Luta por reconhecimento e a centralidade do sofrimento em Axel Honneth: potencial emancipatório e constituição de vínculos políticos

Por Heribaldo Lopes Maia Neto[1]

“Cada lágrima nos ensina uma verdade”

Ugo Foscolo


A teoria crítica é uma corrente filosófica ampla e bastante heterogênea, porém há um eixo central que permite com que se identifique um núcleo epistemológico que a caracterize: haja visto que essa tradição não visa pensar a sociedade apenas a partir de seu funcionamento imanente, mas busca pensá-la “à luz de uma emancipação” (NOBRE, 2009, p. 9). Contudo, a conturbada conjuntura histórica da segunda metade do século XX, a conjuntura histórica de declínio do socialismo real e de perda de imantação do marxismo como possibilidades de pensar a emancipação, forçou a teoria crítica a um acerto de contas com seu próprio campo teórico (NOBRE, 2012, p. 23).

Nesse processo de acerto de contas, a categoria de sofrimento, que já tinha importância com Adorno, por exemplo, ganha um novo impulso dentro de um quadro conceitual mais amplo e aprofundado. Isso porque ela permite uma radical leitura crítica da totalidade das relações sociais – ou seja: das formas de vida, no sentido de criticar os próprios vínculos éticos que embasam a noção de vida boa. Assim, o sofrimento aparece enquanto elemento sintomático no diagnóstico de época. É partindo dessa categoria que diversos teóricos dessa tradição pensam criticamente os vínculos sociais de um tempo e seus potenciais emancipatórios.

Diante desse breve panorama, o texto buscará, num primeiro momento, colocar argumentos acerca de como, partindo da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, dentro de seu quadro conceitual do reconhecimento está intrincado a categoria de sofrimento, em sua proposta de virada materialista das proposições do jovem Hegel. Defenderemos, portanto, a tese de que essa categoria ocupa um lugar central no quadro conceitual proposto em sua principal obra, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. A centralidade do sofrimento permite a teoria do reconhecimento à base empírica de uma análise não só do indivíduo isolado ou da sociedade enquanto organismo, mas a possibilidade de crítica dos vínculos sociais em sua totalidade (HONNETH, 2015, p. 576).

Num segundo momento, partindo de críticas da proposta honnethiana – a chamada leitura negativa da intersubjetividade –, o texto irá expor elementos de como o desenvolvimento conceitual do reconhecimento remete a uma ambivalência da categoria de sofrimento. Isso porque é preciso pensar que o sofrimento não se resume a quebra de expectativas normativas e identitárias do reconhecimento, e que, portanto, o próprio modelo de Honneth não busca abarcar toda a dimensão subjetiva, entendendo que há aspectos do sofrimento humano que a teoria do reconhecimento honnethiana não dá conta. A partir dessa crítica, o texto buscará desdobrar os limites do modelo de reconhecimento e seu reflexo na categoria de sofrimento; pois, se por um lado ele leva os sujeitos a uma luta por reconhecimento que inicialmente visa inserção na sociedade, por outro lado também indica que são esses mesmos padrões de reconhecibilidade, que o sujeito pretende se inserir, que lhe causa o sofrimento.

Por fim, levando em conta o apanhado teórico do reconhecimento e suas consequências nas formas de entender o sofrimento, em sua dimensão social, e não estrutural do processo de subjetivação, como movimentos sociais podem servir como médium entre a experiência subjetiva do sofrimento oriunda de injustiças e a ação política orientada pela luta por reconhecimento, já que não necessariamente o sofrimento, por si só, serve de impulso cognitivo para uma luta moralmente direcionada. Transversalmente, colocaremos, no sentido de suscitar o debate, a questão de como pode o sofrimento servir de base para constituir vínculos políticos? Trata-se de pensar como os movimentos sociais podem se utilizar desse vocabulário do sofrimento, oferecido pela Teoria Crítica, para (re)pensarem questões como organização e crítica social voltada para a ação política emancipatória.

  1. Luta por reconhecimento e a centralidade do conceito de sofrimento em Axel Honneth

A tentativa de reconstrução teórica, proposta por Honneth, da Teoria Crítica tem como objetivo apoiar um projeto emancipatório baseado na análise da própria dinâmica dos vínculos sociais, e assim superar a então aporia que via em Adorno e Horkheimer – que a assumem conscientemente, “dizendo que ela é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou extremamente precária” (NOBRE, 2009, p. 12). Em sua principal obra, Luta por Reconhecimento, ele retorna à Hegel para propor o eixo central de seu modelo crítico: as instituições garantidoras da liberdade e os vínculos éticos intersubjetivos são constituídos de conflitos práticos “dos sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade” (HONNETH, 2009, p. 29).

A partir dessa ideia central, há de se perceber que Honneth compreende que “as estruturas de reconhecimento são os pré-requisitos sociais do constituir-se da identidade pessoal e do vínculo entre os indivíduos em tal modo socializados” (TESTA, 2008, p. 96). A teoria do reconhecimento é compreendida “no sentido de uma teoria da condição necessária da socialização humana” (HONNETH, 2009, p. 119). O reconhecimento permite uma abertura crítica da dimensão das interações sociais, pois se elas são processos contínuos de lutas por reconhecimento que estruturam a própria socialização, então ele permite que sejam diagnosticadas determinadas formas de dominação e opressão. Esse diagnóstico abre a possibilidade de identificar o significado específico das relações deficitárias de reconhecimento e suas consequências.

O próprio processo de individuação dos sujeitos emprega à intersubjetividade um caráter conflitivo. Sendo o sujeito cindido entre um “Me” que é objetivo, que a aparece na realidade, o resultado prático da relação com o outro, só podendo ser concebido no plural como “vários Mes”; e um “I” (Eu) que não aparece em cena, que não é objeto da consciência, mas é o próprio caráter dialógico da experiência subjetiva – ou seja, é o potencial criativo de possíveis respostas práticas a uma situação que constituirá um “Me”[2]. O sujeito se constitui, portanto, de uma tensão criativa entre um impulso por diferenciação identitária vindo do “I” e um “Me” que se regula através do contato determinado pelo reconhecimento do outro – que traz consigo toda uma demanda normativa. Essa exigência do “I” que força o sujeito a engajar-se por novas formas de reconhecimento social (HONNETH, 2009, p. 141) que constitui a lógica conflituosa que permeia a sociedade. O papel do conflito é estruturante da gramática dos padrões de reconhecibilidade construídos socialmente, pois aos processos de conflitos passou a ser atribuído um impulso moral, no qual o processo de luta social é um médium para o desenvolvimento de vínculos éticos mais maduros. Assim, a

“vida ética de uma sociedade representa as formas de uma intersubjetividade prática na qual a vinculação entre os sujeitos e, portanto, a comunidade de indivíduos interrelacionados asseguram-se por um movimento de reconhecimento.” (CAMPELLO, 2012, p. 106)

Há uma característica fundamental nos vínculos formados pelo reconhecimento: há um imperativo de reciprocidade que permeia as interações afetivas e sociais entre os sujeitos modelando o conflito por reconhecimento. Haja vista que a formação da identidade de um sujeito depende necessariamente da experiência do reconhecimento recíproco, pois

“se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir confirmado por ele” (HONNETH, 2009, p. 78)

A reciprocidade é, segundo Italo Testa (2008), uma regra de ouro que norteia todo o projeto ético-normativo de Honneth, permitindo que haja um parâmetro para se entender os conflitos por reconhecimento, e assim criticar certos padrões de reconhecibilidade que determinam formas de vida.

“O nexo de reciprocidade que reforça relações consigo e relações com outros não é tematizado positivamente e explicitado na sua estrutura lógica. A atenção é principalmente focalizada sobre a experiência negativa de não-reconhecimento, à medida que ela torna possível cognitivamente a centralidade do reconhecimento para a formação e a socialização de uma identidade atingida e, juntamente, esclarece o que pode motivar moralmente os sujeitos a lutar para obter o reconhecimento negado. Por essa via se chega a compreender que os sentimentos morais reativos têm uma estrutura normativa, enquanto reagem à negação de pretensões de reconhecimento que cada indivíduo deve pressupor satisfeitas por outros para poder-se autoreconhecer positivamente” (TESTA, 2008, p. 120)

Partindo de uma longa tradição da teoria social, e fortemente influenciado por Hegel e pelo psicólogo do pragmatismo americano G. H. Mead, Honneth propõe um modelo tripartido de esferas de socialização onde se desdobram os processos de lutas por reconhecimento da identidade: cabendo à família a experiência afetiva do amor (1), ao Estado o reconhecimento jurídico (2) e a sociedade civil a experiência da solidariedade (3). Essa divisão representa um progressivo grau de satisfação de carências possibilitadas por relações de reconhecimento diferenciadas por níveis mais complexos de individuações, formando camadas mais profundas de uma autorrelação positiva.

(1) Para descrever a esfera da família Honneth recorre ao psicanalista inglês Donald Winnicott. A teoria dos objetos permitiu que se desenvolvesse empiricamente a concepção hegeliana de amor como parâmetro normativo dessa primeira etapa do reconhecimento, pois “na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respeito do outro” (HONNETH, 2009, p. 161). Em princípio, é na relação de dedicação afetiva suficientemente boa entre mãe[3]-bebê, que o sujeito pode desenvolver um uma autorrelação, e também com o outro, saudável, que é fundamental para um processo de amadurecimento afetivo. Como descreve Honneth:

“essa relação de reconhecimento prepara o caminho para uma espécie de autorrelação em que os sujeitos alcançam mutuamente uma confiança elementar em si mesmos, ela precede, tanto lógica como geneticamente, toda outra forma de reconhecimento recíproco: aquela camada fundamental de uma segurança emotiva não apenas na experiência, mas também na manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada pela experiência intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito” (ibid., p. 177)

Já nessa primeira esfera, a experiência do sofrimento possui uma importância destacada, principalmente para pensar um critério de bom desenvolvimento das relações afetivas primárias e seus desvios que se caracterizam por uma reciprocidade malsucedida. Tal importância acontece já que: se por um lado o desenvolvimento saudável das relações amorosas primárias permitem aos sujeitos uma experiência de autoconfiança que o permite estar só sem se sentir abandonado – surgindo uma delimitação reciprocamente querida; por outro, são os insucessos na balança do reconhecimento, através das contribuições de Jéssica Benjamin nos estudos sobre as “deformações patológicas da relação amorosa” (ibid., p. 175, 176) que permite uma virada materialista ao resgate da forma de reconhecimento do amor que Hegel propôs.

(2) Essa segunda esfera de reconhecimento, o Direito, parte da ideia de que os sujeitos devem, após desenvolverem uma autoconfiança, para alargarem seu horizonte de relacionamentos, se percebam enquanto sujeitos iguais e livres. Para isso o Direito precisa proporcionar um novo modelo de reciprocidade, mais exigente e complexo que o amor: o sujeito deve ser reconhecido em virtude de uma propriedade universal, que o torne tão respeitável quanto o outro: a “liberdade da vontade da pessoa” (HONNETH, 2009, p. 184). Assim, Honneth coloca que é central para o sistema jurídico o reconhecimento “daquela propriedade universal que faz dele [o ser humano] uma pessoa” (ibid., 187). É justamente porque o sujeito, ao ter respeitado seu estatuto de pessoa como todas as outras que ele pode desenvolver o autorrespeito, já que ele é merecedor do respeito de todos como iguais,

“visto que possuir direitos individuais significa poder colocar pretensões aceitas, eles dotam o sujeito individual com a possibilidade de uma atividade legítima, com base na qual ele pode constatar que goza do respeito de todos os demais” (ibid., p. 197).

Contudo, e aqui novamente a dimensão do sofrimento, possui a chave para a dinâmica conflitiva do desenvolvimento da esfera jurídica, haja vista que a comprovação empírica dessa relação de reconhecimento “só se torna de certo modo uma grandeza perceptível em forma negativa – a saber quando os sujeitos sofrem de maneira visível com a sua falta [de direitos]” (ibid., p. 197). Além do mais, o sofrimento da experiência prática do desrespeito serve de impulso para que grupos excluídos coloquem a superfície, via movimentos sociais e protestos, da realidade social o impacto psíquico da vergonha e do desrespeito. É nesse ponto que Honneth vincula de forma decisiva a identificação da possibilidade de constatar empiricamente os déficits de reconhecimento na esfera jurídica[4] através do sofrimento.

(3) A solidariedade é o nome dado por Honneth à terceira esfera do reconhecimento, que deve ser vista “como um meio social a partir do qual as propriedades diferenciais dos seres humanos venham à tona de forma genérica, vinculativa intersubjetivamente” (SAAVEDRA; SOBOTTKA, 2008, p. 13), assim, os sujeitos, nessa esfera, podem ser reconhecidos além de das propriedades que os tornam pessoas iguais às outras, mas abre a possibilidade de um horizonte, intersubjetivamente construído, de reconhecibilidade de predicados particulares. “Os sujeitos encontram reconhecimento conforme o valor socialmente definido de suas propriedades concretas” (HONNETH, 2009, p. 199), podendo desenvolver um sentimento prático de estima social, visto que esse sentimento “se aplica às propriedades particulares que caracterizam os seres humanos em suas diferenças pessoais” (ibid., id.). Ao contrário do Direito, que insere os sujeitos em relação de igualdade mútua, na solidariedade, ele é inserido como uma “grandeza biograficamente individuada” (ibid., p. 204), para isso, esse momento do reconhecimento também cria intersubjetivamente um referencial simbólico de valoração das formas de vidas sempre aberto e poroso.

Porém, quando experiências práticas em que formas de vida não possuem seu valor social reconhecido, inicia-se um processo de luta por reconhecimento que visa chamar a atenção da sociedade para o fato de que há, nesses grupos sociais que compartilham modos de vidas não reconhecidos, uma importância de certas propriedades que são negligenciadas (ibid., p. 207). É na experiência do sofrimento de não ter um valor particular individual partilhado por um grupo social excluído, é que se constitui o impulso fundamental para o alargamento da estrutura de referencial valorativo que permite a estima social de predicados particulares, ou seja: “na experiência partilhada de grandes fardos e privações, origina-se num átimo uma nova estrutura de valores que permite mutuamente aos sujeitos estimar o outro por realizações e capacidades que antes não tiveram importância social” (ibid., p. 210).

Visto o desdobramento de alguns elementos mais gerais da teorização do reconhecimento honnethiano, fica notório que é somente porque há um modelo ex-negativo (CAMPELLO, 2012, p. 105) do padrão normativo das interações humanas, que Honneth pode dar base empírica a sua teoria, mas, principalmente, conseguiu localizar a motivação moral que permeia a lógica que impulsiona os sujeitos em lutas por reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais. As experiências do sofrimento social representam

“de maneira exata a base motivacional afetiva na qual está ancorada a luta por reconhecimento […] [é] o elo psíquico que conduz do mero sofrimento à ação ativa, informando cognitivamente a pessoa atingida acerca de sua situação social […] delas se compõem os sintomas psíquicos com base nos quais um sujeito é capaz de reconhecer que o reconhecimento social lhe é negado de modo injustificado” (HONNETH, 2009, p. 220)

Isso ocorre pelo fato de que o sofrimento possui um teor cognitivo, de modo que

“os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente neutro às ofensas, representadas pelos maus-tratos físicos, pela privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do reconhecimento recíproco têm uma certa possibilidade de realização no interior do mundo da vida social em geral; pois toda reação emocional negativa que vai de par com a experiência de um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém novamente em si a possibilidade de que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo da resistência política” (ibid., p. 224).

Dito isso, a centralidade do sofrimento reside, especialmente, no seu potencial cognitivo que indica ao sujeito a possibilidade de crítica dos vínculos sociais que o cerca e a possibilidade de emancipação. Seguindo os rastros críticos de seus antecessores, Honneth termina expondo uma ideia que é, mutatis mutandis, a mesma encontrada em Adorno (sob forte influência de Freud): de que o sofrimento psíquico demanda a necessidade de cura; ou seja, o “sofrimento dos sujeitos […] as sensações negativas […] levam sempre ao desejo de uma libertação das patologias sociais; nesse sentido, para falar de maneira concisa, os impulsos de sofrimento garantem uma resistência dos sujeitos” (HONNETH, 2006, p. 23).

  1. Uma leitura crítica da teoria do reconhecimento em Honneth e a ambivalência do conceito de sofrimento

A experiência do déficit de reconhecimento que um grupo social vivencia prática e subjetivamente constitui em Honneth o cerne da sua categoria de sofrimento, que se desdobra em diversas formas empíricas como o desrespeito, a humilhação, a violação, vexação, etc. Esse sentimento é constituinte da lógica moral dos conflitos sociais, indicando, também, que há um parâmetro normativo de relação entre os seres humanos que possibilita que a teoria crítica saia da imanência dos vínculos sociais e parta para um projeto emancipatório. O sofrimento possui um potencial cognitivo que indica aos sujeitos que o vivenciam há algo de errado, patológico – seja nas instituições que deveriam garantir a liberdade dos indivíduos, como no horizonte valorativo que possibilita a constituição de uma identidade reconhecível. De tal forma que o sofrimento serve de indicador empírico para os sujeitos de que algo precisa ser mudado, residindo nesse ponto o impulso fundamental para conflitos sociais por direitos iguais e pelo reconhecimento de formas de vida diversas.

questão de uma leitura crítica do potencial cognitivo do sofrimento no processo de reconhecimento parte da própria estrutura da proposta de Honneth, que indica que o reconhecimento é a base da constituição de um sujeito livre e emancipado, em suas palavras: “a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais” (2009, p. 155)[5]. Fica claro que há nesse argumento central uma ambivalência que permeia as relações de reconhecimento, permitindo outra leitura, já que se o

“fato de serem os outros (o reconhecimento, o olhar, a interpelação pelo outro, a inserção numa ordem simbólica) que nos tornam aquilo que somos é visto nas distintas versões desta tradição (mesmo que nem sempre exatamente com essa terminologia) como constitutivamente reificante” (JEAGGI, 2013, p. 126).

Essa perspectiva aponta que ao mesmo tempo em que o reconhecimento cria a subjetividade e a identidade do sujeito, também constitui o cerne da “limitação, subjugação e impedimento de minha liberdade” (ibid.., p. 128). Assim, o reconhecimento opera no sentido de organizar a gramática de tal forma que predefine o que é visível e o que é invisível, o que se enuncia e o que se silencia nos padrões de reconhecibilidade (FOUCAULT, 1987, p. IX, X).

Essa concepção, porém termina por entender o reconhecimento de forma aporética: apesar de fundante do sujeito, pois não existe subjetividade fora de uma gramática do reconhecimento, também limita, determina, o horizonte possível de individuação possível que vai constituir os humanos.

“o reconhecimento seja uma forma de possibilitação – afinal, antes da interpelação eu não sou sujeito; […] Essa possibilitação, contudo, é perpassada por uma profunda ambivalência: ela significa, ao mesmo tempo, limitação, subjugação e impedimento de minha liberdade; uma ambivalência da qual, como melancolicamente o diz Judith Butler, não há saída” (JEAGGI, 2013, p. 128).

Essa ambivalência se deve ao fato de que reconhecimento, sendo o próprio ato de criar a subjetividade, de construir as identidades práticas, é ao mesmo tempo um ato que determina um horizonte de reconhecibilidade. Vale ressaltar que esse ato criador foge de qualquer possibilidade de controle dos sujeitos, ele é necessariamente contingente, ambivalente, como mostra Judith Butler: “A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido” (2017, p. 31). Honneth, apesar de ver possibilidades positivas no reconhecimento, também compreende de maneira similar a Butler, não ignorando que o processo de luta por reconhecimento ocorre sob condições contingentes de socialização (HONNETH, 2009, p.118); indicando que a própria condição de existência dos sujeitos – que está o horizonte de possibilidades de reconhecimento, e este rege as estruturas normativas socialmente partilhadas – fogem totalmente ao controle dos indivíduos[6].

Considerar que relações de reconhecimento sejam necessariamente negativas, reificantes e limitadoras da possibilidade de uma autorrelação positiva do sujeito, também coloca problemas. Isso por uma questão bastante clara: se “a relação de reconhecimento parece destinada, por princípio, ao fracasso” (JEAGGI, 2013, 128), então como se pode criticar os vínculos sociais? Se não considerarmos que existe nas interações humanas um elemento positivo, então estaríamos presos, do ponto de vista teórico, mas também com consequências políticas, a uma descrição “paradoxal-aporética” (ibid., p. 133).

A fim de superar essa tensão improdutiva, que leva a um ‘beco sem saída’, deve-se considerar a leitura negativa[7] não como excludente à proposta de Honneth, mas como uma proposição de um limite da análise do reconhecimento. Dessa maneira, não necessariamente o sofrimento indicaria uma abertura crítica dos laços sociais, mas um desejo de inserção na norma tal como está. Ou seja: se a experiência de satisfação psíquica com a identidade individual ou coletiva depende do reconhecimento do outro que carrega consigo o horizonte valorativo-normativo compartilhado socialmente do que são os predicados a serem reconhecidos, então o reconhecimento, como processo de subjetivação e individuação, também pode ser um processo de sujeição – conservação. Por exemplo: se a satisfação psíquica depende que os sujeitos em interação de reconhecimento cumpram determinados padrões normativos predeterminados intersubjetivamente, então “O aumento da sua autoestima depende largamente de que se cumprissem adequadamente determinados papéis, como os de uma boa dona de casa ou boa esposa” (CAMPELLO, 2017, p. 152); Continuando com outro exemplo,

“É interessante mencionar que num desses – assim chamados – “índices de felicidade”, o país que aparece em terceiro lugar é a Arábia Saudita: um exemplo claro das aporias da articulação de um sentimento subjetivo enquanto outras pré-condições óbvias não são preenchidas, como pode ser visto na violação sistemática dos direitos humanos, a opressão das mulheres, a falta de liberdade de expressão, etc.” (ibid., id.).

Diante desses exemplos, e da hipótese de que é possível manter a proposta honnethiana em limite mútuo às críticas negativistas, é preciso questionar qual modalidade de sofrimento que possibilita a constituição de um potencial cognitivo de tal potência que permita ao sujeito articular a vivência com possibilidades de críticas da forma de vida e, consequentemente, ações políticas por reconhecimento. A proposta é pensar um modelo dividido, mas intrincado, de sofrimento: se por um lado o modelo negativo aponta para uma questão estrutural própria do processo de subjetivação, vinculado intrinsecamente ao desejo e ao próprio ato de constituição do sujeito; por outro lado, Honneth aponta para déficits de reconhecimento ligado aos laços sociais, que tem na possibilidade de reciprocidade um fundamento crítico, como na experiência do Direito e da Solidariedade social. Filipe Campello propõe de forma mais específica esse tertium datur, ao sugerir que ambos os modelos podem construir um campo de tensionamento produtivo e de limitação recíproco, diferenciando formas de entender o reconhecimento que não se excluem, mas se complementam criticamente:

“É então o que podemos entender como sofrimento social, ou dimensão social do sofrimento, e ao que nos referimos com a expressão “estruturas sociais”. A teoria social e os aspectos contingentes da subjetividade apresentam, então, diferentes significados “terapêuticos”: enquanto a primeira se refere a um determinado conjunto de questões (justiça social, igualdade de oportunidades, garantias de direitos, etc.), outra dimensão do tema não se reduz ao escopo da teoria social, como um exemplo paradigmático da teoria psicanalítica. Assim, a referência a noções como “autorrealização”, “sofrimento” e “terapia” não pretende esgotar todas as formas de sofrimento, mas apenas aquilo que se refere às condições socialmente mediadas. As contingências dos processos psíquicos não podem ser esgotadas, portanto, dentro das pretensões de uma teoria normativa. Em resumo, o reconhecimento social tem um limite, que se opõe às dimensões da subjetividade que não são socialmente reconhecíveis” (ibid., p. 159).

É preciso chamar a atenção ao fato de que não há no modelo honnethiano de reconhecimento a pretensão de abarcar a totalidade das experiências do sofrimento humano[8]. Para ele, o reconhecimento serve para indicar que há campos delimitados da experiência prática do sujeito em que há a chance de uma construção minimamente satisfatória da subjetividade, ligada a uma satisfação temporária, mas importante no decorrer do processo de subjetivação. Honneth, considera, de forma a corroborar essa ideia de uma delimitação mútua entre seu modelo e o negativista, que sempre haverá algo de incompletude nesse processo, entendendo que mesmo onde as normas sejam justas, que o sujeito se reconheça nelas, ainda numa situação dessa, nada garante uma satisfação subjetiva plena. Como diz Honneth:

“É verdade que encontramos nele [o reconhecimento] a ideia de que a formação em cada uma das esferas permanece sempre incompleta e, então, você precisa de um suplemento. […] também precisa fornecer aos sujeitos uma ironia que nos permita lidar com a ideia de que, apesar de sermos bons pais e não trairmos nossas esposas, isso não significa que está tudo bem. Algo continua insatisfeito e também sabemos disso. Nós sabemos que não podemos nos preencher completamente. No entanto, isso também deve ser colocado junto com a sensação de que não temos uma liberdade melhor do que aquela presente nas esferas comunicativas da reciprocidade” (apud CAMPELLO, 2017, p. 160).

A questão central, não é analisar o sofrimento de maneira genérica, ou mesmo o sofrimento constitutivo dos processos de subjetivação, mas o sofrimento que resulta de desníveis nas relações sociais que permitam que haja certos padrões de reciprocidade, abrindo a possibilidade de crítica social. Até porque, ao contrário da posição negativista que observa que o sofrimento é fruto de um corte normativo que o sujeito sofre em seu processo de subjetivação, Honneth não faz uma leitura unilateral, visto que o sofrimento dos membros da sociedade que são integrados no ornamento social podem ser resultado de um excesso ou de uma insuficiência de obrigações normativas (2015, p. 587), pois tanto uma forma como a outra são observadas pelo autor como um “estreitamento dos graus de liberdade” (ibid., p. 591) que caracteriza de forma central o entendimento de sofrimento da perspectiva honnethiana. De forma que há um parâmetro do que Honneth entender por “déficits”:

“Os modelos estabelecidos de socialização, seus valores e normas fundamentais, podem estar em um profundo descompasso com os modos institucionalizados de produção, e estes, por seu turno, podem estar em conflito com regulações normativas que organizam e tornam vinculantes as relações de reconhecimento entre os membros da sociedade. Estes atritos e tensões têm em comum com enfermidades individuais que eles revelam uma relação perturbada de um sujeito, seja com uma pessoa ou da sociedade, consigo mesmo” (ibid., p. 592).

Trata-se de perceber o sofrimento como o resultado das interações sociais. Como no caso da experiência de sofrimento dos sujeitos que permanecem excluídos da posse de terminados direitos que os colocariam em condições de igualdade perante os demais parceiros de interação, deixando de ser considerado um membro de igual valor na sociedade (HONNETH, 2009, p. 216); mas também daquele sofrimento oriundo de uma agressão que menospreza ou atribui menor valor a formas e modos de vida (ibid., id.). A consequência prática, que norteia a percepção de sofrimento, e que tem profundos reflexos subjetivos, é que os sujeitos perdem a “capacidade de se referir a si mesmo com o parceiro em pé de igualdade” (ibid., p. 217), mas também perdem a capacidade de “poderem se referir à condução de sua vida como a algo que lhe caberia um significado positivo no interior de uma coletividade” (ibid., p. 217, 218).

  1. Os movimentos sociais como médium entre o sofrimento e a luta por reconhecimento: a gramática moral da articulação política

Mesmo considerando que há um aspecto do humano que será sempre permeado por uma incompletude, há nas experiências de reconhecimento uma importante dimensão positiva para a constituição prática dos sujeitos, que permite um sentido crítico aos vínculos sociais. Deve-se considerar também que por mais violento que seja o processo de subjetivação, há nos sujeitos uma necessidade psíquica de dar certa coerência a sua vivência prática, que depende da confirmação de outro, pois “uma vida necessita de alguma estrutura narrativa” (BUTLER, 2017, p. 72).

Honneth (2009, p. 156) compreende que as estruturas de reconhecimento, se rígidas, seriam instrumentos de opressão e, portanto, coloca como pressuposto desse processo um elemento dinâmico que permite uma gradual deslimitação do conteúdo do reconhecimento recíproco, entendendo que os sujeitos só podem expressar de maneira minimamente saudável suas pretensões subjetivas na medida em que esse conteúdo normativo se mostra poroso, ou seja, se regenera, permitindo um processo de ampliação das relações de reconhecimento. O sofrimento possui aspecto central, pois são as reações negativas do outro ante a identidade do sujeito constituem o cerne sintomático que aponta ao sujeito que algo lhe foi negado na relação de reconhecimento mútuo, de modo que o sofrimento representa a base motivacional na qual está ancorada a luta por reconhecimento (ibid., p. 219, 220). É graças a manutenção da posição de que há condições teóricas suficientemente fortes para fugir de uma condição aporética, que a teoria do reconhecimento de Honneth, como modelo crítico para se pensar a emancipação social, oferece um parâmetro normativo, que apesar de delimitado, aponta para um espaço importante de socialização e individuação. O potencial emancipatório se baseia na premissa de que as pretensões de reconhecimento socialmente aceitas que os sujeitos demandam, se não cumpridas satisfatoriamente, abrem a possibilidade da leitura crítica, não só das relações específicas em que o déficit de reconhecimento se expressou imediatamente, mas da própria forma em que a sociedade se baseia, ou seja:

“Se as regras comportamentais normativas, ou seja, aqueles ideais e obrigações que a nova geração em formação deve aprender, se desviarem em demasia destas exigências, então segundo sua convicção se deve contar que a socialização fracassará, e com isso adoecerá toda uma sociedade” (HONNETH, 2015, p. 586).

Resta, portanto, saber se há no sofrimento, enquanto suporte prático-moral para os conflitos sociais força cognitiva suficiente para impulsionar os sujeitos a lutas políticas.O próprio Honneth observa que:

“a fraqueza desse suporte prático da moral no interior da realidade social se mostra no fato de que a injustiça do desrespeito não tem de se revelar inevitavelmente nessas reações afetivas, senão apenas o pode: saber empiricamente se o potencial cognitivo, inerente aos sentimentos de vergonha social e da vexação, se torna uma convicção política e moral” (HONNETH, 2009, p, 224).

Ainda é relevante considerar que o próprio processo de construção da gramática de reconhecibilidade – contingente – que provoca desníveis de reconhecimento, excluído ou oprimindo certo grupo social, pode não necessariamente expressar-se na forma de sofrimento, já que ele ocorre num plano acima dos sujeitos (HONNETH, 2015, p. 591). Portanto, trata de pensar numa possibilidade de articulação prática entre sentimento subjetivo e ação política que expressa a luta por reconhecimento. Nesse sentido, os movimentos sociais podem cumprir uma dupla função: primeiro de “ponte semântica” (HONNETH, 2009, p. 258) entre experiência privada de lesões e compartilhamento coletivo do sofrimento, mas também funcionam como agentes de alerta por detectarem os desajustes sociais mais rapidamente (SOBOTTKA, 2015, p. 692) – como endossa Honneth, “os movimentos sociais conseguem chamar a atenção da esfera pública para a importância negligenciada das propriedades e das capacidades representadas por eles de modo coletivo” (2009, p. 207).

Contudo, é na possibilidade de oferecer aos participantes e militantes uma counterculture of compensatory respect (ibid., p. 202), que se encontra o grande potencial articulador dos movimentos sociais. Ou seja: os movimentos sociais podem funcionar como lugares sociais da reconquista do reconhecimento (SOBOTTKA, 2015, p. 700), abrindo um horizonte de reconhecibilidade compensatório, que apesar de possuir alcance limitado socialmente, é importante para iniciar um processo recuperação psíquica dos sujeitos afetados por estruturas sociais que impedem total ou parcialmente o reconhecimento de suas identidades. Isso permite o sujeito:

1º) perceber que o sofrimento, até então isolado e naturalizado, causado por déficit de reconhecimento, possui uma conexão social e coletiva, e que, portanto, é oriundo de uma relação prática de injustiça, seja por não ser tratado de forma igualitária aos parceiros de interação, seja por sua forma de vida não ser reconhecida como tão valorativa quanto as demais. Ele se torna peça fundamental para que o sujeito vença as barreiras linguísticas que o impedem de expressar conscientemente a injustiça num marco mais amplo e articulado na esfera pública (SOBOTTKA, 2015, p. 696);

2º) justamente por possibilitar a expressão do sentimento de injustiça entre pares e publicamente, os movimentos sociais proporcionam uma partilha eticamente informada dos sentimentos de desrespeito ou vexação com os demais parceiros de interação, que por vezes não vivencia seu sofrimento. Esse aprendizado que permite articular o sofrimento subjetivo com as estruturas sociais permite que se desenvolva nos sujeitos que sofrem injustiças a

“capacidade de generalização que evidenciaria que essas práticas de desrespeito transcendem as relações individuais e estão enraizadas em hábitos ou estruturas muito mais amplas e profundas – e que necessitariam de uma reação muito mais ampla que a indignação individual ou silente” (SOBOTTKA, 2015, p. 698);

3º) e, por fim, o espaço de militância num movimento social para o sujeito tem um significado terapêutico, não no sentido psicanalítico, mas de convencer indiretamente o indivíduo do seu valor moral ou social, através de um ambiente que antecipe uma comunidade futura, recuperando parcialmente sua autoestima e o autorrespeito. Esse ponto é fundamental para Honneth, segundo o autor:

“no reconhecimento antecipado de uma comunidade de comunicação futura para as capacidades que ele revela atualmente, ele encontra respeito social como a pessoa a quem continua sendo negado todo reconhecimento sob as condições existentes. Nesse aspecto, o engajamento individual na luta política restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido, visto que ele demonstra em público exatamente a propriedade cujo desrespeito é experienciado como uma vexação. Naturalmente, aqui se acrescenta ainda, com um efeito reforçativo, a experiência de reconhecimento que a solidariedade no interior de um grupo político propicia, fazendo os membros alcançar uma espécie de estima mútua”[9] (2009, p. 260).

Pode-se afirmar que os espaços de militância política servem como catalisadores de recursos linguísticos e simbólicos que possibilitam os sujeitos criarem o marco referencial nas quais suas experiências de sofrimento sejam articuladas socialmente, compartilhadas na esfera pública e transformadas em potencial de transformação política. Mas também permite aos sujeitos tomarem para si uma narrativa positiva sobre suas biografias. Quando obtém sucesso, os movimentos sociais permitem diagnósticos de uma situação de um grupo oprimido/explorado, mas também abre um prognóstico de mudanças sociais que os motiva a lutarem por reconhecimento (SOBOTTKA, 2015, p. 698). Assim, “o engajamento nas ações políticas possui para os envolvidos a função direta de arrancá-los da situação paralisante do rebaixamento passivamente tolerado e de lhes proporcionar, por conseguinte, uma autorrelação nova e positiva” (HONNETH, 2009, p. 259).

Um estudo de caso que pode servir de comprovação empírica é a dissertação de mestrado de Guilherme Boulos (2016, p.97-99). Ele defende que a incidência de sintomas depressivos e de ansiedade diminui em pessoas que participam de movimentos políticos, e ele usa, através de entrevistas com ocupantes, o exemplo das ocupações urbanas do MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto). Nelas ele percebe que é comum que a inserção numa gramática de reconhecimento típica do movimento social, permite que o sujeito articule seu sofrimento, aparentemente particular, ao social, e que ao mesmo tempo esse movimento produza um efeito terapêutico, já que a participação num coletivo permite que o sujeito desenvolva uma nova percepção de si mesmo. Boulos enumera, a partir das falas dos próprios entrevistados, diversos motivos que possibilitam essa terapêutica do movimento social: 1) a “ampliação das relações sociais” abre aos sujeitos novas relações sociais que substituem parcialmente as antigas que lhes causava danos psíquicos consideráveis, retirando-o do sofrimento isolado para uma partilha da experiência prática; 2) o “reconhecimento/acolhimento” nesses espaços substituem relações de humilhação e rejeição; 3) o “resgate da autoestima” faz com que o sujeito encontre nesse espaço valor para suas propriedades que não encontrava anteriormente; 4) o “vínculo de solidariedade” reforça uma inserção num grupo; 5) o “pertencimento” reconstrói o vínculo afetivo com o outro.

A partir dessa gramática do reconhecimento, baseada no potencial crítico que o sofrimento possui, os movimentos sociais podem se servir teoricamente para repensarem seus vínculos políticos, visto que há, pelo menos no Brasil, uma inegável crise política – em especial dentro da esquerda. A possibilidade de constituição de vínculos políticos que partam do reconhecimento e da partilha do sofrimento, segundo Boulos, é possível, já que os efeitos permitem o empoderamento de sujeitos socialmente excluídos e fortalecem, pela constituição de laços políticos fortes, uma pauta coletiva. Para isso os movimentos sociais devem se basear em relações que permitam:

“o acolhimento pelo grupo sem pré-condições; a vivência coletiva cotidiana, que proporciona a abertura para novas relações sociais e o pertencimento ao grupo; a participação nas tarefas, que fortalece os vínculos de solidariedade e o reconhecimento como alguém “útil” e importante ao grupo; e as mobilizações, que permitem aos sujeitos ocupar um papel protagonista, ganhando visibilidade e voz para seus problemas comuns” (2016, p. 92, 93).

Por fim, podemos dizer que há na teoria do reconhecimento uma centralidade das experiências de sofrimento que abre a possibilidade de crítica emancipatória dos vínculos sociais de uma época. É partindo desse conceito que Honneth constrói empiricamente sua teoria, mesmo não abarcando toda experiência do sofrimento humano. Para isso é importante considerar as críticas dos modelos negativistas para perceber que pode haver uma delimitação recíproca com o modelo honnethiano, indicando que as experiências que o frankfuriano apontava tinha um cunho social-normativo, e não estrutural do processo de subjetivação ou mesmo transcendental-existencial. Porém, é preciso também pensar um médium que articulasse as experiências práticas de déficits de reconhecimento e a ação que leva a conflitos sociais moralmente motivados. Para isso pensamos que os movimentos sociais podem cumprir, ainda que limitadamente, essa função, visto que eles permitem aos sujeitos encontrar uma contracultura do reconhecimento, que regenera terapeuticamente uma autorrelação positiva anteriormente destruída.

Os movimentos podem “encetar um processo de cura, ou pelo menos de rearranjo de suas biografias e suas autorrelações fragmentadas, que permitisse que elas mesmas se constituíssem em sujeitos ativos nas suas histórias de vida” (SOBOTTKA, 2015, p. 699). Os movimentos sociais podem, portanto, repensarem suas ações políticas, seu trabalho de base, sua estrutura de funcionamento e até organizacional a partir da gramática do reconhecimento. Pensar estruturas que possibilitem a circulação das experiências de sofrimento permitindo que os sujeitos reconstruam o reconhecimento esquecido. Se o sofrimento é, atualmente, um tema que, até pelas taxas alarmantes de adoecimento mental e suicídios, uma pauta central na sociedade, cabe aos movimentos sociais esse duplo movimento que a teoria do reconhecimento permite: de diagnóstico, ao colocar no debate público causas sociais do sofrimento coletivo; e de prognóstico, apontando as possibilidades de, através da construção de uma contracultura do reconhecimento, transformar a dor em por vínculos éticos mais fortes e maduros.


Referências

Boulos, Guilherme de Castro. Estudo sobre a variação de sintomas depressivos relacionada a participação coletiva em ocupações de sem-teto em São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Programa de Psiquiatria. Orientador: Francisco Lotufo Neto. São Paulo, 2016.

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[1] Graduando de Licenciatura em História na Universidade Federal de Pernambuco). Orientador: Prof. Dr. Filipe Augusto Barreto Campello de Melo (Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

[2]              Sobre essa questão de uma teoria do sujeito, Honneth se utiliza da teorização da construção da subjetividade de Mead, podendo ser visto no capítulo 4 (Reconhecimento e socialização: Mead e a transformação naturalista da ideia hegeliana) do Livro Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 125 – 154.

[3]              Temos que considerar que o uso do termo mãe em Winnicott possui uma marca da concepção de família de sua época, porém é perfeitamente aplicável sua teoria em outras configurações familiares, já que o bebê depende biologicamente de quem o cuide, inclusive afetivamente, de maneira mais constante nos primeiros meses de vida.

[4]              Honneth usa um bom exemplo para exemplificar: “Nessas situações históricas excepcionais, como representaram as discussões do movimento negro por direitos civis nos EUA dos anos 1950 e 1960, vem à superfície da linguagem o significado psíquico que o reconhecimento jurídico possui para o autorrespeito de grupos excluídos” (2009, p. 198). Para usar um exemplo mais local e atual, a pouco foi lançado o documentário “Quem mora lá?” (Rafael Crespo e Conrado Ferrato, 2018) que retrata a luta de famílias que ocupam um prédio no centro do Recife (ocupação Marielle Franco – MTST-PE) na busca por moradia digna.

[5]                      Destaque meu.

[6]                      Ou seja: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; eles não o fazem em circunstâncias escolhidas por eles mesmos, mas sob circunstâncias diretamente encontradas, dadas e transmitidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo na mente dos vivos” (MARX, s/d, p. 203).

[7]                      Não é objetivo do texto aprofundar o debate entre o modelo negativo e positivo do reconhecimento, quanto a isso há um excelente artigo da filósofa Rahel Jeaggi (2013, 133ss), onde ela faz uma excelente análise das propostas de pensadores como Althusser, Sartre, Butler e Foucault, compara com o Honneth e coloca suas considerações.

[8]                      “A ideia é a de que uma teoria social deve se referir a um âmbito específico, no qual podemos falar de significado terapêutico de estruturas sociais e do papel das instituições. […] uma outra dimensão do sujeito não se deixa reduzir ao alcance da teoria social” (CAMPELLO, 2017a, p. 20). Nesse sentido, pode-se distinguir três tipos de sofrimento: sofrimento social, um sofrimento ligado a contingência do processo de inserção do sujeito na gramática de reconhecimento e um sofrimento transcendental ligado a própria condição existencial humana (ibid., p. 21).

[9]                      Um exemplo didático nesse sentido é o movimento de direitos civis nos EUA dos anos 1950 e 1960, principalmente quando o mundo da cultura reverberou as ações políticas dos Black Panthers Party criando o lema “black is beautiful”. A cantora Nina Simone, fortemente influenciada pelo movimento negro de sua época, em sua canção “Ain’t Got No / I Got Life”, cria um hino de afirmação negra: “got my hair, got my head / Got my brains, got my ears / Got my eyes, got my nose / Got my mouth / I got my / I got myself” (Tenho o meu cabelo, tenho minha cabeça / Tenho meu cérebro, tenho minhas orelhas / Tenho meus olhos, tenho meu nariz / Tenho minha boca / Eu tenho / Eu tenho a mim mesma).

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