Texto anônimo por requerimento do autor
Este não é um texto necessariamente teórico, mas um estudo de caso (ou se quiser uma auto-reflexão ou relato) sobre minha experiência no mercado de trabalho como forma de pensar a condição do trabalhador ou do trabalho em nossa sociedade.Vejo essa reflexão como algo importante não só como forma de compartilhar tal experiência (pois quase nada do que relatarei aqui é novidade para o trabalhador subalternizado), mas como forma também de pensar a possível superação da exploração do trabalho, quais empecilhos principais se colocam, portanto, para a emancipação do trabalho. O trabalhador só pode se libertar da escravidão do trabalho moderno quando ele mesmo for dono dos meios de produção, estabelecendo relações antagônicas à ganância irracional (ou se quiser, uma racionalidade própria muito particular) do patronato. Sabemos, no entanto, que isso depende de uma organização revolucionária que exclui a conciliação de classe deixando claro que o interesse do patrão é um e dos trabalhadores são outros. Esse é um relato ao mesmo tempo, claro, social e sociológico não tendo nenhum foco pessoal na acusação ou defesa de indivíduos, mas na compreensão das relações de trabalho por hora estabelecidas.
Após onze anos estudando fazendo graduação e mestrado e trabalhando com arte, tive que voltar ao mercado de trabalho. Após quase dois anos procurando, consegui um emprego num restaurante que atende um público de classe média alta, o que me colocou diante de uma dura realidade (pois ter que lidar com este tipo de clientela é suportar uma série de humilhações), mas que por outro lado viria a confrontar toda a teoria que estudei ao longo desses anos. É comum trabalhadores exercendo funções subalternas tendo qualificação como graduação, mestrado, experiência profissional, etc. Isso mostra o quanto a sociedade capitalista exclui pessoas qualificadas por não dar conta de absorver ou utilizar essa mão-de-obra (ou simplesmente por não valorizar determinadas profissões) fazendo uso apenas na lógica de reprodução do capital. Enquanto há professores desempregados um em número de analfabetos permanecem nessa situação sem grandes perspectivas de mudanças.
Esses trabalhadores, que ainda não encontraram lugar em suas verdadeiras profissões, ainda assim não são maiores dos com baixa escolaridade, contrastando uma dura realidade sendo essa pífia formação perfeita do ponto de vista da dominação de classe, pois o trabalhador passa a ser formado basicamente envolto de uma ética protestante, liberal e competitiva ao mesmo tempo em que é altamente subserviente às exigências patronais, não criando nem desenvolvendo métodos de luta capaz de não tornar perene a exploração do trabalho conformando-se com sua condição como se fosse algo irreversível ou da ordem natural das coisas: há patrões e empregados, os que servem e os que são servidos, os que comem e os que olham. Em outras palavras, sempre houve e sempre haverá diferença social.
Certo dia antes de entrar para o meu setor (a cozinha), estava conversando com um garçom que, percebendo meu desânimo, disse para eu me ajoelhar em casa e me entregar a deus, pois ele resolveria tudo. Eu tentei explicar o meu ponto de vista, dizendo que meu desânimo não tinha nada a ver com deus e sim em como a sociedade estava conformada e ele disse que isso era coisa do demônio que entra no nosso caminho atrapalhando tudo. Eu pedi para ele me explicar por que existe a pobreza e a exclusão social. Ele disse que não sabia explicar, mas que isso sempre foi assim desde tempos remotos. É muito difícil debater ideias quando as concepções de mundo são não só divergentes, mas completamente distintas e antagônicas. Percebi naquele diálogo que não havia espaço para um debate de ideias onde as teses pudessem ser confrontadas possibilitando mudanças de pensamento, pois todos os códigos, valores, comportamentos, discursos estão previamente arranjados sendo disparados a cada faísca de discordância principalmente quando se explica o mundo a partir da religião. A pobreza existe, obviamente, não por uma relação eterna entre dominantes e dominados e deus infelizmente nada pode fazer para mudar estruturalmente essa grave situação universal. Ele não descerá dos céus e decretará a igualdade social que se resolverá num passe de mágica. Resolver isso é da ordem humana, portanto, dos vivos e dispostos a enfrentar longas batalhas contra toda uma estrutura social que subjuga o trabalhador.
Numa outra ocasião, meu chefe na cozinha não achou de bom grado a minha presença (pois pedi para trabalhar na cozinha por não suportar servir a classe média abjeta de Niterói – RJ) e passou a estabelecer uma relação nada amistosa até o ponto de me acusar de querer ser melhor que os outros por ler livros ou por contestar certas posições políticas e passou a tecer uma série de “brincadeiras” abusivas insinuando que eu era homossexual por não aguentar o ritmo de trabalho e coisas do tipo até que eu tive que partir para uma reação violenta deixando claro que a humilhação ali não seria tolerada ainda mais entre trabalhadores. Tive que fazer uma espécie de performance na cozinha em voz alta como forma de dar um basta naquela chacota onde todos riam incessantemente da minha cara até que ele se calou. O sujeito não reconheceu qualquer abuso de sua parte, mas ainda assim restabeleci o diálogo como forma de pensar junto a questão da solidariedade de classe que deveria existir ao invés de comportamentos autoritários.
No dia a dia com o trabalhador, sabemos o quanto ainda estamos distantes dessa realidade/condição (revolucionária), principalmente pelo fato do trabalhador médio estar submetido a uma relação absolutamente desleal, opressora e altamente letal à sua saúde física e mental sendo força descartável nas relações de mercado ao passo que não vê outra saída a não ser submeter-se. O trabalhador acaba reproduzindo funções mecânicas, ainda que se exija atitude e desenvoltura para cativar clientes. Isso tudo é incutido nos trabalhadores a partir de uma lógica neoliberal que é pintada de cor de rosa mostrando as virtudes desse sistema traduzido em valores propagado por coach sempre de forma performática quase que infantilizando os seus interlocutores, beirando o ridículo, mas ainda assim convincente aos incautos. O coach é aquele que estimula a competitividade, a iniciativa individual, a renúncia de toda sua vida em busca do sucesso que é compensado desde a conquista de um simples emprego, às mudanças de cargo ascendendo nas empresas como chefia onde se compensa o empregado transformando-o num exemplo de superação e conquista. Este que ascende é o que melhor se ajusta e cobra dos outros que a obediência ao mercado é condição sine qua non para quem sabe se conseguir um lugar no hall dos poucos. Os representantes da franquia, por exemplo, quase todos exerceram alguma função como garçom, cozinheiro ou faxineiro, o que cria identificação com o trabalhador inseguro ou não totalmente convencido de que resignar-se é o melhor caminho. Apesar da promessa de sucesso ser amplamente difundida, não são todos obviamente que conseguem chegar lá, e mesmo os que conseguem sucesso isso não chega a gerar qualquer alteração na pirâmide social. Mas isso obviamente não é abordado pelo coach, que faz um recorte a-histórico e acrítico (ou seja, completamente descolado de um processo histórico e social) onde o mercado é o que melhor consegue regular as relações sociais a partir de um interesse aparentemente geral, mas que na prática beneficia somente os patrões. No final das contas, é melhor aceitar tudo que estar desempregado.
O capitalista aproveitou-se muito bem da situação alarmante de desemprego gerado pela própria dinâmica auto-expansiva do capital (que segundo o IBGE chega a quase 15% – mas imaginemos que para além das estatísticas oficiais este número é imensamente maior) colocando o trabalhador não como força imprescindível e vital aos múltiplos desenvolvimentos da sociedade, mas como alguém privilegiado (mesmo que tenha que se submeter a condições adversas) por não estar desempregado devendo, portanto, ser eternamente grato à empresa o que se paga na forma extasiante de trabalho até o limite de suas forças. O trabalhador a partir de então tem que dar sua vida e seu sangue (ou como eles colocam “vestir a camisa da empresa”) ao trabalho que agora se submete para não se igualar a um amplo setor precarizado ou de lumpem.
Em troca, ele ganha um salário mínimo de pouco menos de R$1.000,00 o que coloca o empregado a ter que se desdobrar em outros serviços além de muitos estenderem sua rotina em seus lares com filhos ou outros fatores como estudos, produção artística, projetos pessoais, etc. Isso é feito a partir de um processo de incutir tais valores de forma verticalizada onde é impossível as discordâncias, devendo o trabalhador apenas obedecer e dispor sua força ao lucro patronal que torna estes cada vez mais ricos. Quando há tensões o trabalhador é automaticamente desligado de sua função dando lugar a outro até que se chegue ao “perfil” da empresa que é basicamente o sujeito que se submete sem restrições às exigências de comportamento e produtividade da empresa. A instabilidade do trabalhador não se dá somente por não adequar-se ao perfil desejado, mas aos humores da gerência e dos proprietários ou ainda às adversidades do mercado que diz quem pode ou não ter trabalho. Estar empregado ou desempregado, portanto, é uma dinâmica já costumeira entre boa parte dos trabalhadores. Dessa forma, a relação entre capital e trabalho é a mais perversa de todos os tempos espremendo o trabalhador até que sobre somente o bagaço.
O fato de ter que arrumar um emprego assalariado numa empresa privada me obrigou a encarar novamente uma realidade que passei a estudar sistematicamente na teoria política. Não que eu nunca tenha trabalhado como mão-de-obra desqualificada, explorada à exaustão. Desde cedo aprendi que a submissão ao patrão é a condição para escapar do desemprego; condição esta desesperadora que leva os sujeitos a uma espécie de morte social, pois sem dinheiro não há possibilidade de se transportar, comer, se divertir, morar, viver, etc., ao mesmo tempo em que quando se está empregado a única coisa que se faz efetivamente é trabalhar, pois o tempo vago é gasto no descanso para que a força de trabalho seja capaz de se dispor novamente ao patrão.
Passei por “n” trabalhos antes de entrar para a universidade. Atendente de telemarketing, cobrador, faxineiro, atendente de bingos que são basicamente casas onde se lava dinheiro de grupos mafiosos. Desde que entrei para a universidade, em 2008, passei a trabalhar em pesquisas para o professorado e fazia certos bicos o que me rendia apenas alguns trocados que garantia minimamente a minha alimentação e coisas muito básicas. Me graduei em história e fiz mestrado em educação em universidades públicas, mas após todo esse processo de qualificação que levou anos, ainda assim me vi obrigado a me submeter novamente ao mercado de trabalho por não conseguir emprego na minha área o que, infelizmente, é algo muito normal principalmente em países como o Brasil. Foi então que passei a distribuir centenas de currículos em empresas de todo tipo. Cheguei a ser chamado a participar de um processo seletivo nas Lojas Americanas. Fiz a provinha de conhecimentos básicos, mas na hora da entrevista, a mulher do RH disse que meu perfil não atendia aos critérios da empresa. Foi então que pensei que não era um bom negócio explicitar em meu currículo a minha formação intelectual.
Conseguir um emprego é ao mesmo tempo um alívio e um novo desespero. O trabalhador se integra à relação entre capital e trabalho e passa a viver uma nova angústia referente à super-exploração do trabalho. Quanto mais a empresa foca num público com poder aquisitivo maior, mais exigente ela é no que diz respeito ao trato com esses clientes, da forma de se portar, o cliente pode tudo praticamente abrindo uma espécie de estado de exceção que por vezes beira o sadismo. Esse estado de exceção não é fictício nem metafórico, pois a forma que a empresa organiza os trabalhadores é baseado numa orientação militar de obediência cega. Só pode fazer isso assim e dessa forma. Não pode chegar atrasado. Você pode ser dispensado a qualquer momento. Estamos te vigiando. Rapidez, superação, produtividade, competição, subserviência ao comando e defesa dos interesses do patrão. Esse é o funcionário padrão, é o que pensa como o patrão, mas está anos luz de ser um. Todo esse jogo cria um clima de animosidade e constante insegurança entre os empregados, onde um tenta ser melhor, mais rápido e eficiente que os demais comprovando sua devoção à escravidão voluntária.
A conscientização e o pensamento crítico encontra enorme barreira então em ambientes como estes, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo. Ainda assim, a função do militante e do intelectual revolucionário é não ceder às gritantes contradições e preconceitos dos trabalhadores, compreendendo que esta condição foi forjada ao longo da história de forma absolutamente autoritária. É claro que a consciência crítica nunca será bem vinda pelos patrões ou gerentes o que coloca o emprego daquele que fala em risco evidente. Mas em toda oportunidade devemos jogar uma semente de forma a estimular a solidariedade de classe entre trabalhadores subjugados pela lógica nociva do mercado.