O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx

Por Michael Roberts, via The Next Recession, traduzido por Augusto Ribeiro Silva

Recentemente, o Professor David Harvey (DH) enviou um e-mail para várias pessoas, inclusive para mim, com um breve artigo para discussão em anexo. O artigo apresenta a leitura de DH de que a teoria do valor de Marx em economias capitalistas havia sido gravemente mal interpretada.


No caso de você não saber (o que seria difícil de acreditar), o Professor Harvey é provavelmente o mais eminente estudioso de Marx vivo hoje, autor de livros, artigos e vídeos educacionais sobre teoria econômica marxista. O breve artigo que circulou expressava sucintamente sua leitura da teoria do valor de Marx, que ele recentemente apresentou mais extensivamente em seu último livro, “A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI“. [1]

No artigo, intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor do trabalho“, DH argumenta que Marx sequer tinha uma “teoria do valor do trabalho”. Sua teoria do valor era distinta daquela do economista clássico David Ricardo. Invés disso, segundo DH, Marx teria argumentado que o valor era um reflexo do trabalho corporificado em uma mercadoria que só seria criado/revelado em trocas no mercado. Como afirma DH: “se não há mercado, não há valor”. Se isso estiver correto, então seria durante a realização do valor em sua expressão em dinheiro que o valor emergiria, não no processo de produção em si.

DH então argumenta que se salários forem forçados para baixo ou até ao mínimo, então não haverá mercado ou mercadorias e, portanto, nenhum valor – e essa é a “verdadeira raiz das crises capitalistas”. Por conseguinte, uma política para evitar crises seria “aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo”. Essa seria a consequência de uma leitura correta da teoria do valor em Marx, segundo DH.

DH destaca que essa interpretação da teoria do valor “vai muito além do que Ricardo tinha em mente e é igualmente muito distante da concepção de valor geralmente atribuída a Marx.” Certamente. Mas estaria DH certo em sua interpretação da teoria do valor em Marx e, se ele estiver, teria essa interpretação alguma validade empírica? Eu responderia ambas essas questões com: ‘no’, ‘non’, ‘nein’, para usar as três línguas melhor conhecidas por Marx.

DH inicia dizendo: “acredita-se amplamente que Marx adaptou a teoria do valor do trabalho a partir de Ricardo como conceito fundador para seu estudo da acumulação capitalista” e “como a teoria do valor do trabalho foi amplamente desacreditada, frequentemente constata-se, autoritariamente, que as teorias de Marx são imprestáveis.” Não fica claro a quem DH está se referindo aqui. Claramente economistas burgueses mainstream consideram a teoria do valor de Marx inválida. Os marginalistas neoclássicos há muito rejeitaram o conceito de valor-trabalho, taxando-o de “metafísico”. Economistas neo-ricardianos, pós-sraffianos e pós-keynesianos, particularmente, estão fortemente inclinados a rejeitar qualquer noção de “valor”, classificando-a como mistificação ideológica.

Mas a maioria dos economistas marxistas estão cientes da distinção entre a teoria do valor em Marx e em Ricardo. E a diferença não é o que DH diz ser, que Ricardo tinha uma “teoria do valor do trabalho” e Marx não. A diferença é que Ricardo tinha uma teoria de valor (de uso) baseada em “trabalho concreto” (quantidade física de trabalho) medida em tempo de trabalho. A lei do valor em Marx era baseada em “trabalho abstrato” (valor medido em tempo de trabalho quando “socialmente” testado no mercado).

Sob o capitalismo, a força de trabalho humana é em si uma mercadoria a ser vendida no mercado. De fato, essa é uma característica chave do modo de produção capitalista, em que a maioria não dispõe de meios de produção e, portanto, deve vender sua força de trabalho para os donos dos meios de produção. Então, assim como com outras mercadorias, trabalho tem uma propriedade dupla. Por um lado, é trabalho útil, isto é, aplicação de trabalho humano em uma forma concreta e para um propósito específico, com essa propriedade criando valores de uso. Por outro lado, é trabalho abstrato, isto é, aplicação de “força de trabalho” humana sem características específicas que cria o valor da mercadoria na qual ele é representado. A partir disso Marx fez a distinção entre trabalho e força de trabalho, uma distinção que é absolutamente crucial para a compreensão da fonte do lucro.

Esse foi o grande avanço da teoria do valor de Marx. O tempo de trabalho corporificado nas mercadorias normalmente compradas pelo trabalhador para a sua reprodução e a de sua família em um dia é menos do que o tempo de trabalho que o trabalhador de fato oferece para o dono do capital durante o mesmo período. O resultado é que para qualquer período de tempo dado, o trabalhador produz mais valor do que o salário correspondente que é pago pelo dono do capital para o usufruto da força de trabalho. A essa diferença Marx dá os nomes de “trabalho não pago” e “mais-trabalho” – ou mais-valia. A teoria do valor do trabalho abstrato de Marx expõe a natureza exploradora do modo de produção capitalista, algo que nem a teoria do valor de Adam Smith nem a de Ricardo fazem.

DH menciona apenas uma vez (e de passagem) essa descoberta vital de Marx (o trabalho abstrato) que distingue a lei de Marx da teoria do valor do trabalho clássica. E isso ocorre porque DH deseja impor sua interpretação da teoria de Marx como uma em que valor é criado/realizado apenas na troca, e não no processo de produção pela força de trabalho. DH diz que “o valor é inicialmente tomado como um reflexo do trabalho social (abstrato) cristalizado nas mercadorias.” Mas “como uma norma regulatória no mercado, o valor pode existir, como mostra Marx, apenas quando e onde a troca de mercadorias se tornou um ‘ato social normal’.” Então, sem dinheiro, não haveria valor.

Sim, mas o valor de uma mercadoria ainda é o trabalho contido nela e expandido durante o processo de produção antes de ser levado ao mercado. O valor é a aplicação de trabalho humano físico e mental, que é então extraído pelo processo social de produção e levado ao mercado. Valor não é uma criação do dinheiro – pelo contrário. Dinheiro é a representação ou valor de troca do trabalho aplicado, e não o oposto. Acredito que Marx seja nítido nesse ponto crucial. Ele diz n’O Capital Volume Um: “O valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado dessa última.” [2] [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]

Murray Smith, na edição nova e vindoura de seu livro, “Invisible Leviathan” [3], oferece uma explicação concisa da diferença entre a lei do valor de Marx e a interpretação de DH. Marx disse que: “O dinheiro como medida do valor é a forma necessária em que aparece a medida do valor que é imanente às mercadorias, o tempo de trabalho.” Smith comenta que isso “é certamente inconsistente com a ideia de que o valor pode ser criado no ato da troca. (…) É precisamente porque a troca efetua um processo de ‘equalização de produtos do trabalho no mercado’ (isto é, envolve uma abstração real) que a produção orientada à troca deve levar em conta o fato de que ‘trabalho fisiológico’ cria valor de troca e forma o valor de uso – isto é, se constitui como concreto e abstrato simultaneamente. Tentar argumentar que valor é criado ‘não na produção, mas na articulação de produção e circulação’ é uma noção repleta de pensamento circular e que requer a mais robusta ginástica mental para que entretenha(…). O problema com essa abordagem é que se for aceito que o trabalho abstrato associado não tem existência substancial apartado da forma de valor, o dinheiro, então os valores das mercadorias parecem ser separados totalmente de qualquer determinação pelas condições de sua produção, e o caminho estaria pavimentado para uma efetiva identificação de valor e preço.”

Em vez disso, a lei do valor de Marx se baseia na visão de que o trabalho envolvido na produção de mercadorias produz o valor, enquanto a troca o realiza na forma-dinheiro. É apenas por causa disso que Marx é capaz de distinguir entre quantidades de valor e mais-valia criadas na produção de mercadorias, e as quantidades geralmente diferentes realizadas através da troca.

Ao contrário do que pensam os economistas mainstream e neo-ricardianos, não se trata de “mistificação”. O valor é objetivo e real e não apenas expresso em dinheiro. A lei do valor de Marx, na qual o trabalho abstrato (medido em tempo de trabalho) explica o valor de troca e os preços, pode ser validada empiricamente. [4]

Há razão por trás da interpretação de DH. Se valor for criado apenas no momento da troca por dinheiro e “o dinheiro reina”, então será a demanda (efetiva) que decidirá se o capitalismo tranquilamente acumulará sem crises recorrentes. Para mostrar isso, DH descreve com algum detalhe o impacto da acumulação capitalista sobre as condições e padrões de vida enquanto os capitalistas empenham-se em aumentar a mais-valia relativa através da introdução de maquinaria. Ele usa alguns exemplos gráficos proporcionados por Marx no Capítulo 23 [25 no original] do Volume Um. DH enfatiza que a acumulação capitalista pretende minimizar o valor da força de trabalho ao ponto da pauperização.

DH conclui que “Se esse é um resultado típico da operação da lei capitalista da acumulação de valor, então há uma profunda contradição entre as condições progressivamente deterioradas da reprodução social e a necessidade do capital de expandir o mercado. Como Marx nota no Volume 2 d’O Capital, a verdadeira raiz das crises capitalistas está na supressão de salários e a redução da massa da população à condição de pobres despossuídos.” Então a “verdadeira raiz das crises” encontra-se na “supressão dos salários” e na “redução da massa da população à condição de pobres despossuídos”. Essa é a uma teoria das crises de viés subconsumista.

Há muito a ser pontuado aqui. Primeiro, o Capítulo 23 [novamente, 25 no original], intitulado A lei geral da acumulação capitalista, não se refere apenas à pauperização da classe trabalhadora. DH deixa de fora um aspecto muito importante da lei geral: a tendência ao aumento da composição orgânica do capital [5]. É isso que aumenta a mais-valia relativa, mas também é um fator chave na tendência de queda da taxa de lucro (desenvolvida no Volume 3), “a lei mais importante da economia política” [6], que estabelece a base da teoria das crises de Marx. DH ignora esse aspecto.

Mas DH se aprofunda em sua interpretação subconsumista. “Valor depende da existência de quereres, necessidades e desejos, apoiados pela capacidade de uma população de consumidores de pagar(…) Isso também significa que a diminuição de salários a quase nada será contraproducente na realização de valor e mais-valia no mercado. Aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo são cruciais para a teoria do valor.” A partir disso DH argumenta que o capitalismo entra em crise porque os salários são suprimidos; então aumentar salários, garantindo “consumo racional”, proporcionaria a “capacidade da pagar” e daria fim às crises.

Essa interpretação subconsumista da teoria de Marx foi firmemente rejeitada – pelo próprio Marx – na famosa nota no mesmo Volume 2 ao qual DH se refere (sublinhados meus).

É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da carência de consumidores solventes. (…) Que as mercadorias sejam invendáveis significa apenas que não foram encontrados compradores solventes para elas e, portanto, consumidores (já que, em última instância, as mercadorias são compradas para o consumo produtivo ou individual). Mas caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma fundamentação profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria remediado tão logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por conseguinte, seu salário aumentasse nessa proporção, bastará observar que as crises são sempre preparadas num período em que o salário sobe de maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo. Já do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e “simples” (!), esses períodos teriam, ao contrário, de eliminar as crises.” [7] [pág. 514 O Capital Livro II, Editora Boitempo, 1ª edição]

A meu ver, Marx rejeitou tanto a lei do valor na interpretação de DH como também a conclusão de que as crises são causadas pela incapacidade de pagar pelos “quereres, necessidades e desejos” das pessoas. Mas Marx poderia estar errado e DH certo sobre a causa das crises. No entanto, as evidências empíricas não apoiam DH.

Deixe-me citar apenas três fatos. O primeiro é que o consumo dos trabalhadores não é o maior setor de “demanda” numa economia capitalista; é o consumo de capital produtivo. Produto interno bruto é uma medida da demanda anual por “quereres, necessidades e desejos”. Nos EUA, o consumo parece constituir 70% do PIB. No entanto, se você olhar para o “produto bruto” que inclui todo os produtos intermediários com valor agregado não contabilizados no PIB, então o consumo aparece como apenas 36% do produto total; o restante constitui demanda do capital por partes, materiais, bens intermediários e serviços. É o investimento de capitalistas que é o fator determinante e motor da demanda, não o consumo de trabalhadores.

Isso fica demonstrado no segundo fato. Se analisarmos as mudanças em investimento e consumo que precedem cada recessão ou baixa na economia norte-americana do pós-guerra, veremos que a demanda de consumo teve pequeno ou nenhum papel na causação de uma queda. Nas seis recessões desde 1953, o consumo pessoal caiu menos do que o PIB ou o investimento em cada ocasião e absolutamente não caiu em 1980-2. O investimento caiu de 8 a 30% em todas as ocasiões.

Mudanças de porcentagem em consumo pessoal real (PC), investimento e produto interno bruto (GDP).

grafico

O terceiro fato diz respeito diretamente a salários e à alegação de DH de que aumentá-los ajudaria o capital. Carchedi estabelece que das 12 crises após Segunda Guerra, 11 foram precedidas por aumento dos salários e apenas uma por queda dos salários (a crise de 1991) [8]. Isso confirma a visão de Marx na nota do Volume 2 acima.

Eu concluo a partir do breve artigo de DH que ele pretende estabelecer uma tese de que a luta de classes não é mais centrada ou decidida entre trabalho e capital no ponto de produção da mais-valia. Em vez disso, no capitalismo “moderno”, ela se encontra em outros pontos desse “circuito do capital” que ele apresenta em seu último livro e em várias apresentações globalmente. Para DH, é no ponto da realização (isto é, aluguéis, hipotecas, superfaturamento por farmacêuticas etc.) ou na distribuição (por impostos, serviços públicos etc.) que os “pontos quentes” da luta de classes estão focados agora. A luta de classes na produção agora é menos importante (ou até inexistente).

A meu ver, para apoiar isso, DH apresenta uma série de confusões teóricas em seu artigo. Primeiro, Marx não teria uma teoria do valor do trabalho. Segundo, o valor só seria criado na troca (na realização). Terceiro, a taxa de lucro (ou mesmo o próprio lucro) seria irrelevante para as crises: o importante seria o decréscimo do valor da força de trabalho ao mínimo (ou até a zero!) não permitindo que os trabalhadores sejam capazes de alcançar seus “quereres, desejos etc.” Isso resulta numa teoria do subconsumo bruta – ainda mais bruta que a de Keynes.

DH deliberadamente ignora a diferença (e a dualidade) entre trabalho concreto e abstrato, e sua contrapartida, valor de uso e valor de troca. A natureza dual do valor numa mercadoria, como Marx descobriu, é reduzida por Harvey a uma incapacidade dos trabalhadores de comprar seus valores de uso. Valor de uso (quereres e desejos) é a chave, não o valor de troca no valor, para DH. A teoria das crises de Marx (baseada em mais-valia insuficiente) é substituída por valores de uso insuficientes para trabalhadores como consumidores. Sobreacumulação é substituída por subconsumo. A luta de classes deixa de ser sobre trabalhadores versus capitalistas para se tornar sobre consumidores versus capitalistas ou pagadores de impostos versus governos.

Não é a visão de Marx. Mais importante, a abordagem inteira é confusa para uma análise classista e estratégica para a luta da classe trabalhadora.


Os erros de compreensão de Michael Roberts

Por David Harvey, traduzido por Augusto Ribeiro Silva

Há, obviamente, alguns pontos sérios para discussão a respeito da teoria do valor de Marx e eu espero que o diálogo com Michael Roberts auxilie nessa questão. Antes de me ater a eles, eu preciso corrigir uma série de erros de leitura e interpretação sobre minha posição presentes na resposta de Roberts. Permitam-me ser claro: o valor sempre é criado no ato da produção. Mas é realizado no momento da troca no mercado. Eu, portanto, penso no valor em termos do que Marx chama de “a unidade contraditória da produção e da realização.” O valor não pode ser produzido através da troca no mercado. Marx é suficientemente claro a esse respeito.

A essência do valor é o trabalho abstrato ou, como eu prefiro dizer, “trabalho socialmente necessário”. Roberts está obviamente correto em dizer que a definição de Marx é inteiramente diferente do tempo de trabalho concreto postulado por Ricardo. No entanto, não importa se dissermos “trabalho abstrato” ou “socialmente necessário”, o ônus da questão cairá sempre em como a abstração seria feita e no que se entenderia por socialmente necessário. A resposta a tais questões deve se basear em processos materiais e não construída através de exercícios idealistas. Portanto, por qual processo materialista o valor será construído se não for “inerente” às mercadorias, mas historicamente criado.

A resposta é dada no ponto de partida de Marx n’O Capital, que é o ato material idealizado da troca de mercadorias. Se o capitalista leva a mercadoria ao mercado e não há querer, necessidade ou desejo por ela, então o trabalho cristalizado nela é socialmente desnecessário e, portanto, não tem valor (isso é o que Marx diz ao fim da primeira seção d’O Capital) [página 211 da edição da Boitempo, Livro I]. Isso não significa que o valor seja criado no mercado (o que Roberts erroneamente me acusa de dizer). Mas – e essa pode ser minha visão particular da questão – eu tomo o valor criado na produção como um valor meramente potencial até que ele seja realizado. Outra forma de dizê-lo seria afirmar que o valor é produzido, mas que será perdido se não houver para ele demanda no mercado. Nesse caso, precisaríamos construir uma teoria forte de desvalorização para dar conta do que ocorre no mercado. A desvalorização raramente aparece nas considerações de Roberts e não tem lugar em sua resposta. Dado meu interesse na relação entre valor e não-valor ou anti-valor, essa última formulação pode também funcionar para mim. Mas em ambos os casos eu acredito que seja inegável que o estado de quereres, necessidades e desejos apoiados por capacidade de pagamento tenha um papel importante na sustentação da circulação do capital. Isso não significa, como Roberts infere repetidas vezes, que esse seja o único fator relevante na formação da crise. Eu me esforcei para dizer diversas vezes que esse é apenas um momento importante na circulação do capital onde desvalorizações (eventualmente, mas nem sempre, da proporção de uma crise) podem ocorrer.

Mas Roberts adora por diversas vezes me relegar a essa categoria pejorativa de subconsumista sempre que eu menciono tais questões. Foi Marx, e não eu, quem disse que “a verdadeira raiz das crises” está no poder de compra diminuído das classes trabalhadoras e se eu cito Marx nesse momento é porque é um impecável antídoto para todos aqueles que incansavelmente recorrem à queda da taxa de lucro. Eu tenho argumentado que crises vêm em muitas formas e tamanhos. A queda da taxa de lucro ou o colapso da demanda consumidora são duas de muitas explicações (eu noto de passagem que Marx, em seus comentários sobre as crises de 1847 e 1857 – crises que assemelharam-se excepcionalmente à de 2007-8 – descreveu as crises como comerciais e financeiras sem qualquer menção à queda da taxa de lucro ou a demanda consumidora insuficiente).

Minha objeção a qualquer interpretação produtivista excludente (para fazer uma caracterização pejorativa correspondente!) é que elas isolam totalmente toda a história de criação de quereres, necessidades e desejos (sem mencionar a mecânica de garantia da capacidade de pagamento) na história da acumulação capitalista. Acredito que devamos prestar muito mais atenção a esse aspecto. Isso não significa que eu subestime, negue ou refute todo o trabalho que tem sido feito no processo de trabalho e a importância das lutas de classes que têm ocorrido e continuam a ocorrer na esfera produtiva. Mas essas lutas devem ser relacionadas às lutas em torno da realização, distribuição (por exemplo, extrações de renda, execuções de dívida), reprodução social, o manejo da relação metabólica com a natureza e os presentes gratuitos da cultura e da natureza. Esses todos têm tido grande importância em movimentos anticapitalistas recentes e eu insisto que os encaremos com seriedade ao lado do mais tradicional foco na esquerda marxista com a tendência de assumir a luta de classes no ponto da produção como o momento-chave da luta. É por isso que eu acredito que o diagrama que eu ofereço da circulação e a definição de capital como valor em movimento seja tão importante. É estranho ver tudo isso desprezado na citação de Murray Smith como “pensamento circular”!!

Essa perspectiva abre algumas linhas interessantes de questionamento e pontos de divergência. As considerações de Marx sobre lutas em torno da jornada de trabalho e das forças que movem mudanças tecnológicas e organizacionais em busca de mais-valia relativa todas dependem das “leis coercitivas da competição”. Esse termo aparece em vários pontos-chave no argumento de Marx ao longo d’O Capital. Onde essa força é mobilizada e mais distintamente notada? No mercado, é claro! Nós não podemos entender o que ocorre no âmbito da produção (ou reprodução social) sem a atuação de forças de mercado. São as leis coercitivas da competição no mercado que orientam o reinvestimento capitalista e o prolongamento da jornada de trabalho etc.

Mas isso nos remete a como Marx estabelece a abstração de valor – o que é, aliás, na visão de Marx, uma relação social, portanto “imaterial porém objetiva” e não “inerente” e “real” como a citação de Murray propõe (“Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos-mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural.” diz Marx n’O Capital). [página 125 de O Capital Livro 1, editora Boitempo, 1ª edição revisada] O valor emerge não como produto do pensamento, mas como produto de um processo material histórico. O estudo de Marx de formas de valor equivalentes e relativas leva à generalização da troca que fundamenta o surgimento do valor como uma norma regulatória que opera no mercado, e é essa norma regulatória do valor que então retorna para dominar comportamentos não apenas no mercado, mas também no âmbito da produção e da reprodução social. Esse é um movimento muito dialético que Marx faz, mas é comumente encontrado no trabalho de Marx. Apenas dessa maneira, por exemplo, pode-se entender como se dá que os trabalhadores façam o capital que em seguida retorna para dominá-los e que todos nós possamos nos tornar prisioneiros de nossos próprios produtos (atenção acadêmicos!!).

Finalmente, permitam-me comentar sobre o exemplo empírico no qual Roberts reduz a demanda final de 70 para 30 porcento. Para ser claro, há uma questão complicada sobre como lidar com relações de valor através de cadeias de mercadorias (há um artigo interessante de Starosta sobre Cadeias de Mercadorias e a teoria do valor de Marx na revista Antipode de 2011). Mas imagine a situação em que minério de ferro seja minerado e a empresa mineradora produza valor e mais-valia, a serem realizados através da venda para uma companhia que produza aço, que por sua vez realize mais valor e mais mais-valia através duma venda para uma empresa automobilística, que produza ainda mais valor e mais-valia pela venda de automóveis para consumidores finais que queiram e necessitem de um automóvel e tenham dinheiro para comprá-lo. O valor do automóvel é todo o trabalho abstrato pretérito aplicado. Suponha que, por algum motivo, os consumidores finais não sejam capazes de pagar ou estejam saturados de automóveis. Então todo o valor acumulado é perdido (desvalorizado). Na prática, como Marx observou, a cadeia de pagamentos pode demorar para se estabelecer, mas quando ela o faz toda a produção de valor nessa cadeia desaparece.

Claro, todo outro tipo de cenários pode ser imaginado. Mas o ponto aqui é que ninguém exceto loucos e especuladores desejarão acumular aço na ausência de um mercado adequado. Então o que ocorre com o valor nessas situações torna-se problemático e as considerações de Robert fazem parecer que investimento na produção de meios de produção é independente da demanda final e pode ocorrer independentemente das condições finais do mercado. Claro, há certos tipos de investimento com todo tipo de defasagem temporal (capital fixo e infraestrutura), como a superprodução chinesa de cidades financiadas pelo endividamento, onde as coisas ficam muito complicadas (como eu destaquei no capítulo final de Loucura da Razão Econômica). Mas o exemplo empírico de Roberts não faz sentido para mim na elucidação do porquê da realização ou as políticas de realização serem irrelevantes ou no máximo colaterais à ação central do âmbito produtivo.

Tudo isso e nós ainda não nos debruçamos sobre as questões espinhosas do dinheiro e das políticas de distribuição ao lado da circulação de capital portador de juros em relação à teoria do valor. Podem bancos produzir valor? Eles claramente podem produzir representações de valor a passo largo… Seríamos nós colaterais também?


Notas:

1) https://profilebooks.com/marx-capital-and-the-madness-of-economic-reason.html

2) [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]

3) Murray Smith, Invisible Leviathan, 2018

4) Cockshott e Cottrel dividiram a economia em um grande número de setores para mostrar que o valor monetário do produto bruto desses setores correlaciona-se fielmente com o trabalho empenhado na sua produção. Anwar Shaikh também fez algo similar. Ele comparou preços de mercado, valores de trabalho e preços padrão de produção calculados das tabelas de fluxo [input/output] dos Estados Unidos e constatou que em média valores de trabalho desviam de preços de mercado por apenas 9,2% e que preços de produção (calculados a taxas de lucro observadas) desviam de preços de mercado por apenas 8,2%. Lefteris Tsoulfidis e Dimitris Paitaridis investigaram a questão das variações de preço-valor usando a tabela de fluxo [input/output] do Canadá. Eles constataram que para a economia canadense os resultados são consistentes com a teoria do valor de Marx. E G. Carchedi, em um artigo recente, mostrou que a validade da lei do valor de Marx pode ser testada com dados oficiais dos Estados Unidos, os quais são preços deflacionados em dinheiro de valores de uso. Ele constatou que taxas de lucro de dinheiro e valor moviam-se na mesma direção (com uma tendência ao decréscimo) e mantinham-se muito próximas uma à outra.

5) “A acumulação de capital, que originalmente aparecia tão somente como sua ampliação quantitativa, realiza-se, como vimos, numa contínua alteração qualitativa de sua composição, num acréscimo constante de seu componente constante à custa de seu componente variável.” [pág. 704 O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revisada]

6) Grundrisse.

7) O Capital Volume 2, Capítulo 20

8) https://thenextrecession.files.wordpress.com/2017/09/carchedi-the-old-and-the-new.pdf

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

3 comentários em “O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx”

Deixe um comentário