Por Pedro Felipe Narciso
O ano é 1923, a Alemanha está devastada pelo cenário do Pós-Guerra e pela rapinagem de Versalhes. A economia está um caos e a inflação explode, um pacote de cigarros chega a custar 4 bilhões de Marcos. O desemprego, a fome e o desespero são normalizados como o cotidiano de milhões de alemães.
No coração desse país devastado está uma Berlim burlesca e decadente, por onde vagam prostituas, artistas, malandros, militares desempregados e toda sorte de gente sem esperança. É também por essa Berlim que flana o personagem principal de O Ovo da Serpente, filme de Ingmar Bergman. Trata-se de Abel, um trapezista judeu estadunidense que se mudara para a cidade com o seu irmão Max e com Manuela, a ex-esposa desse último.
O enredo é disparado com o suicídio de Max, o fato misterioso a ser resolvido pelo personagem principal e a problemática pela qual os acontecimentos subsequentes se desencadeiam. No entanto, embora tenha centralidade incontestável para a estória, essa não se desenvolve linearmente a partir de causas que produzem efeitos que, costurando-se, lançam luz sobre o enigma inicial, o suicídio. Trata-se de um filme de atmosfera, cuja proposta parece ser a de transmitir ao espectador a angústia de estar sem rumo, sem perspectiva e sem esperança.
A atmosfera dessa Berlim é construída pela ausência de linearidade, pela iluminação sombria e pelo desafio diário que os personagens enfrentam para obter recursos necessário à manutenção da vida e da, não menos importante, embriaguez que dê conta suportá-la. Nos diálogos diversos observa-se a proliferação do discurso paranoico de orientação antissemita e anti-bolchevique. A prostituição e a mendicância generalizam-se. A sensação é de desordem absoluta. Nas ruas hordas de soldados desempregados pelo fim da Guerra perseguem todo tipo gente. Os soldados empregados, identificados e solidários com seus ex-colegas, nada fazem perante as cenas de violência gratuita.
Após passar por esses cenários diversos de decadência e desesperança, Abel é convencido por Manuela a aceitar a ajuda do seu amigo e cliente, o Dr. Vérgerus, que, além de lhes emprestar um pequeno apartamento, arranja para Abel um emprego em sua clínica, onde esse executaria a monótona tarefa de organizar arquivos médicos secretos. É nessa nova situação, quando o enredo parece caminhar para lugar nenhum, que o mistério, como num estalo, se resolve. Abel percebe que o apartamento é monitorado por câmeras e que na parte dos fundos daquele encontra-se uma clínica abandonada, semelhante aquela em que ele trabalha como arquivista.
Após vencer o enfrentamento físico com o personagem anônimo que o observava pelos espelhos do apartamento, Abel vai até a clínica, encontrando-se na área restrita com o Dr. Vérgerus que, com uma calma psicopática, explica o que motiva a existência da clínica e da casa vigiada, revelando, também, as causas desconhecidas que levaram o seu irmão ao suicídio. Abel, assim como o seu irmão e Manuela estavam sendo observados como cobaias de uma série de experimentos psicológicos comportamentais. Esses experimentos têm como objetivo mensurar e controlar a relação entre os estímulos necessários de angústia capazes de produzir como resposta reações extremadas e irracionais, em que os sujeitos sejam levados “a um total desequilíbrio emocional, sejam despojados de suas defesas sociais, percam as inibições, vacilem como loucos e entre as mudanças rápidas de humor respondam com reações absurdas”. Dr. Vérgerus mostra alguns dos experimentos filmados para Abel, segue abaixo a transcrição da explicação de um deles:
– Este é um experimento de resistência. Esta mulher de 30 anos se ofereceu para cuidar de um bebê de quatro meses com uma lesão cerebral que o fazia chorava dia e noite. Queríamos ver o que aconteceria a esta mulher normal e bastante inteligente se nós a fechássemos com um bebê que chorasse ininterruptamente. Como vê, depois de 12 horas ela ainda se controla perfeitamente. Entretanto, 24 horas depois podemos ver que está afetada. Sua compaixão pelo bebê doente desapareceu e se transforma em uma profunda depressão, que por sua vez, paralisa qualquer iniciativa. Ela abandona o bebê a sua sorte. Aqui podemos ver claramente que seu impulso por atacar o bebê amadureceu. Passaram-se seis horas antes de materializar suas intenções. Uma resistência extraordinária. Infelizmente, nossa câmera não conseguiu documentar o acontecimento em si.
Após seguir com a sessão de filmes dos experimentos, o Dr. Vérgerus conclui,
– Em um ou dois dias, talvez amanhã de manhã, o exército da Alemanha do Sul começará uma revolta comandada por um demente chamado Adolf Hitler. Será um fiasco descomunal. Herr Hitler carece de capacidade intelectual e de técnica e não sabe as forças tremendas com as que se enfrentará. Será arrasado, como um grande fiasco no dia em que desatar esta tormenta. Observe esta imagem. Observe toda esta gente. São incapazes de uma revolução. Estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas em dez anos os de 10 terão 20 e os de 15 terão 25. Eles terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência. Alguém se adiantará e colocará seus sentimentos em palavras. Alguém prometerá um futuro. Alguém fará suas exigências. Alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos.
Ao fim, enquanto a polícia arromba a porta da clínica, Dr. Vérgerus se suicida tomando uma cápsula de cianureto. Adentrando o local, o inspetor de polícia noticia:
– Herr Hitler falhou com seu golpe de estado em Monique. Foi um fiasco descomunal. Herr Hitler e seu bando subestimaram a força da democracia alemã.
O filme é incrível em todos os sentidos, quase que nos transporta para a República de Weimar. O desencantamento absoluto, o cansaço e a ausência de perspectiva estão ali. Pela película transmite-se também uma contradição de sentimentos extremamente angustiantes e paralisantes, ao mesmo tempo em que se tem revolta, tem-se impotência; ao mesmo tempo em que se tem medo, tem-se a sensação de que nada pode piorar. O aspecto realístico do filme é impecável.
Observando então a radicalidade da situação de Weimar e o final trágico gestado ali é quase óbvio que não cabe comparação histórica com a situação que estamos vivendo. A variante germânica do fascismo só é comparável em brutalidade e violência com as campanhas coloniais contra os povos americanos, africanos e asiáticos. No entanto, curiosamente, o elemento ficcional, não histórico, do filme de Bergman é bastante pertinente se entendido como uma alegoria antecipada do momento em que estamos vivendo no Brasil de hoje. O Dr. Vérgerus, como relatado acima, conduzia pesquisas que mapeavam modalidades comportamentais mediante o estudo de grupos focais. Os estudos de Vérgerus tinham como base teórico-metodológica a orientação behaviorista, cujo princípio básico é identificar padrões de relação entre determinados estímulos e determinadas respostas, ou seja, sob determinadas condições e sob determinados estímulos obtêm-se, quase que invariavelmente, determinados comportamentos.
Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que no futuro os grupos focais seriam substituídos por quase a totalidade da população? Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que quase todas as pessoas morariam em casas cercadas por câmeras e sensores e voluntariamente quase que 24 horas por dia produziriam padrões de comportamento dando detalhes sobre localização, itens preferidos de consumo, estado de ânimo e exporiam em minúcias seus medos, fragilidades e desejos? Pois bem, esse cenário distópico que a ficção não se atreveu a imaginar é a realidade de todos os contemporâneos do Facebook, Twitter, whatsApp e afins.
Já é do conhecimento de todos que as informações produzidas pelos os usuários das redes sociais são vendidas por essas mesmas companhias para empresas especialistas em propaganda. Essas empresas, tais como a Cambridge Analytica, de Steve Bannon (o Dr. Vérgerus da vida real), cruzam essas informações traçando perfis psicológicos detalhados, podendo, assim, mapear esses perfis diferencialmente, produzindo estímulos personalizados para cada grupo. Alguns podem ser mais sensíveis ao “Kit-gay”, outros à “bolivarianização do Brasil”, outros, ainda, ao “direito de armar-se contra a bandidagem”. Por esses meios as fake-news são produzidas quase que por encomenda, adequando-se ao perfil do receptor das mensagens. É dessa produção personalizada e direcionada das falsas notícias que se deriva a fé inabalável dos seus consumidores e divulgadores espontâneos, o que anula qualquer possibilidade de convencimento pelo diálogo racional. Os crentes não acreditam somente porque estão sendo manipulados por uma força externa, mas porque querem e, sobretudo, porque precisam.
Esse fenômeno é explicado por Slavoj Zizek como sintoma de um impasse simbólico generalizado. O filósofo esloveno, seguindo pela tradição da psicanálise, entende que o mundo exterior se apresenta ao homem comum como uma fonte inesgotável de restrições e ameaças. Esse mundo externo, além de ameaçador, está cada vez mais complexo, descentrado, ininteligível e imprevisível, “tudo que é solido se desmancha no ar.” Portanto, o homem comum além de sentir-se ameaçado, não sabe sequer identificar a origem da ameaça, menos ainda é capaz de identificar os meios necessários para combate-la.
É nesse contexto que o discurso paranoico e simplificador cativa a sua audiência. Os medos são lidos de modo personalizado e a origem desses medos diversos é unificada como sendo consequência da existência de um ponto único, do qual emana toda a diversidade de males. Com essa operação de simplificação grotesca do real resolve-se o impasse simbólico das massas dispersas, afinal, basta eliminar aquele pontinho e toda a gama de medos, restrições e frustrações desaparece.
Agora tudo fica mais fácil, o real está dividido entre aqueles que são do bem e estão comigo e aqueles que estão com o ponto e contra mim. Qualquer argumentação que siga por outro caminho e tente demonstrar que, talvez, por acaso, o ponto não tenha responsabilidade sobre tudo o que se julgue desagradável, é entendido como mais uma manifestação malévola do ponto querendo confundir aqueles que são cidadãos de bem. Deriva-se disso o anti-intelectualismo que sempre acompanha essa massa carente e apaixonada.
Obviamente, o bom senso indica que as origens explicativas do fascismo tupiniquim têm outros elementos, inclusive, mais importantes que os destacados neste texto que não tem, sequer, a pretensão de explicar o fenômeno. No entanto, uma questão importante que merece ser frisada pela novidade que significa é o aparato técnico e científico de que dispõem atualmente os grupos obscurantistas que visam manipular o sentimento popular. O trabalho de militância via panfleto virou quase que trabalho artesanal se comparado ao trabalho científico desenvolvido por Bannon e seus assessores, que é de causar inveja até à imaginação de Bergman e ao seu inventivo e doentio personagem, o Dr. Vérgerus, que em uma das suas provocações finais adverte Abel:
– Cômico, não é verdade, Abel? Algum dia poderá dizer isto a quem quer que lhe dê ouvidos. Ninguém vai acreditar em você!
2 comentários em “Brasil, Bannon e Bolsonaro: alegoria antecipada em “O Ovo da Serpente.””
Republicou isso em Studiume comentado:
Brilhante!!!