenciando rachas e divisões internas [7]).
Tivemos uma dupla derrota. Os setores não organizados da classe trabalhadora, no período 2013-2016, nunca estiveram em disputa/ sequer foram atingidos pela esquerda socialista. Este setor foi disputado pelo petismo e pelo fundamentalismo religioso, o antipetismo e, como vimos com a eleição de 2018, o bolsonarismo. Na juventude, no movimento estudantil, nos setores organizados da classe trabalhadora, no sindicalismo e assim segue, onde houve uma disputa real, nós perdemos. Vitória total do petismo – ainda que, na época, na já distante virada de 2017 para 2018, isso não tenha parecido uma derrota para muitos.
A iniciativa Vamos: não inventamos e erramos.
Quando a iniciativa VAMOS foi lançada, em 2017, o movimento de massas de resistência ao governo Temer já havia reduzido sua pulsão, o petismo já tinha abafado a tentativa de consolidar um campo à esquerda com maior peso de massas e a distinção dos campos já não era clara. O VAMOS, diretamente inspirado na experiência do Podemos espanhol e em reflexões de teóricos como Boaventura de Souza Santos, tinha como objetivo criar um programa unificado para a esquerda. Retoricamente, não era um programa eleitoral, mas tinha cara, cheiro e aparência de programa eleitoral. O curioso é que o VAMOS se propunha a ser um programa à esquerda do desenvolvimentismo petista, mas desde o começou andou colado com o petismo.
Nos debates econômicos, por exemplo, o VAMOS, do começo ao fim, foi dominado por economistas de recorte keynesiano que não avançam muito além do criticado desenvolvimentismo petista. Marcio Pochmann, Laura Carvalho, Luiz Gonzaga Belluzzo e tantos outros foram presença constante nos debates do VAMOS. Ironicamente, esses mesmos nomes estiveram presentes no seminário “Estratégias para Economia Brasileira” do PT (uma espécie de VAMOS interno do petismo [8]), mostrando a pouca diferença de campo político entre a proposta do VAMOS e o que vinha fazendo o petismo). Quando um “marxista” tinha destaque, era um marxista de linha moderada, como o professor da USP Ruy Braga – o mesmo que elogiou a Geringonça Portuguesa [8]. As participações de figuras radicais, como Edmilson Costa, secretário geral do PCB, não alteraram os rumos gerais da proposta [9].
O VAMOS não formulou qualquer projeto programático para as esquerdas e muito menos contribuiu para a construção de uma crítica à estratégia democrático-popular do petismo. Formou um ajuntamento de propostas de diversos movimentos sociais, sindicatos e entidades e parecia mais um programa de governo. Também não teve peso de massas e suas discussões foram abraçadas, basicamente, pelo MTST e tendências do PSOL. Por uma série de motivos, outras organizações da Povo Sem Medo não se empolgaram com o VAMOS.
Para surpresa de alguns, o Brasil não é a Espanha. O fetiche do novo, da novidade, das novas formas, mais uma vez, falhou. Dada a situação da luta de classes e o posicionamento das esquerdas do país que descrevemos acima, o VAMOS poderia ter tido algum resultado positivo se fosse o início de uma separação clara entre o petismo e as demais forças da esquerda socialista, buscando tentar recuperar a pulsão de 2013-2016, transformar essa energia social em potência eleitoral e, em termos mais gerais, político. Isso não seria possível de ser feito, contudo, abraçado com figuras como Lindbergh Farias e Tarso Genro. E não foi.
Paralelamente ao VAMOS, já estava acontecendo dentro do PSOL a disputa para ver quem seria o candidato à presidência pelo partido. O PSOL é o partido à esquerda do PT com maior visibilidade pública, dinheiro, estrutura e direito a participar dos debates eleitorais, logo, o seu candidato seria, naturalmente, o candidato da Frente de Esquerda que fosse formada na eleição de 2018.
De início, oficialmente, o PSOL tinha apenas um pré-candidato à presidência: o economista catarinense Nildo Ouriques. Nildo tinha sido militante do PT até 2005. Depois de romper com o partido, ficou sem militância político-partidária orgânica por anos. Entrou no PSOL em abril de 2017 e passou a se colocar como pré-candidato à presidência pelo partido, visando o Congresso no final do ano. Com excelente preparo teórico e um aguçado senso de oportunidade, Nildo foi um dos intelectuais que mais se beneficiou com o espaço político aberto à esquerda entre 2013-2016, ganhando alguma projeção nacional – especialmente entre a juventude organizada. Defendia, basicamente, que o PSOL deveria ser o partido da crítica radical ao que chama de Sistema Petucano, apresentando um diagnóstico da crise e se colocando como impulsionador da Revolução Brasileira – que segundo o professor, já estava em curso [10].
Nildo, ironicamente, agradava com sua linha teórica mais pessoas fora do PSOL do que dentro. Era um novato no partido e defendia uma estratégia, cultura política e fundamentação teórica não só estranha ao PSOL, como antagônica ao que é dominante no partido. Publicamente dizia que a conjuntura criava as condições, a despeito de tudo, para um partido como o PSOL abraçar sua candidatura. Mesmo novato no PSOL, teve apoio de figuras relevantes no partido, ainda que sem qualquer destaque no comando da máquina partidária, como o Plínio de Arruda Sampaio Jr (o Plíninho). Em uma reviravolta digna de novela global, o próprio Plíninho deixa de apoiar a pré-candidatura do Nildo e se lança como pré-candidato, defendendo basicamente o mesmo programa e estratégia que Nildo (mas contando com o apoio de tendências mais orgânicas do PSOL, do campo trotskista, como o MES e a CST).
Plínio e Nildo eram os pré-candidatos oficiais e Boulos já era pré-candidato, mas extraoficial: dizia que primeiro precisava dialogar com seu movimento, o MTST, para tomar a decisão de ser ou não candidato. Depois surgiram a Sônia Guajajara e o Hamilton Assis. O fundamental é que, com exceção do Nildo, os outros candidatos não conseguiram construir um discurso coerente de oposição ao VAMOS que, na prática, já estava funcionando como a futura plataforma de campanha de Boulos. Essa disputa fratricida dentro do PSOL criou momentos tragicômicos: Plínio criticou o VAMOS afirmando que a inciativa era uma forma de “pós-modernismo” e “não tinha Lênin”; como se o PSOL fosse um partido com alguma valorização teórica e política da obra de Lenin…
Para que serve a eleição?
Na conjuntura em que estávamos, a eleição tinha uma função muito clara: potencializar a resistência à ofensiva de classe da burguesia e do imperialismo e impulsionar um polo de esquerda alternativo ao petismo, fortalecendo sua penetração social. Mesmo a eleição de 2018 apresentando vários elementos “anormais,” sendo considerada a mais imprevisível desde 1989, não era prudente pensar numa estratégia de competitividade eleitoral, como se fossemos os preferidos: era preciso pensar em termos estratégicos da luta de classe. A tarefa, me parece, era clara: fazer da campanha eleitoral um momento de pedagogia política e organizativa em defesa das conquistas históricas dos trabalhadores, avançar na agitação e propaganda de reformas radicais de resposta à ofensiva burguesa e demarcar bem um novo e sólido campo político como alternativa eleitoral, política, teórica e histórica ao campo democrático-popular.
O problema é que estávamos numa época de refluxo de bases sociais, e nossa atuação nas eleições teria o papel de ajudar a reconquistar bases perdidas. Nesse sentido, o candidato do MTST, Guilherme Boulos, apresentava uma vantagem invencível frente aos outros: ser líder do maior movimento de luta pela moradia da América do Sul (o que, convenhamos, não é pouco) e a figura de maior projeção pública na disputa interna do PSOL. O seu nome tinha como grande vantagem a de ser um aglutinador de bases sociais para a difícil tarefa eleitoral. Contudo, a linha política e ideológica/teórica, não só não demarcava Boulos bem em contraste com o campo do petismo, como Boulos estava cada vez próximo do lulismo. Teve momentos em que Guilherme Boulos parecia mais comprometido com a tática política do PT que o próprio petismo – como no caso da prisão de Lula e a posterior ocupação do Triplex no Guarujá.
Os outros pré-candidatos do PSOL cumpriam melhor a tarefa programática que estava posta para a eleição de 2018. Mas, com exceção de Sônia Guajajara, importante liderança indígena do país, as demais não tinham absolutamente nenhuma base social. Nildo e Plínio são dois professores universitários, intelectuais de renome, mas que não conseguem mobilizar as bases de seus próprios locais de trabalho! O ideal poderia ser alguém com a base social de Boulos e o discurso de Nildo, mas o ideal não existe. Enquanto as partes realizavam uma briga com fortes doses de hipocrisia para distrair militantes do que era essencial (quando tendências políticas gritaram por prévias, com um desespero ímpar, sem nunca terem feito prévias nos estados que dominam; ou forças políticas que queriam o PSOL como aliado de Marina Silva em 2010 falaram que Boulos como candidato seria a rendição do PSOL ao lulismo [11]), a direção majoritária do PSOL costurou um acordo óbvio e eficaz: Guilherme Boulos como cabeça de chapa e Sônia Guajajara como vice. A chapa ostentava a atração da base social indígena e dos sem-tetos, prometendo ser a candidatura do PSOL que, pela primeira vez, desembocaria em uma expressiva penetração popular.
Com a escolha de Boulos, Plínio simplesmente perdeu qualquer protagonismo político e Nildo se refugiou em um afastamento total da campanha do seu partido, buscando ocupar o lugar do “eu avisei” (no qual agora muita gente parece querer se refugiar, equivocadamente). Dois economistas marxistas e membros do PSOL que poderiam ter um papel importante na formulação do programa econômico de Boulos e não tiveram. Durante todo o processo esses pré-candidatos não tocaram em momento nenhum na questão organizativa do PSOL, sua forma de estruturação e na base social do partido. Toda a disputa se dava no plano abstrato da linha política do programa.
Um pequeno desvio de rota: nota sobre o PSOL
O PSOL surgiu de um racha do PT. Já nasceu com importante peso político por ter sido formado por figuras conhecidas e com forte base eleitoral devido à sua atuação anterior no PT. O PSOL quando surge aglutina, principalmente, camadas médias, intelectuais e funcionários públicos. Com o tempo passa a ser o principal polo de atração da juventude universitária militante que tem centralidade na luta contra opressões. Mesmo que em alguns estados tenha base popular expressiva, como no Rio, durante muito tempo foi um partido parlamentar das camadas médias progressistas. Cresceu muito a partir de 2013 com um modelo de expansão básico: cada vez mais setores cuja atuação política antes orbitava PT, PCdoB e PDT se deslocam para o PSOL, vendo no partido uma alternativa difusamente de esquerda para acessar políticas públicas, emendas parlamentares, disputar eleições, conseguir audiências públicas, em suma: vocalizar na institucionalidade as suas demandas.
O PSOL tem organizações socialistas e militantes revolucionários valorosos e de extrema qualidade, mas, no geral, assume a forma de um partido-movimento: sem programa definido, ação coesa, cultura política planejada e unitária, estratégia política formada, é como uma incubadora para pessoas, coletivos e movimentos difusamente de esquerda que querem um espaço institucional para qualquer objetivo político. Esse formato do PSOL possibilita coisas interessantes como, por exemplo, ter votações expressivas sem dispor de máquinas sindicais e estudantis, capturando parte importante do eleitorado urbano das grandes cidades. Na eleição de 2018, por exemplo, o PSOL teve quase o dobro da votação nacional do PCdoB, mesmo esse último controlando centenas de prefeituras, forte aparato sindical e estudantil e um governo estadual – o Maranhão com Flávio Dino.
O limite desse modelo de crescimento e estruturação do partido, contudo, é político. Há uma dificuldade sistemática do PSOL em atuar como sujeito coletivo nacional. O PSOL tem dificuldades quase insuperáveis de ser um operador político de um projeto coerente que consiga unificar os interesses do seringueiro do Amazonas, o operário do ABC paulista, o pequeno produtor rural do sul do país, o trabalhador informal do centro do Recife, enfim, dos explorados e oprimidos [12]. Justiça seja feita, isso não é uma tarefa fácil, e os dois maiores partidos dos explorados e oprimidos da história brasileira, o antigo PCB e o PT, sempre foram partidos mais urbanos e com pouca penetração na região Norte do país, por exemplo.
Essa dispersão política, na eleição de 2018, foi potencializada pela cláusula de barreira de Eduardo Cunha. A cláusula impunha a redução do tempo de campanha, as inserções na TV e o partido que não superasse a cláusula, entrava numa situação de semilegalidade. O PSOL, para sobreviver enquanto partido, precisava superar a barreira eleitoral. Uma das formas mais eficientes de ampliar a base de votos parlamentar é dialogar com a base petista para conseguir o que, efetivamente, o PSOL conseguiu com sucesso nessa eleição: muitos eleitores do PT, PCdoB e PDT dedicaram ao menos um dos seus votos em candidaturas parlamentares do PSOL.
O quadro, portanto, já estava claro. Por parte do PSOL como um todo e das tendências de oposição a majoritária, como o MES (Movimento Esquerda Socialista), as campanhas parlamentares seriam uma prioridade absoluta e a presidencial, secundarizada ou abandonada. Se o discurso do candidato fosse de oposição frontal ao petismo, em vários estados, o afastamento do presidenciável poderia ser ainda maior. Essa tendência só teria alguma reversão se, no começo da corrida presidencial, Guilherme Boulos já decolasse nas pesquisas com um número de intenção de votos expressiva, algo perto de 5%, por exemplo. Caso contrário, aconteceria o que aconteceu: membros e dirigentes do PSOL se colando a candidaturas como a de Ciro Gomes e Haddad, buscando maior projeção de votos; foco exclusivo nas campanhas parlamentares; parlamentares buscando a reeleição mediante sua associação a outros partidos (como o PT, PDT, PSB), ignorando a candidatura de Boulos e Sônia Guajajara, etc.
Não acredito (como Nildo Ouriques e sua corrente política, Revolução Brasileira, em uma análise pouco realista) que uma linha política radical-socialista teria impedido essa debandada da campanha presidencial. Ao contrário: se o candidato fosse ele ou Plínio, o fenômeno teria proporções ainda maiores, dado que ambos, como já disse, não possuem qualquer base social expressiva, são menos conhecidos nacionalmente que Boulos e seriam ainda mais escondidos pelos mandatos parlamentares.
A chance do sucesso
Apesar de todos esses limites, que desde o começo da campanha me pareciam visíveis, Boulos foi a todo o momento o candidato mais adequado. O motivo era bem simples: sua maior base social e sua capacidade de diálogo e inserção com setores populares permitiu à esquerda revolucionária atingir patamares que nas campanhas de 2010 e 2014, por exemplo, o PCB não conseguiu atingir. Mesmo discordando da tática e da visão política de Boulos, uma coisa era certa: ele poderia ter conseguido forjar em torno de si uma forte aliança com setores desertores do petismo e ganhar um potencial eleitoral gigantesco, sendo o candidato do lulismo e do não-lulismo.
Não é segredo para ninguém que o PT tentou trazer Boulos para dentro do partido várias vezes. O próprio Lula afirmou, em podcast divulgado pela Boitempo, que tentou convencer Boulos a não entrar no PSOL [13]. Os maiores detalhes da conversa de Boulos com o PT, infelizmente, não podem ser dados aqui, mas se minha palavra vale de uma coisa, confiem: o PT jogou pesado para ter Boulos nas suas fileiras. Boulos, contudo, recusou e colocou como central diferenças programáticas e táticas importantes com o petismo, mas fez isso deixando a porta aberta para o diálogo com os setores ditos mais à esquerda dentro do PT.
Existia dentro do PT insatisfação com a candidatura de Fernando Haddad. Para quem ainda tinha lucidez, quando Haddad foi indicado como coordenador de programa de campanha de Lula, estava claro que ele seria o candidato. Tarso Genro tinha afirmado que, sem Lula, votaria em Boulos; vários governadores e quadros petistas do Nordeste, como Jacques Wagner, Camilo Santana e Rui Costa, não queriam Haddad por sua inexpressividade na região. Boulos também tem excelente transito na CUT, MST, MAB e uma série de movimentos sociais ligados ou próximos ao petismo.
A aposta era ousada. Contava com o racha na base petista e uma capacidade para atrair estes setores e decolar sua candidatura. Justamente por esta aposta e o perfil da assessoria econômica da candidatura – tema melhor abordado a seguir – é que Boulos, em vez de assumir o perfil de uma candidatura antissistêmica como negação total do sistema político, construiu a imagem de uma candidatura possível, com capacidade administrativa, mas responsiva aos interesses dos de baixo, dos 99%, como Boulos gosta de falar. Ele procurou mostrar durante toda a campanha que era alguém com possibilidade de governar e que não estava no pleito apenas para denunciar as mazelas brasileiras e agitar as bandeiras dos movimentos sociais e sindicatos.
Depois da eleição e para quem não teve qualquer acesso às informações de bastidores, essa perspectiva parece fantasiosa. Eu discordo. Era improvável, mas não impossível. Novamente, não posso, infelizmente, entrar em detalhes de bastidores. Peço, mais uma vez, para o leitor confiar nas informações que tive e na minha capacidade de análise. Mas voltando ao tema.
Caso Boulos tivesse conseguido provocar esse racha e deslocamento no petismo, a neutralização da dinâmica de 2013-2016 e seu discurso excessivamente lulista poderiam ser contornados e teríamos, então, a candidatura presidencial mais radicalmente popular e com boas chances eleitorais desde a campanha de 1989 com Lula e Leonel Brizola. Olhando de hoje, retrospectivamente, vemos que, na verdade, essa era a única chance da candidatura de Boulos cumprir o papel a que se propôs: ser eleitoralmente competitiva e mais avançada que o petismo, pautada numa lógica de mobilização popular permanente. Como sabemos, porém, não foi isso que aconteceu. Temos que explicar agora os motivos disso.
No meio do caminho tinha um Ciro Gomes
Quando começam os movimentos pelo impedimento da presidenta Dilma, Ciro Gomes, quase aposentado da política e trabalhando como executivo na Companhia Siderúrgica Nacional, volta a ser figura de primeiro plano. Toda semana estava em algum jornal, rádio, emissora de TV ou site dando entrevistas e correndo o Brasil, especialmente as universidades, dando palestras. Ciro, figura tradicionalmente de centro-esquerda de corte tecnocrático, percebendo a inércia do petismo e a necessidade de enfrentamento, gira seu discurso à esquerda, reduzindo as características tecnocráticas e gerenciais de sua fala e assumindo tons políticos de enfrentamento.
Ciro Gomes filia-se ao PDT no final de 2015 e, durante 2016 e 2017, percorre o Brasil divulgando seu projeto nacional de desenvolvimento. Embora não apresente muitas ideias novas e não seja bem um político com histórico de luta popular, a retórica agressiva e irônica, a forma de vencer e até certo ponto humilhar nos debates os liberais, neoliberais e quadros dos monopólios de mídia e sua defesa de pautas mínimas, mas abandonadas pelo petismo, como uma reforma tributária progressiva e a defesa da soberania nacional; todos esses fatores projetam Ciro como um fenômeno na internet e entre a juventude.
O velho PDT, totalmente degradado, faz um resgate tímido de um verniz trabalhista e nacionalista dos tempos de Leonel Brizola e Darcy Riberio. Ciro Gomes também sentia que existia um descontentamento cada vez maior com o petismo por parte de setores que historicamente votaram no PT e sabia que Lula seria preso e o PT não tinha um quadro de projeção nacional de peso para colocar no lugar. Na oposta do candidato, dito literalmente por ele em várias palestras, ele seria o único do “campo progressista” com possibilidades de vitória contra o campo da direita.
O ponto que mais nos interessa, contudo, é outro. Nas campanhas de 2010 e 2014, quando o PSOL participava dos debates presidenciais de TV, ele “nadava de braçada” como diz o ditado popular. Era o único partido a falar contra a “guerra às drogas”, defendia uma nova política de segurança, serviços públicos de qualidade, reforma tributária progressiva, redução das desigualdades sociais, reforma urbana, auditoria da dívida pública, maior regulação estatal na economia etc. Por diversas razões, PT, PSDB e Marina Silva, os três protagonistas da eleição de 2010 e 2014, não abordavam nenhum desses temas. De tal sorte que qualquer candidato do PSOL conseguia certo nível de destaque a despeito de sua qualidade nos debates (considero, por exemplo, que Luciana Genro foi ruim em todos os debates que participou em 2014, mas como era a única a dizer o que disse, suas participações pareciam excelentes).
Com Ciro Gomes na eleição de 2018, havia outro candidato que falava em reforma tributária progressiva, defendia direitos trabalhistas, criticava algumas privatizações, valorizava os serviços e os investimentos públicos, criticava os delírios do “estado mínimo”, defendia soberania nacional, outra política de segurança; criticava, ainda que timidamente, o racismo, o machismo etc. O PSOL na eleição de 2018, nos debates eleitorais e no tempo de TV, perdeu o monopólio da crítica à esquerda do PT. E embora muitos petistas se neguem a perceber, durante toda campanha, Ciro Gomes esteve à esquerda do PT.
O mais importante para o tema que nos ocupa é que Ciro Gomes conseguiu satisfazer muito melhor que Boulos o perfil do “administrador competente que vai governar para o povo”. Boulos oscilava entre o perfil do político responsável e viável e o homem dos movimentos sociais, não conseguindo estabelecer uma caracterização clara. Ciro foi o bom gestor, Bolsonaro o homem contra tudo que “está aí”, Marina, Alckmin e Meirelles as vozes de centro da “moderação” liberal. Boulos ficou sem perfil bem definido.
Além disso, como já pontuamos, a equipe econômica que ajudou a produzir o programa econômico de Boulos tinham muitas semelhanças com o que defendia Ciro Gomes. Evidentemente, existiam diferenças, mas essas diferenças não foram explicitadas por Boulos durante a campanha (com exceção de elementos como o apoio de Ciro ao agronegócio e a defesa de Boulos da reforma agrária de base agroecológica) e quando os economistas de Boulos buscavam explicar a diferença, se perdiam em um economês incompreensível para a grande massa.
Laura Carvalho, uma das participantes do Grupo de Trabalho de economia da campanha de Boulos, ao comentar as diferenças com o programa de Ciro, afirmou que não defendíamos um programa industrializante com foco em inserção nas cadeias produtivas globais com base na maior competividade da indústria buscando redução de salário real para ganhar mercados. O foco do programa de Boulos seria puxar o crescimento econômico com base em investimentos públicos em infraestrutura social [14]. Defendo desde o começo do primeiro turno que de um ponto de vista estritamente econômico, para quem não é militante, foi quase indistinguível o programa de Boulos e de Ciro Gomes, e com a desvantagem que Ciro sempre parecia saber um pouco mais do tema abordado.
Nesse sentido, discordamos de algumas avaliações muito presentes: não acho que todos os votos que estavam com Boulos e migraram para Ciro Gomes foram frutos apenas do medo de Bolsonaro e da tentação do voto útil. Evidentemente, não se pode desprezar a força do voto útil, mas seria um processo de autoengano desconsiderar que Ciro Gomes com seu nacional-desenvolvimentismo conseguiu conquistar corações e mentes e votos de pessoas que em 2014 tinha votado em Luciana Genro.
Dirigentes do PSOL, como o José Luís Fevereiro, também economista da campanha de Boulos, vangloriavam-se de finalmente o PSOL ter um “programa econômico para apresentar”, algo crível, possível de ser realizado, como se qualquer formulação mais radical fosse uma espécie de devaneio juvenil. A moderação, contudo, foi fundamental para a pouca diferenciação com Ciro Gomes e a perda de votos para o cearense.
A surpresa dessa eleição: o fator Bolsonaro
A imensa maioria dos analistas políticos e grande parte das burocracias partidárias, até o começo do ano, tinham como certo que a parcela do eleitorado de Bolsonaro não superava 20% dos votos e que quando a campanha começasse, o PSDB disputaria votos com o neofascista e conseguiria ir ao segundo turno, passando por pouco e bastante fragilizado. O autor destas linhas, inclusive, apostou dinheiro tendo certeza que Bolsonaro não teria condições de ir a um segundo turno (em minha defesa, quero lembrar que apostei isso em novembro de 2017, bem antes do início da campanha). Os motivos de Bolsonaro ter conseguido ser eleito serão tema do segundo texto dessa série. O que nos interessa agora é outro elemento.
De toda forma, era falso que 20% do eleitorado era a fatia máxima que Bolsonaro conseguiria alcançar e o neofascista transitou entre se manter estável na expectativa de votos com algo entre 15% e 20% para subir de forma frenética no último mês de campanha. Frente ao efeito Bolsonaro, qualquer possível racha do petismo para apoiar a candidatura de Boulos foi anulado, o efeito do “voto útil” potencializou a transferência de votos que seriam de Boulos para Ciro Gomes e o campo de artistas, intelectuais e pessoas da cultura no geral que estavam de flerte com o líder do MTST, se deslocou para Ciro ou Haddad.
No último mês da campanha, uma série de “formadores de opinião” e professores universitários que tinham assinado um manifesto com Boulos [14], estavam fechados com Ciro, principalmente, e Haddad em segundo lugar. Pior: fora dos debates, Boulos foi perdendo espaço na grande mídia e figuras como Ciro Gomes foram ganhando cada vez mais protagonismo no enfrentamento ao judiciário, a candidatura de Bolsonaro e as privatizações do governo Temer (como no caso da Embraer).
Uma pequena nota sobre a campanha
Na eleição em que o ideal seria uma figura antissistêmica, Boulos procurou ser um candidato responsável e não radical. Na eleição onde o keynesianismo já tinha seu representante por excelência – Ciro Gomes –, Boulos tentou ser keynesiano. Na eleição onde o PT tinha seu candidato, Boulos tentou ser mais petista que o PT no começo da campanha – como no episódio do “Boa noite, presidente Lula” e ao apresentar a proposta, feita apenas uma vez em debate, chamada “meu bairro minha vida” – que, de tão caricata, não decolou. A tática de não apresentar qualquer crítica ao petismo e a Ciro Gomes também foi excelente para ajudar a criar a ridícula situação do “meu coração é de Boulos, mas estou votando em outro” e como prêmio de consolação afirmar que em 2022, voto em Guilherme com certeza, como se fosse possível prever o cenário eleitoral daqui a quatro anos.
Neste ponto é necessário deixar uma coisa clara. Não concordo de jeito nenhum com os que defendem que um discurso radical adotado ao início de campanha faria uma diferença eleitoral, ou seja, em termos de votos, muito significativa. Politicamente, sim, poderia ter ajudado muito no processo de reorganização da esquerda socialista e deveria ter sido feito. Depois de tudo que escrevi acima, espero ter conseguido mostrar que uma campanha eleitoral, ao menos na perspectiva contra-hegemônica, não começa no ano da eleição e que todas as movimentações de classe e forças políticas, entre 2016 e 2018, reduziram o nosso espaço social, político e potencial eleitoral. Ao contrário do que defende insistentemente o camarada Nildo Ouriques, um discurso em defesa da Revolução Brasileira, em termos de votos, potencialmente, teria pouco impacto.
Neste ponto, concordo inteiramente com a análise publicado no site Esquerda Online [15]. Embora discorde com a comparação feita com a candidatura do PSTU. O motivo do PSTU ter sua menor votação nos últimos anos não foi o conteúdo discursivo de Vera Lúcia, o mesmo de Zé Maria em 2014, mas a gigantesca desidratação de base social do partido nos últimos anos. Ainda destaco que Boulos tinham maior espaço midiático que Vera Lúcia, e que a diferença na propagação da linha política poderia gerar outros resultados.
Existe um saldo positivo da campanha?
A despeito de tudo isso, defendo que existe, sim, um saldo positivo na campanha. Esta afirmação pode surpreender quem se dedicou a ler o texto até agora em que, praticamente, eu só desferi críticas à campanha. Mas, sim, creio que o maior saldo positivo é que Guilherme Boulos e em menor medida Sônia Guajajara saem dessa campanha como figuras de proeminência nacional e Guilherme, em especial, consolida-se com a grande figura pública da luta popular no Brasil. E isto não é pouco. Necessito, neste ponto, escrever um pouco mais.
A cúpula do PT e Lula sempre tiveram como política matar politicamente qualquer liderança que ameaçasse a centralidade de Lula. Marina Silva, Luiza Erundina, Marta Suplicy, Olívio Dutra e tantas outras figuras tiveram uma escolha muito clara: ou se apequenar ou romper com o PT. Não deixa de ser característico que as campanhas petistas em 2010, 2014 e 2018 tivessem como mote principal fazer conhecido o “candidato de Lula”. Depois da quase morte do PCB e do fim do brizolismo, a esquerda nacional não conseguiu formar nenhuma grande liderança. Nomes com potencialidade, como o dirigente do MST, João Pedro Stédile, por uma série de motivos, nunca decolaram.
Guilherme Boulos é a primeira figura pública criada nos movimentos sociais que assume o papel de liderança com projeção nacional e não é organicamente ligado ao petismo em 20 anos, o que não é pouco. Temos que considerar que importantes quadros da esquerda socialista, como Mauro Iasi, Nildo Ouriques, Valério Arcary, Milton Pinheiro e outros têm em comum o fato de serem intelectuais, professores universitários e pessoas conhecidas, quando muito, no seio das esquerdas e das pessoas que consomem suas produções teóricas. Guilherme Boulos, como consequência de seus anos de militância, especialmente dos últimos três anos e da campanha eleitoral de 2018, está em outro patamar de figura pública. Consegue arrastar milhares em universidades e sindicatos nas grandes cidades por onde passa.
Neste momento, a formação de uma frente democrática contra o governo ultraliberal com tendências fascistizantes está colocada (a forma de atuação dos comunistas e socialistas nessa frente será objeto de análise em outro texto). Em tal contexto, termos ao nosso lado uma das principais lideranças da frente com uma perspectiva de mobilização popular ativa, alguém que não coloque a centralidade na “resistência parlamentar”, é algo de muita importância. Guilherme Boulos cumprirá uma função política muito importante nos próximos anos: será a principal voz de uma “democracia radical” nos processos de resistência que temos pela frente.
Não é de forma alguma, hoje (o que não significa que não pode ser no futuro), uma possível liderança de uma revolução brasileira e muito menos o impulsionador de uma superação radical da estratégia e da cultura política democrático-popular e do liberalismo de esquerda de modo geral. Este, como já afirmei, é o principal limite de Guilherme Boulos como liderança popular, mas o ideal não existe. Os socialistas e comunistas que negam totalmente Boulos devido a essa limitação, imaginando uma espécie de mundo ideal, têm que responder a pergunta: por que nos últimos 20 anos nenhuma organização revolucionária conseguiu formar um líder de projeção nacional ou ao menos regional significativa?
Entramos na eleição numa situação de defensiva histórica. As condições de resistência saíram ainda piores depois do resultado eleitoral. A campanha da Frente de Esquerda cometeu muitos erros e eles têm que ser avaliados e criticados seriamente. Apesar disso, como procurei mostrar durante todo este escrito, qualquer balanço sério deve ter como plano de fundo a luta de classes e os determinantes estruturais da conjuntura, evitando uma análise que comece e termine no discurso do candidato como a explicação para a vitória e a derrota. E, fundamentalmente, esse balanço tem que ter penetração de massas. Deve ser um balanço feito pelas bases que construíram a campanha e não um assunto apenas de intelectuais – normalmente brigando por espaço político – e muito menos esquecido ao assumir a postura do “agora não é o momento”.
Esse balanço também não deve esconder a grande derrota política que sofremos nessa eleição. Deve afirmar com todas as letras que a tática de tentar disputar o petismo por dentro falhou miseravelmente. Além disso, a oscilação entre ser uma candidatura responsável e ao mesmo tempo popular-radical não conseguiu oferecer qualquer fruto. Tudo isso tem que ser pesado com seriedade e firmeza. Não conseguiremos conquistar nada buscando ser um Podemos tropical.
Até o próximo escrito!
Notas
[1] – A hegemonia da pequena política de Carlos Nelson Coutinho: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Coutinho,%20Carlos%20Nelson/A%20hegemonia%20da%20pequena%20politica%20In%20BRAGA,%20Ruy%20-%20Hegemonia%20as%20avessas.pdf
[2] – Votação da Frente de Esquerda na eleição de 2006: http://eleicoes.folha.uol.com.br/folha/especial/2006/eleicoes/presidente1.html
[3] – http://fsindical.org.br/forca/centrais-sindicais-discutem-com-rodrigo-maia-mp-para-nova-contribuicao-sindical
[4] – http://www.esquerdadiario.com.br/As-centrais-sindicais-devem-parar-de-dar-tregua-ao-governo-plano-de-luta-ja-contra-a-Reforma-da
[5] – A caravana de Lula: um novo pacto de classe?: https://www.youtube.com/watch?v=vAPTYmRJeCs
[6] – Minha dissertação de mestrado que ajuda a pensar o tema: https://makaveliteorizando.blogspot.com/2018/09/em-busca-da-revolucao-brasileira-um.html
[7] – http://iniciativacomunistabrasileira.org/2017/10/carta-de-principios/
[8] – https://www.youtube.com/watch?v=_5VMl3LGeuk
[9] – https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/10/o-impasse-brasileiro-e-a-alternativa-portuguesa/
[10] – https://www.youtube.com/watch?v=eQOXlLLWj2Y
[11] – Carta de Carlos Nelson Coutinho para Luciana Genro e o MES criticando a proposta de apoiar Marina Silva: http://psol50sp.org.br/blog/2009/11/27/carta-de-carlos-nelson-coutinho-sobre-2010/
[12] – https://www.resistir.info/argentina/boron_que_fazer.html
[13] – http://anticast.com.br/2018/09/anticast/anticast-352-lula/
[14] – https://www.youtube.com/watch?v=8iZ1S4wRj58
[15] – https://esquerdaonline.com.br/2018/11/03/uma-polemica-com-o-balanco-eleitoral-do-mes/
4 comentários em “A luta de classes no Brasil: balanço da campanha de Guilherme Boulos”
Correta reflexão. Mas tem um problema que segue…a da base . A direita tem usado dois mecanismos formidáveis que não vejo a curto prazo como facilmente contornar: os pastores e doutrinação via desinformacao por whatsapp e vídeos no Youtube. A esquerda continua disputabdo aparelhos sem projeção ou sentido para maioria das pessoas, marcar ato com carro de som (não que não seja importante) e montar barraquinha na rua. Eu sou da turma do “avisei” mas fiquei em casa. Não ajuda mas fazer errado as vezes é pior…visto a estratégia lulista que em boa medida é responsável pelo sucesso de Bolsonaro.
Republicou isso em Prof. Marcio Wagner.
Excelente! Aguardo o próximo texto!