Por Daniel Alves Teixeira, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia.
O recém-lançado livro “Ensaio sobre mortos-vivos: The Walking Dead e Outras Metáforas”, organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves, e contendo textos de diversos autores, entre eles Christian Dunker, Ivan Estêvão e Mlader Dolar, para citar somente alguns dos nomes mais conhecidos do público em geral, possui diversos méritos dignos de destaque, que vão desde a arrojada edição do livro, que prestigia o tema abordado, ao mesmo tempo que dá leveza ao conteúdo, convidando aqueles que não estão familiarizados com seu denso conteúdo acadêmico a se arriscarem na leitura, até a variada seleção dos temas que abordam por diversos ângulos um ícone bastante atual da cultura pop, o morto-vivo, ou o zumbi, que volta a meia ganha novas vestes em filmes e seriados de diversos gêneros.
Assim, cada um dos textos apresentados no livro perpassa, de pontos de vista diferentes, tanto filosóficos, psicanalíticos como sociais, as diversas metáforas que subjazem a figura do morto-vivo. Da insaciável volúpia consumista que parece alienar nossos desejos tal qual um zumbi anseia por tripas humanas, até as figuras semi-vivas e marginalizadas do capitalismo global, o livro atravessa diversas facetas de nossa sociedade, tornando latente o fato de que as manifestações culturais sobre os mortos-vivos podem conter mais do que imaginávamos, trazendo aspectos sombrios de nossa própria realidade.
Mas eu gostaria, nesta resenha, de destacar o que para mim pode ser o mérito não de cada um de seus textos, mas do próprio tema geral trazido pelo livro. Tratar a figura do morto-vivo como um sério problema filosófico e psicanalítico vai além das metáforas sociais discutidas para nos colocar no cerne da difícil questão da subjetividade.
Não é de espantar se causar estranheza afirmar que os mortos-vivos nos trazem ao cerne da questão da subjetividade. Afinal, o que poderia parecer mais contrário à subjetividade do que o vazio e a vontade acéfala dos mortos-vivos? Não seriam estes monstros o exato oposto da vivacidade e complexidade que caracterizariam a subjetividade humana? Todavia, já em Hegel a relação da consciência com a morte aparece como condição fundamental para o surgimento da subjetividade:
“A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a vida que se atemoriza perante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser. Trata-se do mesmo poder que acima denominou-se sujeito, e que ao dar, em seu elemento, ser-aí à determinidade, suprassume a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que é apenas essente em geral. Portanto, o sujeito é a substância verdadeira, o ser ou a imediatez, que não tem fora de si a mediação, mas é mediação mesma.”[1]
Nos atentemos para a afirmação de Hegel de que “esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser”, o que, para ele, é justamente “o poder que acima se denominou sujeito”. Não devemos interpretar essa passagem como se o negativo “deixasse de ser” para então se tornar algo existente, o que poderia ser lido como uma versão da negação da negação hegeliana.[2] Antes, é justamente através desse demorar-se no negativo que o negativo vem a ser na própria forma da inexistência, como negação de tudo aquilo que é. Assim, a relação com o negativo, ou, podemos dizer, com o não-ser, é uma condição essencial para o aparecimento do Sujeito. E como argumenta Žižek, grande parte da filosofia pós-hegeliana é uma reação contra esta soturna constatação de Hegel. Pensemos somente em algumas das maiores obras da filosofia do século XX. Quase todas estão diretamente focadas na questão do ser e da existência. Heidegger, com “O ser e o tempo”, Sartre com “O ser e o nada” e Badiou com “O ser e evento”, para lembrar apenas de alguns. É certo que a questão do ser não é inédita na filosofia, e talvez seja mesmo, desde o seu nascimento na Grécia, seu principal eixo de questionamento. O ponto é que a questão do ser atravessou o pensamento do século XX tendo como sombra a negatividade hegeliana, seja ela rejeitada, reconfigurada ou simplesmente repensada, em diversos contextos. E um dos grandes méritos de Ensaios sobre os mortos vivos é nos colocar novamente em contato, em franco diálogo, com essa negatividade que sustenta a subjetividade.
Não é por outro motivo que várias das mais emblemáticas e lembradas frases do psicanalista Jacques Lacan possuem a negação como componente fundamental. “A mulher não existe”, “não há relação sexual”, “o não do pai”, “existe uma não-relação”, todas estas afirmações de Lacan estão sustentadas na negação de um predicado ou na afirmação de um predicado negativo. No mais das vezes, tais enunciados impactam mais por aquilo que é negado, por indicarem a não-existência de algo que supostamente deveria existir (a mulher, a relação sexual). Mas porque tanto espanto com a inexistência? Por que a não-existência incomoda tanto? Esta é a verdadeira questão.
Isso se deve a um estranho paradoxo (bem percebido por Alain Badiou): após a morte de Deus, dado como inexistente e parte da ainda religiosa tradição metafísica moderna, fechado ao homem qualquer acesso à transcendência, a existência é tudo o que é, só pode haver o existente. Tudo que há existe (e deve existir). Está é, de certa forma, a nossa tradição materialista mais comum.
Mas os zumbis estão no limiar da existência. Andam, se movem, em busca incessante por seu alimento. Eles não propriamente existem, eles insistem. Está aí um motivo a mais para o espanto com o paradoxo do morto-vivo: eles tornam palpável a (in)existência intrínseca à (ex)istência. É importante notar que os zumbis não estão simplesmente mortos, eles estão estranhamente vivos. O vazio de seus olhos é correlato de uma fome infinita, representada através da ânsia pela comida-objeto. E tanto Žižek como Zupančič tem insistido em seus últimos livros na primazia estrutural da relação entre $ – a em face da noção mais assentada da relação entre sujeito e objeto como relação entre consciência interior e realidade exterior, ecoando a afirmação de Hegel do trecho que destacamos acima de que o sujeito “não tem fora de si a mediação, mas é a mediação mesma.”
“Esta, então, é a correlação original: o puro Real como barreira puramente forma, o vazio de sua própria impossibilidade, e o excesso que é um excesso em relação a nada – ou, nos matemas de Lacan, $ e a.”[3]
Ou seja, quanto a subjetividade propriamente dita, a paradoxal aparição de um objeto inexistente é condição mesma para que a existência surja como negação da inexistência. Não há aqui um antes e depois propriamente dito (algo existe e depois passa a não existir, ou algo que não existia vem a existir), pois a existência deve necessariamente sustentar-se no negativo para que apareça enquanto tal, como negação da não-existência.
Traços fundamentais destas questões aparecem também na obra de Alain Badiou. O Evento badiouniano também está absolutamente ligado à não-existência. O Evento “é do domínio d’o que não-é-o-ser-enquanto-ser”.
“Que significa este ponto, que é a consequência de uma lei sobre o discurso do ser-enquanto-ser? É preciso tomá-lo ao pé da letra: do evento, a ontologia nada tem a dizer. Ou, mais exatamente: ela demonstra que ele não é, porquanto é um teorema da ontologia que toda autopertença contradiz uma Ideia fundamental do múltiplo, aquela que prescreve a finitude fundadora da origem para toda apresentação.
O axioma de fundação delimita o ser pela interdição do evento. Faz, portanto, advir o-que-não-é-o-ser, como ponto de impossível do discurso sobre o ser-enquanto-ser, e exibe seu emblema significante, que é o múltiplo tal como ele se apresenta, no fulgor, que o ser se abole, do traço-de-um.”[4]
Podemos ver aqui o problema com o que chamamos mais acima de “materialismo mais comum”. Quando delimitamos a existência à tudo aquilo que é “realmente existente”, não há espaço para o surgimento do evento, já que este “é errático, e a partir das situações não podemos decidir se ele existe ou não existe”, razão pela qual “é preciso legiferar sem lei quanto a sua existência”[5]. O Evento inscreve no ser uma possibilidade que, do ponto de vista desse próprio ser (como ser-conhecido), só pode parecer como algo indecidível quanto a sua existência.
É bastante curioso notar que Badiou e Žižek são mais incisivamente discordantes precisamente em face da questão da pulsão de morte, noção psicanalítica cunhada por Freud, e que nos remete mais diretamente ao ícone popular do morto-vivo. Para Žižek, a pulsão de morte é um fator constitutivo da subjetividade. Aparecimento originário do negativo do Sujeito, a pulsão de morte faz do homem algo mais do que um ser meramente vivo como os outros animais, introduzindo um excesso propriamente inumano em sua existência. Já Badiou, por outro lado, prefere sempre exaltar o potencial inventivo e interventor do Sujeito fiel ao Evento, este último sim “excessivo” (também no sentido de exceção) em relação ao ser. Existe, para Badiou, na obsessão pelo tema da (ou pulsão de) morte, um fechamento das possibilidades infinitas de um Evento e uma circunscrição do tema do Sujeito à finitude e ao fracasso. Mas para Žižek os Eventos só seriam possíveis em função deste momento anterior e primário de “recolhimento absoluto” da subjetividade no negativo, uma espécie de contração primordial que abre o espaço mesmo através do qual um Evento pode vir a ter lugar.
Seja como for, que tamanha e tão fundamental controvérsia entre dois filósofos tão importantes de nosso tempo esteja tão intimamente ligada ao tema do morto-vivo demonstra que os “Ensaios sobre mortos-vivos: The Walking Dead e outras metáforas” traz problemas filosóficos que estão mais vivos do que nunca, ou melhor, que nunca estiverem verdadeiramente mortos. Que o leitor esteja então atento em sua leitura, pois quando menos esperar poderá se deparar com verdadeiros mortos-vivos da filosofia, questões aparentemente esquecidas que, no entanto, estão prestes a tornar a assombrar o pensamento contemporâneo.
[1] Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito, Editora Vozes, 2008, pg. 44.
[2] Falando sobre a questão da negação recomendo vivamente o texto de Alenka Zupančič “Hegel e Freud: entre Aufhebung e Verneinung”, disponível em https://18.118.106.12/2017/09/06/hegel-e-freud-entre-aufhebung-e-verneinung/
[3] ŽIŽEK, Slavoj. Incontinence of the void, MIT Press, 2017, pg. 20.
[4] BADIOU, Alain. Ser e Evento, Editora Zahar, pg. 156
[5] BADIOU, Alain. Ser e Evento, Editora Zahar, pg. 161
REFERÊNCIAS:
__BADIOU, Alain. Ser e Evento, Editora Zahar.
__HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito, Editora Vozes, 2008
__ŽIŽEK, Slavoj. Incontinence of the void, MIT Press, 2017
__ZUPANČIČ, Alenka. What’s Sex, MIT Press, 2017.