Entrevista por Bernardo Álvarez-Villar, via El Salto, traduzido por Daniel Alves Teixeira
Anselm Jappe (Bonn, Alemanha, 1962) é um pensador impiedoso e vigoroso, alérgico a argumentos consoladores e a subterfúgios intelectuais. Junto com outros desviados da ortodoxia marxista (Robert Kurz na Alemanha, Moishe Postone no Estados Unidos, Luis Andrés Bredlow em Espanha), passou anos questionando os axiomas de uma esquerda que, pensa Jappe, tem sido incapaz de compreender as transformações do capitalismo nas últimas décadas. Para Jappe e os seus a linha de Ariadne que teria de ser puxada para desvendar o espírito da época se chama “crítica do valor”: “Enquanto o marxismo tradicional se limitou a demandar outra distribuição dos frutos deste modo de produção, a crítica do valor começou a questionar o próprio modo de produção.”
Seu pensamento começou a chegar na Espanha em 1998, quando a Anagrama publicou Guy Debord, um ensaio sobre o filósofo situacionista e a banalização de seu pensamento naquela sociedade de espetáculo que ele tanto repudiara. Desde então tem sido a editora Pepitas de Calabaza que difundiu sua obra em nosso país: Crédito a muerte. La descomposición del capitalismo y sus críticos (2011); El absurdo mercado de los hombres sin cualidades. Ensayos sobre el fetichismo de la mercancía (2009) y Las aventuras de la mercancía (2016).
Seu último livro é La sociedad autófaga. Capitalismo, desmesura e autodestrucción, um estudo abrangente do mecanismo enlouquecido que se tornou o sistema econômico e como seu funcionamento nos leva a acabar como o rei Erisictão, rei grego que terminou devorando a si mesmo quando nada mais saciava o seu apetite, o que funciona como uma alegoria de uma civilização, a nossa, que se auto destrói cega pelos excessos. Anselm Jappe respondeu às perguntas de El Salto por e-mail.
Parte-se da ideia de que a crítica do valor possibilita dar sentido a diversos fenômenos sociais, culturais e políticos que, a priori, parecem não ter relação um com o outro. Você poderia explicar o que é a crítica do valor e por que você acha que é a ferramenta mais precisa para entender a sociedade capitalista?
A crítica do valor é uma corrente internacional, nascida na Alemanha no final dos anos 80 em torno da revista Krisis e Robert Kurz, que propõe uma crítica radical da sociedade capitalista baseada nas teorias de Marx, mas que se afasta do marxismo tradicional. A crítica do valor coloca no centro as categorias de mercadoria, valor, dinheiro e, acima de tudo, trabalho abstrato, isto é, trabalho considerado apenas pela quantidade de tempo gasto, sem levar em conta seu conteúdo. Para a crítica do valor, a exploração e a luta de classes são apenas parte do problema: o capitalismo é também uma subordinação do concreto ao abstrato, o que o torna uma sociedade incapaz de auto-regulação, e isso é visto na crise ecológica. A crítica do valor se opõe à fragmentação pós-moderna do pensamento: a lógica da mercadoria e do trabalho abstrato cria uma teoria capaz de pensar a totalidade.
No livro, além da crítica do valor, você constantemente recorre à psicanálise: o que a psicanálise pode nos dizer hoje? Como ela complementa a crítica do valor?
O fetichismo das mercadorias, uma categoria crítica essencial de Marx retomada pela crítica do valor, refere-se a um nível profundo e inconsciente da sociedade. Mais além de suas intenções conscientes, os indivíduos executam os imperativos de um sistema social anônimo e impessoal. Marx chama o valor de “sujeito automático”. A psicanálise, por outro lado, é outra maneira de entender esse lado inconsciente da vida social. Ambos os enfoques são complementares, mas devem ser integrados: no geral, a psicanálise tem unilateralmente colocado ênfase no indivíduo, negligenciando a dimensão social e sua evolução histórica, enquanto que o marxismo tem negligenciado a dimensão psicológica em favor apenas do nível econômico e político. Sob a superfície racional da busca dos próprios interesses, o capitalismo é uma sociedade extremamente irracional e contraproducente que não pode ser explicada somente mediante as motivações consciente dos atores sociais.
Por que você diz que 1968 é o ano inaugural de um novo capitalismo, “o narcisista”, diante de seu antecessor, o “capitalismo edípico”?
O caráter social baseado no trabalho árduo, na poupança, na repressão dos impulsos, na obediência às autoridades etc., começava a não ser funcional após a Segunda Guerra Mundial. As profundas mudanças sociais produzidas desde 1968 não levaram a uma superação do capitalismo, mas à sua modernização. Muitas exigências por liberação individual encontraram sua pseudo-realização na sociedade de consumo. A submissão “edípica” a uma autoridade pessoal – por exemplo, um professor que prega “pátria, trabalho e família” – foi substituída pela adesão a um sistema que aparentemente permite aos indivíduos realizar as suas próprias aspirações … Mas a condição, claro, é que isso ocorra em termos de mercado! Agora, por exemplo, os professores são coachs que querem ajudar os jovens a incorporar-se no mercado de trabalho e a realizar seus “projetos de vida”.
Você escreve que “as antigas instâncias de liberação foram integradas na ideologia do sistema”. A esquerda segue ancorada em uma visão de mundo que ainda não assimilou a ruptura que você diz que ocorreu em 1968?
Muitas vezes é assim. Existe uma tendência generalizada de identificar o capitalismo contemporâneo com seus estágios passados e ignorar a evolução que ocorreu. Por quê? Essencialmente, porque é muito mais fácil de conceber uma visão dicotômica em que “nós” – o povo, o proletariado, os trabalhadores, o “99%” – somos os “bons” em face de uma pequena minoria que nos oprime. É muito mais difícil admitir até que ponto todos nós estamos envolvidos no sistema e também temos que rever nossa adesão pessoal a muitos valores e estilos de vida dominantes.
Como enfrentar então um sistema que, como você diz, é um mecanismo cego e autônomo, do qual ninguém pode ser responsabilizado e que não é possível controlar?
O fato de que o essencial não sejam as responsabilidades pessoais – que, no entanto, existem; basta pensar em Monsanto-Bayer e suas campanhas de desinformação sobre os perigos de seus produtos como Roundup – certamente não nos impede do fato de que podemos e devemos nos opor a qualquer deterioração das condições de vida causadas pela lógica econômica desencadeada, se trate de uma mina ou um aeroporto, de um shopping center ou dos pesticidas, de uma onda de demissões ou do fechamento de um hospital. No entanto, ao mesmo tempo é necessário mudar a própria vida e romper com os valores oficiais assimilados, como o de trabalhar muito para consumir muito, e com os imperativos de competição, de performance, de eficiência, velocidade, sem se perguntar a serviço do que é necessário ser eficiente.
Atento aos perigos que envolvem a digitalização da vida, da inteligência artificial e da engenharia genética, a que tipo de mundo estão nos levando essas tecnologias que abraçamos com entusiasmo, como se fossem solucionar nossos problemas?
A opinião pública está perplexa e dividida diante dessas tecnologias. Os perigos são conhecidos. Mas muitas vezes suas supostas vantagens também são destacadas: plantas geneticamente modificadas aumentam o rendimento agrícola, a pesquisa genética combate as doenças raras, a inteligência artificial gerencia cidades inteiras de forma ecológica, o uso precoce do computador aumenta a inteligência das crianças … Supõe-se que em cada situação se deve sopesar as vantagens e desvantagens. Mas a verdadeira questão é outra: nenhum problema atual requer uma solução técnica. Se trata sempre de problemas sociais.
Por que aumentar a produtividade agrícola através de culturas transgênicas se uma grande parte das plantações acabam lançadas ao mar para manter os preços altos? Por que revolver os genes para combater doenças raras se milhões de pessoas morrem de doenças das mais vulgares, causadas, por exemplo, por água contaminada? Por que administrar a cidade usando algoritmos do Google, em vez de abandonar o plástico, o petróleo, o carro, o concreto armado ou o ar-condicionado, para ter um ambiente mais sustentável?
Você diz que um dos grandes problemas da nossa sociedade é que ela nos condena a viver em uma infância perpétua. Por que o capitalismo precisa que sejamos como crianças para funcionar?
Por um lado, todo poder separado requer súditos infantis. Por muito tempo, foi a religião que cumpriu essa função. Em alguns aspectos, o século XIX marcou o início de uma emancipação mental em um nível massivo, com relação ao qual o século XX representa bem mais uma regressão. Quanto mais o cidadão-consumidor obedece a seus impulsos imediatos, mais se aproveitam dele o mercado e o Estado. A tendência ao narcisismo generalizado também significa uma regressão a um estágio primitivo da infância, onde não há separação real entre o eu e o mundo. Como explico em meu livro, esse narcisismo solipsista está ligado à lógica do valor e do trabalho abstrato, que nega igualmente a autonomia do mundo e o reduz a uma emanação do sujeito.
Você dedica cinquenta páginas do livro para refletir sobre as novas formas de crime e terrorismo: Quais são as características dessa nova violência e do que você acha que elas são o sintoma?
O crime tornou-se tão irracional e auto-referencial quanto a lógica econômica – a acumulação tautológica de trabalho, valor e dinheiro – e a psique narcisista dos indivíduos. O amok[1], em suas várias formas, é o exemplo supremo de um crime que não mais obedece à realização de um interesse, aceitando os riscos, mas, nesse caso, a destruição e a autodestruição tornam-se fins em si mesmos. O ódio do sujeito da mercadoria pelo mundo e por si mesmo, normalmente latente, se manifesta aqui, e por isso atinge a opinião pública com tanta força. Que depois se acrescente uma pseudo-racionalização política ou religiosa é muitas vezes algo secundário: no crime gratuito se faz evidente o vazio fundamental que habita o indivíduo contemporâneo, enquanto dominado por uma economia enlouquecida.
Você escreve que “um retorno ao Estado Social não é possível e nem desejável”: Por que não é possível e por que não é tampouco desejável? No que consistem então esses “compromissos suportáveis” de que você fala no final do livro?
O “Estado Social” foi financiado durante o último grande período de acumulação econômica, o chamado “milagre econômico” do período pós-guerra. Hoje este tempo é muitas vezes lembrado com nostalgia, sobretudo na França, como uma época de ouro. Uma parte da esquerda gostaria de simplesmente retornar a essa situação. No entanto, seu fim não se deve somente a uma contraofensiva do capital na era neoliberal, mas também ao declínio objetivo dos benefícios, resultantes da substituição do trabalho vivo pela tecnologia, a única fonte de valor e, consequentemente, da mais-valia e do lucro.
A revolução microeletrônica dos anos setenta acelerou intensamente o desaparecimento do trabalho vivo, e em consequência dos benefícios e, finalmente, a possibilidade de financiamento do Estado social. Deve-se dizer, no entanto, que a sociedade dos anos 60 era rígida e entediante, com um futuro completamente voltado para os jovens. Foi contra esse modo de vida que a juventude mundial se levantou em 1968. A precariedade perene estabelecida mais tarde pelo neoliberalismo é uma paródia sinistra da vida aventureira. Em vez de sonhar com um retorno a um capitalismo moderado, hoje devemos ir além de uma sociedade na qual devemos nos contentar com migalhas na forma de “proteção social”.
Que virtudes e fraquezas você vê no movimento feminista que tem crescido nos últimos anos?
O movimento feminista teve em certos aspectos uma evolução comparável à do movimento operário histórico: após a rejeição inicial de toda sociedade que produz a opressão do próprio grupo, passou a esforçar-se para garantir uma melhor integração – em um caso, dos trabalhadores; no outro, das mulheres – em um sistema que não colocava mais verdadeiramente em questão, com algumas posições privilegiadas para algumas porta-vozes. Os trabalhadores conseguiram o direito de votar e, depois, um carro e uma pequena casa; alguns até se tornaram ministros. As mulheres, além de poderem votar, conseguiram se tornar policiais, e algumas também ministras. Mas nem todo mundo gosta disso. No campus da Universidade Complutense vi um grafite que dizia: “Contra o feminismo liberal”.
A crítica do valor, por outro lado, se converteu em “valor-split crítico”, um termo um pouco complicado para dizer que o “…….” da esfera do não-valor no sentido econômico, tradicionalmente assinalado às mulheres (essencialmente, tarefas domésticas e os comportamentos relacionados), constitui um pressuposto essencial para a produção de valor econômico. Por isso, a crítica do patriarcado é uma parte fundamental da crítica do valor: o capitalismo é patriarcal por natureza e vai não ser superado sem a abolição do patriarcado.
Como você interpreta o auge do populismo e da extrema direita a partir da crítica do valor? Você diz que o populismo é transversal e que pouco importa que ele reivindique “aqueles de baixo” ou “a nação”.
As diferentes formas de populismo reagem aos problemas sociais – sobretudo, à distribuição desigual da riqueza – identificando um grupo de responsáveis pessoais: os ricos, os banqueiros, os corruptos, os especuladores. Se ignoram as lógicas sistêmicas e se recorre ao moralismo (a “ganância”). Quase sempre, o populismo santifica o “trabalho honesto” e o opõe aos “parasitas”. Por isso, a diferença entre o populismo “de direita” e o populismo “de esquerda” não é tão grande quanto se acredita. Ambos se baseiam em um falso anti-capitalismo. Não se trata de uma novidade absoluta; nos anos 20 e 30 já havia fenômenos desse tipo. Então, o anti-semitismo constituía um aspecto essencial. Mas que também existe hoje, de forma subterrânea e às vezes abertamente, na denúncia do “especulador”.
Você diz no livro que não vivemos em uma sociedade tão laica como gostamos de pensar, e que Deus foi substituído pelo Mercado. Podemos viver sem ídolos e deuses?
Até agora, na história, um tipo de religião substituiu o outro. A chamada secularização não ocorreu; em certos aspectos, a mercadoria constitui uma religião mais insidiosa do que a antiga, porque cada mercadoria em particular representa um ser fantasmagórico: a quantidade de trabalho abstrato que a produziu.
Você acha que, como Erisictão, nos auto-destruiremos ou seremos capazes de puxar o freio antes da catástrofe final? O capitalismo terminará colidindo com os limites do planeta ou tropeçará antes com sua própria dinâmica?
Quem pode saber! Meu livro quer ser apenas uma pequena contribuição para evitar essa catástrofe. Parece bobo, mas depende de cada um de nós. A atitude de cada um frente aos desafios do presente não depende mais de pertencer a uma classe social, a um país, a uma raça, a um sexo. Cada um de nós é chamado a adotar posições nas muitas questões abertas. As fronteiras tradicionais (dominadores/dominados, ricos/ pobres, sul/norte do mundo) estão hoje um tanto confusas, mas isso é também uma oportunidade. É sobretudo a questão ecológica e climática que pode constituir a base de um amplo movimento de contestação … que, no entanto, também encontrará inimigos, disso não há dúvida.
[1] Na Psiquiatria, a síndrome de Amok é uma síndrome que consiste em uma súbita e espontânea explosão de raiva selvagem, que faz a pessoa afetada loucamente ataque e mate indiscriminadamente pessoas e animais que aparecem à sua frente, até que o sujeito se suicide. (Nota do tradutor, via Wikipedia)
3 comentários em ““Nenhum problema atual precisa de soluções técnicas. Se trata sempre de problemas sociais.””
Não sei a quem o Jappe está pagando tributo, mas a proposição está invertida: a abolição dos resquícios do patriarcado pré-capitalista (cuja função no capitalismo moderno é principalmente *ideológica*) não é pré-condição da abolição do capital, mas ao contrário: não haverá fim para a *utilidade* do patriarcado sem a abolição do capitalismo.