O estado contemporâneo da Etiópia

Por Elizabeth Giorgis, via Africa is a Country, traduzido por Rodrigo Manso

2018 foi o ano de uma mudança fundamental na forma de atuação dos governantes da Etiópia. Como isto aconteceu, o que está incompleto, e o que ocorrerá a seguir?


Um movimento de jovens surgiu na Etiópia em 2016, alterando a forma como o poder seria visto em 2018. Jovens adeptos à tecnologia desafiaram as principais teorias de mídias sociais aplicando sua comunicação para mobilização das massas.

Este movimento era contrário ao regime político severamente repressivo da Frente Democrática Revolucionária dos Povos da Etiópia (FDRPE), fundada em 1991 e ainda existente, que ilegalmente impedia protestos de acontecerem. Esta situação se tornou mais evidente após 2 de outubro de 2016, na região de Oromiya, quando várias pessoas morreram no festival anual de Irreechaa (Irreechaa é um importante festival cultural para o povo Oromo. As pessoas se reúnem a cada ano em Bishoftu, 40 km de Addis, para celebrar o fim da temporada de chuva e desejar boas colheitas). O festival foi interrompido pela ação de gás lacrimogêneo e armas de fogo. Após este incidente jovens manifestantes do povo Oromo começaram a atacar estabelecimentos comerciais, colocando-os em chamas. Alguns estabelecimentos eram de empresas estatais, outras de multinacionais.

Inicialmente os protestos foram criados com a intenção de tratar exclusivamente questões pertinentes ao povo Oromo (que é a etnia predominante na Etiópia, seguido pela Amhara). Os jovens manifestantes, chamados de “kero”, que preocupantemente significa “jovem homem solteiro”, foram fundamentais para criação desta identidade. Com o tempo, os manifestantes encorajaram outros movimentos a emergirem, que com ressalvas abraçaram as demandas dos jovens do povo Oromo, desde que ao mesmo tempo reivindicassem as suas próprias. Por exemplo, as mídias sociais agiam e interagiam simultaneamente com o movimento “kero” não apenas na mobilização de pessoas, mas também na criação das mensagens. Apesar de tudo, os jovens manifestantes do povo Oromo eram muito mais sofisticados e organizados do que outros movimentos que surgiram. Posteriormente, o movimento “kero” se tornou a voz da justiça não apenas para o povo Oromo, mas para todos os oprimidos.

A voz do povo não segue em uníssono – nacionalistas dos povos Amhara, Tigrean e Somali, dentre muitos outros, possuem conflitos referente ao nacionalismo e pertencimento do movimento – com múltiplas utopias, desejos e etnias, estas diferenças eclodiram nas mídias sociais. Ainda não ficou claro, entretanto, a extensão do compromisso dos manifestantes com a manutenção e fortalecimento desta forma de protesto. A desigualdade, as relações de poder, as relações entre diferentes etnias por suas predominâncias, ainda precisam de diversos questionamentos. Neste momento delicado, as vozes dissonantes, cada uma com sua própria história, contextos e objetivos, trouxeram questões sobre sua representação e participação política. Com uma perspectiva mais ampla, este momento transformou a atual política; o significado destes protestos reside em alcançar as demandas sociais e demográficas para cada uma destas vozes, de acordo com seu contexto histórico. É neste sentido que as questões sobre os resultados atingidos pelos protestos nas mídias sociais surgiram.

De fato, sem uma liderança definida, o “kero” usa de diversas estratégias de protestos e reivindica respostas a problemas centrais na região de Oromo, como hierarquias de base étnica, direito a terra, desemprego e corrupção. De forma implacável, mesmo sob tiros, os manifestantes foram persistentes nas ruas, as vezes em grupos, outras vezes de forma individual e espontânea/simultânea, atacando estabelecimentos específicos. Apesar dos métodos de vigilância nas comunicações pela internet e celular estivessem em alta, ativistas conseguiram contornar a situação, mesmo com a maioria da comunicação sendo feita pelas mídias sociais.

No momento em que a força excessiva para a aplicação da lei tornou-se insuportável, o movimento se calou por alguns dias, mas apenas para retornar para as ruas com formas totalmente novas de resistência. Como Hanna Arendt diz em seu capítulo sobre ideologia e terror no As Origens do Totalitarismo: “Sob condições totalitárias, o medo provavelmente é dissipado como nunca antes; mas o medo perde seu uso prático quando as ações guiadas por ele não podem mais ajudar a evitar o que se teme”. Simplificando, o movimento repreendido eclodiu em um novo movimento social que era significantemente diferente dos movimentos anteriores; fragmentado, diluído, e com atores sociais reunidos orientados pela identidade étnica que, como resultante, serviu para amplificar as vozes dos oprimidos.

Movimentos sociais anteriores levaram ao poder a FLPT (Frente de Libertação do Povo de Tigré). A revolução de 1974 foi uma revolta em massa que derrubou o governo imperial de Haile Selassie, pondo fim à dinastia salomônica. Entretanto, este momento sem precedentes foi usurpado por uma junta militar autodenominada de Derg (1974 – 1991). Vários movimentos clandestinos, dos quais a FLPT também fazia parte, foram formados para derrubar o regime militar. Foi depois de 17 anos de guerrilha, tendo o Marxismo-Lenismo como sua ideologia central, que o FLPT finalmente assumiu o controle do Estado. O FLPT posteriormente se tornou o FDRPE, formada sob um eleitorado étnico. Em 1994, a Constituição Federal ratificou ser “uma federação com multiculturalismo baseado na etno-representação nacional” (a Etiópia adotou o federalismo étnico e reorganizou regiões de acordo com as etnias quando o FDRPE subiu ao poder em 1991, supostamente para conceder direitos étnico-regionais e estrutura federal e democrática para grupos anteriormente sub-representados).

De acordo com o “Internacional Crisis Group” em seu “Relatório sobre a África” (2012): “O regime não apenas reestrutura o Estado em uma República Federal Democrática da Etiópia, mas também redefine a cidadania, política, identidade dos grupos étnicos [levando a] políticas definidas etnicamente ao invés de mitigar as relações entre etnias”.

Nos anos que seguiram o fim do Estado socialista, o FDRPE redefiniu a natureza das políticas econômicas, sociais e institucionais. Ideias trazidas entre a ideologia neoliberal e a “democracia revolucionária” começaram a surgir no discurso oficial na década de 1990. Do início ao meio dos anos 2000, as políticas da FDRPE mudaram drasticamente. Cada vez mais se afundando na política e economia pós guerra fria, o “estado democrático revolucionário” gradualmente mudou para o “estado revolucionário desenvolvimentista”. Na ausência de um modelo econômico desenvolvido para a Etiópia se relacionar com as fortes economias mundiais, a conciliação entre a retórica esquerdista e as políticas econômicas capitalistas se tornou desconcertante. Nem revolucionaria ou democrática, o Estado impôs narrativas oficiais de mudança econômica progressiva sobre grandes diferenças de renda; e isto apesar do desemprego maciço, repressão da expressão e níveis obscenos de corrupção.

Além das organizações políticas e estruturas baseadas em etnias, a ausência de uma genuína democracia multipartidária também se tornou um crescente conflito. E mais importante, a grande diferença de renda, que era significativa entre as etnias, se tornou motivo de grande inquietação. A urbanização intensificada de Addis Ababa e a sua expansão para os arredores da cidade – terras que são destinadas a fazendeiros do povo Oromo pela federação – se tornou o centro de uma discussão, visto que os fazendeiros do povo Oromo deixavam suas terras por trocados para dar lugar a investimentos corruptos. Certamente, questionar a dignidade do povo Oromo, conforme a perdas de suas terras, foi um ponto importante que o “kero” levantou.

Mas como o processo de mobilização dos protestos foi administrado, e como as redes sociais pautaram seu discurso para que fosse efetiva sua comunicação com participantes em eventos/incidentes que é o interessante, e é o que moldou e formou os protestos da Etiópia contemporânea. Neste novo entendimento de movimento social, grandes mudanças vieram – a renúncia do Primeiro Ministro Hailemariam Desalegn e a indicação de Abiy Ahmed, um líder do povo Oromo do FDRPE para assumir o cargo – diversos protestos com prazo definiram o seu alcance e imediatismo.

Visto que a mídia tradicional estava sob controle do Estado, muitos etíopes, principalmente os jovens, se voltaram às mídias sociais para acompanhar os movimentos. Plataformas como o Facebook serviram como uma alternativa para novas fontes e para identificação social. Elas serviram também como palco para troca de culturas, tal como músicas e literaturas produzidas sob condições tiranas e, acima de tudo, como forma de expressar preocupações sob igualdade e justiça. Música e poesia, que particularmente se tornaram instrumento de ativistas, eram utilizadas tanto pelo povo Oromo quanto outros. Dentre diversos artistas Oromo que participaram dos eventos recentes, o professor de direito Awol Allo afirma que “um músico e uma performance se destaca”. Allo se refere a Haaccaaluu, responsável pela música “Closer to Arat Kilo”, que se tornou um ícone do movimento.

Alternando entre precariedade e resiliência, escreve Allo:

“Haaccaaluu desafiou a audiência e a liderança Oromo da tribuna, que incluía Abiy Ahmed, que na época era presidente da Organização Democrática dos Povos Oromo (ODPO), a realizar ousadas mudanças em relação as posturas públicas e políticas. Ele pediu à audiência que olhassem no espelho, e focassem em si mesmos, buscando descolonizar suas mentes. Nós somos, disse ele, mais próximos a Arat Kilo (o equivalente na Etiópia ao parlamento inglês) tanto por virtudes, geografia e demográfica. (…) A Organização Democrática dos Povos Oromo, partido dominante da coalisão que indicou Abiy, felizmente seguiu o conselho de Haaccaaluu. Depois do Primeiro Ministro Desalegn anunciou sua renúncia, a ODPO lutou com unhas e dentes para garantir a posição do Primeiro Ministro. Após a confirmação eminente de Abiy, o primeiro capítulo de uma jornada que Haaccaaluu forneceu a trilha sonora completa.”

Talvez pode-se dizer que a música se tornou instrumento para as vozes dissonantes. De fato, a música de Haaccaaluu energizou os protestos. Por outro lado, a noção de “nós” na letra da música de Haaccaaluu (como exemplo “nós já chegamos lá?” e “nós chegamos a Arat Kilo?”) tornaram os povos não-Oromo apreensivos. A quem se refere este “nós”? Seria apenas o povo Oromo ou também as outras etnias da Etiópia? Certamente, para os povos não-Oromo da Etiópia, a música era restritiva a quem seriam os vitoriosos.

Mas, de forma irônica, desde que a letra da música de Haaccaaluu proveu uma ampla perspectiva de mudança em um raro momento da história em que resistência e exclusão eram amplamente vistos, sua música, através da tímida discussão sobre o “nós”, também ganhou apoio dos povos não-Oromo nas mídias sociais. Os ativistas escolheram, dentre um conformismo, se unirem ao invés de destrinchar as controversas políticas baseadas em etnias. Neste sentido, enquanto a informalidade e espontaneidade das deliberações nas mídias sociais eram novas e inovadoras, discussões sobre as complexidades da situação, tal como as políticas étnicas, eram tratadas de forma redutiva. Foram com estas tensões não resolvidas que as mídias sociais trouxeram à tona o estado contemporâneo da Etiópia.

Uma percepção essencial sobre a política nas mídias sociais seria: ela deslocou o status quo existente, sendo um instrumento para a renúncia do Primeiro Ministro e para a indicação de um jovem aparentemente progressista para o cargo, de dentro do mesmo partido repressivo que está no poder. Rapidamente após assumir o cargo, o novo Primeiro Ministro liberou centenas de prisioneiros políticos, condenou a prática da tortura (que fazia parte da política carcerária) e legitimou a liberdade de expressão. Neste sentido, o movimento caminhou para se tornar a voz da justiça. No entanto, sem uma ideologia política única e discursos alinhados, como nós constituímos e unimos os problemas não resolvidos das múltiplas micro utopias, desejos, identificações e pertencimentos?

O mais impressionante é que ativistas reivindicam a internet como um espaço neutro aonde todos podem igualmente se relacionar, ignorando aspectos cruciais pertencentes à política econômica da internet, e/ou as realidades dominantes do capitalismo e sua relação com o Estado da Etiópia e sua economia. Além de entender que o Facebook e outras mídias sociais são empresas e novas áreas aonde o capitalismo pode se estender, também é crucial reconhecer as limitações desta forma de protesto que surgiu e continua a existir sem uma análise materialista da estrutura capitalista e seu impacto nos projetos políticos do Estado e as questões que os militantes políticos buscam abordar.

De forma extremamente complexa, tal ativismo resultou no atual surgimento de outros atores políticos após a ascensão de Abiy Ahmed ao poder; um público variado que ainda há de aplicar ideologia em suas causas comuns. A falta de causas em comum é atualmente perigosamente refletida nos conflitos entre este público variado. Eu acredito que nós vamos melhor compreender a composição destas vozes nos protestos se pensarmos por uma nova perspectiva e modelos alternativos que possam ampliar formas produtivas de teorização de movimentos sociais contemporâneos. E digo que uma tarefa importante é identificar os caminhos fundamentais em que múltiplos níveis de opressão são relacionados à classe econômica-política dentro da estrutura do tardio capitalismo e seus mecanismos causais. Talvez nós devêssemos trazer de volta uma contra ideologia para o capitalismo nos estudos dos movimentos contemporâneos para re-teorizar nossas identidades líquidas que são moldadas pelo capitalismo de várias maneiras.

Infelizmente, o novo governo está menos preocupado com a dinâmica do capitalismo global e seus fatores políticos e econômicos sob seus dependentes. Em três meses no poder, o novo Primeiro Ministro se apropriou das vozes dos protestos e está atualmente tentando incorporá-las em sua política partidária. Ele nos diz que uma economia liberal resolveria nossos problemas, uma rápida solução para o desemprego de jovens, os quais a marginalização econômica supostamente trouxe agitação. Além disto, os conflitos étnicos seriam resolvidos através do espirito do “amor”. Sob pressão do FMI, parte de empresas nacionais como a Ethiopian Airlines estão para ser vendidas a investidores privados e parques industriais transformados em locais de exploração da mão de obra para a H&M e outras empresas (políticas herdadas do Primeiro Ministro anterior) devem ser expandidos. A ameaça do projeto autoritário neoliberal desenvolvimentista e seu descompromisso com a alteração das estruturas sociais continuará a florescer. Neste aspecto, as dúvidas se mantêm quanto ao impacto de longo prazo causado pelos protestos em suas grandes mudanças políticas.


Partes deste post foram apresentados como um artigo para a Winter School da University of the Western Cape (UWC), Africa do Sul, em julho de 2018

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