Por Francisco Martins Rodrigues, via Marxists.org
“O triunfo e a decomposição do capitalismo, ao atingirem a escala planetária, mergulham nas trevas da sua agonia todos os estratos da sociedade, contagiam-nos com a sua cegueira. Sob a condescendência dos argumentos de “modernidade” esconde-se uma tremenda regressão do pensamento crítico em matéria social. “
Nestes três curtos artigos, o comunista português FRM traça alguns pontos de polêmica com a re-apropriação acadêmica do marxismo, em especial após os anos 90.
Marx em liberdade vigiada (1995)
Afinal, nem tudo no marxismo é para deitar fora, concedem os entendidos. Após cinco anos de repúdio universal, o velho Marx recupera o direito a sair à rua. Desde que não insista no seu funesto plano de expropriar a burguesia.
O “caso Karl Marx” voltou à ribalta. Primeiro, foi Jacques Derrida, filósofo de bom tom, inventor patenteado do “desconstrucionismo”, que provocou celeuma ao afirmar, na apresentação de um livro com o título insólito de “Espectros de Marx”, que os incontáveis deserdados deste mundo constituem uma nova Internacional em potência. Disse mais: “Creio na necessidade de voltar a um certo marxismo para fazer face ao dogmatismo capitalista”! Passada a estupefação inicial, outros filósofos igualmente respeitáveis, Balibar, Giles Deleuze, Alain Finkielkraut, aventuraram-se a confirmar que há no marxismo, de fato, contributos úteis para a compreensão da época atual. E Geremek, o ideólogo histórico do Solidarnosc, asseverou que “o fracasso do marxismo como doutrina política não implica o fracasso da inspiração marxista”.
Não tardou nada que comentadores e jornalistas, farejando a possibilidade de o produto voltar a ter alguma saída no mercado, fizessem uma pausa na orgia neoliberal e se lançassem briosamente na reavaliação dos “lados aproveitáveis” do marxismo. A tal ponto que uns tantos amigos da ordem, inquietos, começaram a alertar contra o retorno dum “cripto-marxismo” rastejante.
Conclusão: estude-se Marx como um clássico ainda hoje válido mas rejeite-se o “visionarismo” do seu projeto de assalto ao poder de Estado por uma classe organizada em partido. Como pensador político, Marx deve ser banido. “O preço pago pela utopia da revolução proletária foi demasiado pesado”.
O caso é que poucos, mesmo à esquerda, protestam contra esta venda do marxismo em saldos. “Pois não é verdade que socialismo, ditadura do proletariado, fim da exploração do homem pelo homem, acabou tudo em farsa?”
Pensava-se que o capitalismo estava sendo empurrado para fora da cena por um sistema novo, mais dinâmico, em crescimento imparável (ainda que distorcido ou imperfeito), para afinal ver o colosso soçobrar num naufrágio reles, entre cenas burlescas, enquanto a burguesia, “condenada pela história”, parece cada vez mais florescente e cheia de apetite. Mais chocante que tudo a facilidade com que povos “educados em socialismo” aderiram aos conceitos mais rascas da “democracia ocidental”. Contávamos com eles para demonstrarem a vantagem duma nova ordem social, aparecem a pedir o regresso dos patrões…
As lamentáveis “revoluções” de 89, ao pôr milhões na rua a aclamar a lei do capital em nome da democracia, deixaram a esquerda bruscamente nua e desamparada. Daí o sentimento de apocalipse que levou muitos a pedir perdão à burguesia. O capitalismo ganhou a partida, logo, é invencível esse é o tosco fio condutor do seu pensamento ajoelhado.
Que estes receios eram infundados demonstrou-o o desenlace do debate. Feito o apuramento, verificou-se um amplo consenso dos meios intelectuais responsáveis quanto às “limitações insuperáveis” do pensamento de Marx. Filósofo de valor, fustigador implacável das injustiças sociais, crítico arguto de certos mecanismos capitalistas, útil ainda hoje pelas suas elaborações em torno das crises, do exército industrial de reserva, da pauperização, etc., ele teria falhado fragorosamente ao embrenhar-se pelas visões messiânicas do “Manifesto do Partido Comunista”.
Querer adivinhar a passagem do gênero humano a uma sociedade igualitária, não governada pelo Capital, aparece hoje, aos nossos emancipados pensadores atuais, como uma extravagância romântica, própria das brumas do século XIX. Pior ainda ter metido tal ideia na cabeça duns tantos operários e ter formado a “Internacional”. Nesse ponto, não há quem o absolva. Foi Marx, acusam, ao inventar o negregado conceito de “ditadura do proletariado”, que inspirou o “genocídio atroz causado por Lênin e Stalin com as suas experimentações sociais” e os que depois lhes seguiram as pisadas noutras partes do mundo. Foi o determinismo histórico marxista que criou um clima propício ao totalitarismo, ao fanatismo e ao “amoralismo” dos seus seguidores, ao fazer-lhes crer que podem rejeitar os valores socialmente aceites e permitir-se qualquer violência em nome da razão de classe e da edificação da “sociedade do futuro”. Sem a justificação teórica fornecida por Marx, alguma vez Lênin teria ousado derrubar a jovem república democrática russa e instaurar o seu tresloucado “poder dos sovietes”?
Tirando os fiéis do PC, que ainda esperam piamente ver o “socialismo” renascer um destes dias dos escombros, em plena Praça Vermelha, a noção geral é de que fomos vítimas dum logro gigantesco. “Andamos todos estes anos atrás duma miragem”. E por culpa do Velho, em última análise. “Marx errou” porque as revoluções conduzidas pelos comunistas acabaram na arregimentação, nas depurações e no medo logo, “a ditadura do proletariado é totalitária”. “Marx errou” porque a expropriação da burguesia conduziu à ineficácia econômica e à estagnação logo, “o socialismo é um desvio sem saída”.
Porquê então correm alguns a repescá-lo, tão pouco tempo depois de o terem lançado à valeta? É que o tombo foi brutal, desde o repicar dos sinos pela “nova era de liberdade” até às sujas fainas atuais da “construção duma economia competitiva”. Os eufóricos democratas que em 89 saudaram a “morte do comunismo”, prestaram homenagem aos valores da democracia ianque, reabilitaram toda a escumalha reacionária e cantaram hinos à livre iniciativa, descobrem que abriram as portas do inferno e buscam no marxismo uma barreira protetora.
Não é preciso ir ao Terceiro Mundo agonizante sob os “planos de ajustamento estrutural” nem sequer ao Leste, lançado no caos pela “libertação”. Aqui, nas metrópoles do capital, a devastadora ofensiva neoliberal da finança desmantela, sem olhar a consequências, todos os equilíbrios sociais longamente arquitetados: milhões são despejados no desemprego definitivo, conquistas julgadas inamovíveis são riscadas, generaliza-se o trabalho precário, cresce a pauperização dos “excluídos”, enriquecem em ritmo vertiginoso legiões de aventureiros e burlões, dissolve-se a máscara de isenção do poder estatal, revela-se em pleno a farsa das instituições representativas, serve-se bestificação em massa ao domicílio.
Os tolos que se embeveciam com as maravilhas da era das comunicações e da automação, do consumismo e da sociedade “pós-moderna”, dando como certa a dissolução dos antagonismos de classe no octano das classes médias, descobrem aturdidos que, apesar das suas mutações, o sistema repousa como há cem anos sobre a extorsão máxima de mais-valia. O capitalismo em putrefação exibe a sua tenebrosa maquinaria interna, com tanto menos cerimônia quanto agora já não tem que se preocupar com os “cantos de sereia” do rival do Leste. Um bom emblema dos “novos tempos”: a Inglaterra mandou para casa milhares de mineiros, para passar a comprar carvão colombiano extraído por crianças fica mais em conta…
A mundialização do Capital não produz, ao contrário do que supuseram os incuráveis optimistas de serviço, uma tendência igualizadora mas o extremar dos abismos entre as metrópoles do capital e as zonas periféricas, dentro de cada país, de cada cidade, de cada empresa. Não traz o fim das confrontações e do “totalitarismo” mas a sua exacerbação.
Por isso, Marx, mesmo “desmentido pela história”, faz falta outra vez. Chiapas veio avisar os distraídos de que o fantasma da revolução se recusa a sair da cena. Os indefectíveis arautos da “dignidade humana”, que ainda há dois anos acolhiam com chacotas as queixas “miserabilistas” dos pobres, redescobrem a compaixão pelos “desfavorecidos”. Só imbecis sem qualquer tato político insistem em cantar louvores ao livre jogo do mercado.
A “reabilitação” de Marx desempenha para o reformismo uma função dupla: tocar o sinal de alarme para a burguesia no poder, fazendo-lhe entrever as penas do inferno se não moderar o seu apetite insaciável; e oferecer à frustração indignada das massas uma válvula de segurança moralizante. Marx é convocado como papão para uns, consolador para outros uma espécie de criado para todo o serviço.
Seria preciso que o Velho se prestasse a esse papel, o que não é o caso. Aquilo a que os tacanhos professores e publicistas burgueses chamam de “messianismo” e “voluntarismo” de Marx é justamente o miolo da sua teoria. No marxismo não se pode separar uma parte científica a crítica da economia capitalista de outra parte “subjetiva” a teoria da revolução proletária; elas formam um todo, por mais que os professores teimem em dissociá-las. O Marx investigador do processo de produção capitalista é inseparável do Marx do Manifesto Comunista. Ao descobrir como o Capital avassala toda a sociedade, remodela as classes e transforma cada indivíduo em agente da sua valorização, ele mostrou que a dinâmica do sistema conduz necessariamente a uma explosão das forças produtivas mas também ao extremar dos antagonismos, ao confronto proletariado-burguesia e à revolução.
Compreender os mecanismos do sistema capitalista (o que não é o caso dos acadêmicos “marxistas”) é sair do universo de classe porque atravessam as diversas classes? Não será melhor reconhecer no visionarismo de Marx as marcas duma fase infantil do capitalismo?
Esquecem os objetores que a análise do processo capitalista feita por Marx diz respeito às leis gerais do sistema e mantêm validade enquanto este não for superado. Se o capitalismo, na sua corrida incessante para substituir o trabalho vivo por trabalho morto, para obter o preço mais baixo por unidade de produto, se revolucionariza continuamente, e dá novas configurações ao conflito proletariado-burguesia, ele não deixa de se mover em torno do seu eixo imutável – a acumulação do capital – e de caminhar para o seu desenlace.
Marx desatualizado? Na realidade, com todos os conhecimentos modernos, é-nos mais difícil, hoje, abarcar as leis gerais do sistema do que foi a Marx. Se ele pôde, há século e meio, divisar com lucidez genial os contornos da sociedade sem classes para além do capitalismo, isso deveu-se aos vastos horizontes que rasgava essa era de mudança, quando a nova ordem social emergia cheia de dinamismo sobre os escombros do mundo feudal. Hoje, a mudança e inovação tecnológicas vertiginosas ocorrem sobre um fundo de relações sociais bloqueadas e apodrecidas pela tirania do capital, quando este se afunda na degenerescência especulativa e quando a ausência de convulsões revolucionárias mais dificulta a inteligência dos processos.
O triunfo e a decomposição do capitalismo, ao atingirem a escala planetária, mergulham nas trevas da sua agonia todos os estratos da sociedade, contagiam-nos com a sua cegueira. Sob a condescendência dos argumentos de “modernidade” esconde-se uma tremenda regressão do pensamento crítico em matéria social. E não é de esperar uma mudança radical enquanto o processo revolucionário não irromper por alguma fenda na muralha da segurança imperialista. Nenhuma visão objetiva é possível, hoje como no passado, se não for em ruptura com a burguesia, em identificação com as vítimas do Capital.
Por nós, não nos pesa o nome de marxistas, isto é, de comunistas. Não sofremos do complexo dos que ficaram soterrados sob os escombros do “socialismo real” e agora tentam fazer perdoar as heresias passadas. Não somos réus perante o tribunal burguês. Estamo-nos marimbando para o juízo dos ideólogos de serviço. Não temos nada em comum com os “comunistas” reciclados que trabalham no duro, engolindo humilhações e insultos para ganharem direito à fardeta de mordomos da democracia burguesa.
Sabemos que tudo está por fazer na busca das vias da revolução proletária, muito mais distante do que supunham Marx ou Lênin. O caminho para a frente, que a eles parecia curto e linear, vai-se desdobrando, a cada curva, em interrogações inesperadas. Como coesionar e dar identidade revolucionária ao proletariado no mar das novas diferenciações de classe? Como paralisar a instabilidade da pequena burguesia? Como construir o partido dos comunistas de modo a não ser assimilado pelo sistema? Como favorecer o máximo potencial das explosões revolucionárias no Terceiro Mundo? Como aniquilar a máquina terrorista da burguesia? Como dar existência à ditadura do proletariado, à democracia socialista, de que até hoje só conhecemos breves esboços?
A nossa incapacidade atual para responder a estas questões não nos assusta. Mesmo não sabendo quando e por onde abrirá caminho uma nova vaga de revoluções, algumas constatações damos como definitivamente adquiridas: as novas tecnologias, ampliando desmesuradamente o poder das multinacionais, levam as contradições sociais à exasperação; os duelos planetários pela conquista dos mercados e pelo lucro máximo desencadeiam a pilhagem e a bestialidade sem freio da burguesia, tornando o capitalismo insuportável para a esmagadora maioria da humanidade; a criação dos grandes espaços imperialistas, necessária para a rentabilização dos capitais, abre ao movimento operário uma nova era de internacionalismo muito mais vasta do que a do passado; os conflitos antagônicos gerados pelo capitalismo não tendem a esbater-se ou a dispersar-se; pelo contrário, concentram-se e polarizam-se na grande contradição mundial proletariado-burguesia.
É tempo perdido, pois, chorar ou aclamar a morte do comunismo. Enquanto no horizonte se perfilar a necessidade do derrubamento violento do sistema, o comunismo continua vivo, por mais certidões de óbito que lhe passem.
O Prof. Immanuel Wallerstein tornou-se um nome obrigatório quando se fala da esquerda “moderna” e há quem veja nos seus ensaios imaginativos e eruditos o marxismo do nosso tempo.
Num artigo publicado na revista marxista americana Monthly Review [1], sob o título “Uma política de esquerda para uma era de transição”, o Prof. Wallerstein apresenta as suas soluções para que a esquerda ultrapasse o estado calamitoso em que se arrasta e aproveite as novas possibilidades de acabar com o capitalismo.
Basicamente, ele encara com optimismo a nova situação mundial, na medida em que “nos libertou da estratégia e da retórica leninista, agora inúteis” e que, ainda por cima, travavam o radicalismo popular com a promessa dos “amanhãs radiosos”.
A velha estratégia da esquerda, que consistia em, primeiro conquistar o poder e em seguida transformar a sociedade, talvez fosse a única possível no século que findou, admite. Mas falhou em toda a linha: tanto os social-democratas, como os comunistas, como os movimentos de libertação nacional chegaram ao poder um pouco por toda a parte no período de 1945-1970, mas não conseguiram mudar o mundo como prometiam.
Daí ter surgido a partir da “revolução mundial de 1968” (?!), a busca de estratégias alternativas por parte de uma grande variedade de movimentos, cujas grandes linhas apontam em sua opinião para:
- “generalizar o espírito de Porto Alegre” [NE: Fórum Social Mundial, altermundismo]– multiplicar as ações populares descentralizadas que melhorem de imediato a vida das populações;
- “usar uma tática eleitoral defensiva”, ou seja, numa perspectiva pragmática, visar a vitória de forças do tipo da “esquerda plural” em França e pressioná-las para lhes arrancar concessões;
- “fazer avançar incessantemente a democratização” – impulsionar as reivindicações que trazem benefícios imediatos ao povo com a vantagem adicional de estreitarem as margens de lucro do capital;
- forçar o centro liberal a cumprir os seus slogans – se são pela liberdade, abram as fronteiras aos imigrantes; se são pelo regime de empresa livre, então o Estado não tem que salvar as empresas em falência;
- fazer do anti-racismo a medida definidora da democracia;combater a mercantilização, que é o elemento essencial da acumulação capitalista – “contra as universidades e hospitais geridos para o lucro, transformemos as siderurgias em instituições não lucrativas” (!);
- não cair nas armadilhas das falsas saídas: defender os direitos humanos, levar a julgamento os genocidas, banir as armas nucleares e biológicas? Sim, se for para todos.
Num segundo comentário às críticas (estranhamente brandas e cautelosas) que lhe formula a redação da revista, Wallerstein reafirma que “o estratego Lênin já não é levado a sério”, que a sua estratégia não era afinal muito diferente da da social-democracia visto que o seu discurso sobre a conquista do poder de Estado “despolitizava as massas”.
Não é preciso mais para se entender a estratégia que nos oferece o Prof. Wallerstein. O pecado da esquerda até hoje é ter pensado em tomar o poder de Estado. Acabe-se com essa estratégia “despolitizadora” (!), voltem-se as massas para a conquista de benefícios imediatos e palpáveis, forje-se a união de todos os que querem a democracia – e o sistema entrará no seu colapso inevitável…
Wallerstein reincide assim, com uma linguagem “moderna”, na pecha de sucessivas gerações de eméritos acadêmicos “marxistas”: muita agudeza, muita originalidade, mas uma insuperável cobardia quando se chega ao cerne da luta de classes, à questão do poder. Como não há-de ele detestar Lênin!
Para dar uma aparência coerente à sua construção, o nosso professor tem que forçar os fatos: confunde leninismo com social-democratismo, confunde a revolução russa com o aberrante regime que vigorava na URSS, arruma os governos burgueses social-democratas na mesma categoria dos governos revolucionários, omite as causas sociais do fracasso da revolução russa e das revoluções de libertação nacional, descobre uma tendência para “o alastramento da democratização no mundo”, esquece a realidade do imperialismo – e, para baralhar as pistas, cobre-se com um radicalismo de papelão (“ações de massas!”, “arranquemos concessões aos liberais!”, “transformemos as siderurgias em instituições não lucrativas!”).
O reformismo do Prof. Wallerstein, de tão atrevido, é quase desarmante. Mas não é preciso grande investigação para ver a fútil inconsistência das suas propostas “para os próximos dez ou vinte anos”: o mundo que Wallerstein entrevê do alto das suas elucubrações não tem nada a ver com a luta feroz do capital agonizante, com a resistência do proletariado e dos povos e com as gigantescas batalhas de classes que se avizinham.
Num ponto estamos de acordo: a esquerda está num estado calamitoso, e uma prova disso é a desfaçatez com que este “cientista social” anda a oferecer a sua pacotilha reformista sem que ninguém lhe ponha uma etiqueta de charlatão.
Manifesto Contra o Trabalho (2003)
Analisamos aqui uma das mais recentes produções teóricas do grupo Krisis, que edita na Alemanha uma revista sob a direção de Robert Kurz, e que tem publicado livros com impacto na esquerda europeia, como O colapso da modernização e o Livro negro do capitalismo (não confundir com outra obra de igual título publicada recentemente entre nós).
Com perto de vinte anos de existência, o grupo Krisis veio evoluindo do marxismo para uma espécie de anarco-situacionismo, o que mistura nas suas análises agudeza teórica, generalizações estimulantes mas também por vezes puro charlatanismo.
Ao apresentar na livraria “Ler Devagar“, em Lisboa, este Manifesto contra o trabalho, Norbert Trenkle, co-autor da obra, assinalou que a crise atual do capitalismo indica que este atingiu o seu limite histórico; na sequência da revolução microeletrônica, a produção de riqueza desliga-se cada vez mais da utilização da força de trabalho humana, pelo que a maioria da população mundial, tornada desnecessária à valorização do capital, é rejeitada como rebotalho excedentário. “A sociedade do trabalho chega definitivamente ao fim” e os paliativos social-democratas de “programas de emprego” e de retorno ao Estado-providência tentam ressuscitar tempos idos que não voltarão mais. Entramos no que o livro classifica como a crise final autodestrutiva do sistema, e tudo isto porque o capitalismo fez da atividade humana um princípio abstrato que domina as relações sociais e instituiu a transformação permanente da energia humana em dinheiro.
Até aqui, tudo bem. Mais problemáticos são os aprofundamentos da teoria marxista da alienação do trabalho em que os autores se lançam. Marx teria errado ao querer ver um sentido ascendente na sucessão dos vários modos de produção e ao atribuir um caráter progressista à explosão das forças produtivas promovida pelo capitalismo. “Trabalho e capital são as duas faces da mesma moeda”. Com a sua denúncia da exploração do trabalho pelo capital e não do próprio trabalho, a “esquerda política” uniu-se à direita na escravização da humanidade à civilização do trabalho. Quanto à classe operária, ela “nunca foi um antagonista em contradição com o capital”. E a consigna da Internacional contra os ricos ociosos “teve o seu eco macabro” na divisa nazi em Auschwitz “Arbeit macht frei”!
O Manifesto termina com o quadro aliciante de uma sociedade humana universal, livre do sistema de produção de mercadorias, em que a massa dos bens serão realizados por autômatos e os seres humanos serão finalmente livres. Só que o visionarismo da Krisis naufraga perante a insondável interrogação do que será a passagem para esse futuro radioso. Não será pela luta de classes, assegura, porque esta “está no fim”. “As disputas entre capitalistas e proletários são internas ao campo do trabalho”, e o que é preciso é uma “união contra o trabalho”. Questionado pela assistência, Trenkle defendeu que as vias de saída para a crise terão que ser encontradas “fora da política”, através de um “movimento social emancipatório” cujos contornos não se podem prever, até porque a agonia do capitalismo conduz à “autodestruição das massas”.
Pretendendo introduzir uma “renovação da crítica social radical”, o grupo Krisis testemunha, ao que me parece, o paroxismo da confusão nos setores marginalizados das sociedades imperialistas. De qualquer modo, um texto de leitura muito estimulante.
Notas:
[1] Monthly Review, n° 8/53, Janeiro 2002. 122 West 27th St.., New York, NY 10001. mrmag@monthlyreview.org