Por Jones Manoel
Começou oficialmente o Governo Bolsonaro. Já no primeiro dia de governo, o bolsonarismo reafirma para quem duvidava do seu projeto de guerra de classe contra os explorados e oprimidos sem qualquer máscara republicana. O presidente Bolsonaro trata os monopólios de mídia como inimigos de morte e destina um desprezo visceral à categoria dos jornalistas. No discurso de posse, reafirmou todos os seus jargões contra a “ideologia de gênero”, a “doutrinação nas escolas”, a esquerda, a corrupção, o “intervencionismo estatal”, etc. Acabou com o Ministério do Trabalho, realizou o pior reajuste do salário mínimo em 24 anos, retirou a população LGBT das diretrizes de promoção dos direitos humanos, colocou a demarcação de terras indígenas nas mãos dos latifundiários que controlam o Ministério da Agricultura. A lista poderia continuar, mas bastam esses exemplos para sinalizar algo muito claro: é guerra!
Na oposição ao governo Bolsonaro, duas tendências já estão claras e atuando com força. A primeira tenta “combater” o bolsonarismo a partir de uma perspectiva liberal-moderada, condenando algumas ações contra “minorias sociais” e a forma de gestão do poder, como o uso de decretos-leis (como se no presidencialismo o decreto-lei não fosse amplamente utilizado por todos os presidentes) e tende a criticar o bolsonarismo a partir do filtro anticomunista, buscando igualar “extrema esquerda” e “extrema direita” como dois polos idênticos de um mesmo corpo. O jornalista Pedro Marin, da Revista Opera, resumiu com brilhantismo as últimas manifestações dessa tendência e me sinto desobrigado a repetir seus argumentos [1].
A segunda tendência, também muito forte, é uma crítica ao bolsonarismo a partir de uma perspectiva nostálgica do período petista. A noção básica é que antes o Brasil tinha uma política externa independente, uma democracia participativa, estava reduzindo a pobreza, miséria, desigualdades e construindo direitos sociais universais para todos, como a política de cotas, e que (primeiro com Temer e agora com Bolsonaro) temos uma série de “retrocessos” e desmontes de tudo que foi feito. Exemplo típico disso são as milhares de comparações que circularam nas redes sociais entre imagens da posse de Lula e a de Jair Bolsonaro [2]. Dentro dessa visão, entre o período petista e a Era Bolsonarista, não existe qualquer continuidade, relação de causalidade, apenas a pura e simplista ruptura.
Essas duas tendências apresentam muitas semelhanças. Primeiro, são totalmente impotentes no enfrentamento ao governo Bolsonaro. O discurso republicano e liberal de defesa da democracia não mobiliza a imensa maioria dos trabalhadores. Como o impedimento de Dilma e a resistência ao governo Temer mostrou, os momentos de maior força de massas foram na defesa da previdência social e contra a retirada dos direitos trabalhistas; na defesa da democracia em abstrato, só os setores já organizados da classe, as camadas médias, parte da juventude e pessoas ligadas à cultura é que se mobilizavam. E mesmo esses setores, demonstram um cansaço com seguidas derrotas sob a bandeira de defesa da democracia. É uma bandeira esgotada.
Além disso, a crítica liberal ao governo Bolsonaro é deseducadora para as massas exploradas. Explico isso em dois exemplos. Embora tenha sido odiosa a situação em que os jornalistas foram submetidos na posse de Bolsonaro [3], o repúdio aos monopólios de mídia e o total desprezo que Bolsonaro lhes dedica são corretos. O bordão liberal diz que a mídia e a “liberdade de imprensa” são fundamentais à democracia, como se a comunicação não fosse um grande negócio capitalista como qualquer outro e não respondesse aos imperativos da dominação de classe. A mídia que os liberais dizem ser fundamental à democracia é a mesma que, dentre outras coisas, legitima o genocídio da população negra e a destruição do patrimônio nacional em benefício dos monopólios estrangeiros.
Qualquer partido político comprometido com o povo trabalhador deve não só repudiar esses monopólios de mídia, como caso chegue ao governo, atacá-los frontalmente, sem dó e nem piedade, asfixiar monopólios como a Rede Globo. O velho Leonel Brizola dizia que caso fosse eleito presidente, seu primeiro ato de governo seria rever a concessão da Rede Globo. Estava corretíssimo. O liberalismo de esquerda do PT é que conciliou com esses monopólios, proibiu a entrada da Telesur no Brasil, nada fez de estrutural para democratizar a comunicação e protagonizou episódios ridículos, como Lula ir no funeral de Roberto Marinho ou José Dirceu achar que a Globo estava fechada com o Governo Lula [4].
O governo Bolsonaro também está promovendo um “pente fino” demitindo todos os funcionários comissionados que têm algum alinhado progressista ou de esquerda. A ideia é no alto escalão, especialmente em todos os cargos preenchidos sem concurso público, criar um bloco conservador sem contradições e coeso. A crítica liberal, de novo, diz que isso é errado, pois devesse priorizar o “mérito acima da ideologia”, a realidade, porém, é que FHC fez o mesmo que Bolsonaro, assim como todo governo que quer a sério aplicar seu programa promove uma série de expurgos no aparato estatal. É assim que se joga o jogo. Os governos petistas, como não queriam ruptura com o sistema político, não só mantiveram vários quadros neoliberais no aparato estatal, como recrutaram outros, como no caso de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central no Governo Lula.
O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o instituto de pesquisa não ligado a uma universidade mais importante do país, durante a era petista abrigou uma série de liberais e neoliberais. O petismo produziu ações tão ridículas na política que era possível ser do IPEA e do Instituto Millenium (aparelho ideológico neoliberal e reacionário que fazia oposição de morte aos governos petistas).
A crítica liberal nos dois casos apela para um republicanismo abstrato e uma neutralidade técnica na gestão pública que simplesmente não existem. Política é a continuidade da guerra por outros meios e estar no governo deve significar ter uma trincheira avançada para enfraquecer as posições do inimigo visando sua derrota. Quem pensa o contrário ou é um ingênuo que está impregnado até a alma por ideologias democráticas pequeno-burguesas ou é alguém imerso no sistema que sonha em fazer a sua gestão, voltar a ser o gerente da ordem. Para esses senhores, a crítica deve ser bem comportada e “responsável”.
Nesse sentido, os comunistas ao mesmo tempo em que em vários momentos vão construir ações coletivas com liberais, democratas, liberais de esquerda e a centro-esquerda (PT, PCdoB, PDT, entre outros partidos) contra os ataques do bolsonarismo, têm desde já que criar uma linha de demarcação clara na grande frente de oposição ao bolsonarismo. Como diria Lênin, temos que “marchar separado e golpear junto”, deixar bem clara a diferençada crítica comunista ao governo Bolsonaro das críticas em geral. Como fazê-lo? Arrisco três linhas de atuação.
A primeira é que a maioria da oposição ao bolsonarismo, inclusive os “progressistas”, está disposta a criticar o Governo Bolsonaro e não a classe dominante e a dominação imperialista que o bolsonarismo personifica e muito menos o Estado burguês e seu sistema de dominação política. É uma oposição de governo, não de classe. A agitação e propaganda dos comunistas já vinculam todos os ataques dos governos de plantão aos interesses dos empresários, mas agora isso tem que ser intensificado, potencializado, reforçado. Toda e qualquer medida de ataque do novo presidente deve ser explicada em termos de interesse de classe e a possibilidade de sua execução à forma política burguesa do Estado.
Se isso já é importante em si para os comunistas, na atual conjuntura brasileira, tem uma importância ainda maior por dois motivos básicos. O primeiro é que existe um deslumbramento de muitos trabalhadores com a burguesia (chamado apologeticamente de “empreenderes”) e o sentimento de ódio de classe ao patrão, nos últimos anos, sofreu um enfraquecimento. É preciso para ontem fortalecer o antagonismo que nasce do solo da fábrica e da empresa. O segundo é que, provavelmente, deve acontecer em breve os primeiros rachas no bloco burguês de apoio a Bolsonaro. O setor industrial da burguesia, os micro e pequenos negócios e talvez até o latifúndio agroexportador (a depender do nível de alinhamento do Governo Bolsonaro com os EUA) podem começar a desagregar do bolsonarismo e fortalecer uma frente de oposição liberal. Uma derrota eleitoral de Bolsonaro conduzido pelo liberalismo burguês não representará qualquer vitória para os trabalhadores.
A segunda linha de atuação é que não se deve perder tempo criticando a forma. Pouca importa, por exemplo, se o ataque aos trabalhadores foi realizado a partir de decreto-lei ou projeto normal ou o absurdo do dia dito por Bolsonaro e sua equipe. O foco dos comunistas deve ser a crítica vigilante contra a destruição das condições materiais de sobrevivência dos explorados e oprimidos, a entrega das riquezas naturais, empresas públicas e a fragilização da soberania nacional. Por exemplo, no caso da colocação da demarcação de terras indígenas sob o controle dos latifundiários do Ministério da Agricultura, não importa a “ausência de diálogo” ou não ter passado pelo Congresso. Isso é detalhe. O fundamental é mostrar como isso significará uma aceleração do extermínio dos povos indígenas e as consequências nefastas para o meio ambiente. O foco, sempre, deve ser o conteúdo explicando em pormenores a consequência de cada medida e deixando cada vez mais claro para o conjunto do povo trabalhador que este é um governo do grande capital nacional e estrangeiro.
Por último, a extrema-direita colocou na ordem do dia o debate sobre o socialismo. Com exceção do PCB e do PSTU – falando apenas dos partidos com registro no TSE – a maioria da esquerda brasileira tem medo de falar a palavra socialismo. É necessário combater com firmeza o anticomunismo, as mentiras dos intelectuais da burguesia sobre as experiências socialistas dos trabalhadores (as do passado e as atuais) e falar abertamente sobre socialismo e a Revolução Socialista Brasileira. Se hoje parcelas expressivas dos trabalhadores brasileiros identificam o socialismo com o PT e como algo ruim e imoral, a resistência ao bolsonarismo tem que ser uma ponte para reverter tal quadro. Caso contrário, de novo, a oposição liberal terá mais chances de conduzir a crítica ao bolsonarismo. O tempo de tolerância com o anticomunismo – como o expresso por muitos quadros do PSOL, como Jean Wyllys e Luciana Genro –, passou [5].
Tendo estes três nortes de ação na construção da resistência ao bolsonarismo, estaremos mais fortes para não só resistir na guerra de classe burguesa, como nos diferenciar do liberalismo e buscar a hegemonia política no largo grupo de oposição. Aos que querem fazer oposição ao Governo Bolsonaro pelo centro da política a partir de um liberalismo “crítico”, boa sorte, senhores. O pântano os espera. E, como sabemos, caso haja uma explosão de massas ao governo protofascista em curso, não tenha dúvidas, muitos desses liberais na oposição vão abraçar de corpo e alma Bolsonaro e seus generais. A tarefa é difícil, mas as chances de vitória ficam maiores com independência de classe e radicalidade política.
[1]- http://revistaopera.com.br/2018/12/21/no-ninguem-solta-a-mao-de-ninguem-os-comunistas-ja-viraram-alvo/
[2] – https://www.facebook.com/MidiaNINJA/photos/a.164308700393950/1374114469413361/?type=3&theater
[3] –https://catracalivre.com.br/parceiros-catraca/dimenstein/folha-relata-humilhacao-a-jornalistas-na-posse-de-bolsonaro/
[4] – https://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2015/08/04/jose-dirceu-teria-dito-globo-e-tv-governo/
[5] – https://www.youtube.com/watch?v=7be2UFZfFXQ&t=1s