Por Editorial da Revista Crise e Crítica
A revista Crisis and Critique se dedica, desde 2014, à reformulação da teoria marxista, servindo de plataforma para investigações engajadas com a tarefa de repensar a política emancipatória desde suas bases filosóficas. Em 2017, a revista lançou o primeiro número de sua edição latino-americana, batizada de Crise e Crítica, a cargo do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia e dedicado aos 100 anos da Revolução Russa. O segundo número da revista Crise e Crítica, que ora apresentamos, é dedicado à questão “O populismo é um problema?”
“No dia 3 de outubro, no Rio de Janeiro, era meio milhão de miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos, espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados pelo abandono homens boçais, maus e vingativos, que desceram os morros embalados pela cantiga da demagogia berrada de janelas e automóveis, para votar na única esperança que lhes restava: naquele que se proclamava pai dos pobres, o messias charlatão.” Foi desta maneira que a revista Anhembi descreveu a ampla vitória eleitoral de Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de 1950 (FGV, Verbete Populismo).
Em geral associado aos governos autoritários e/ou personificado em lideranças carismáticas que utilizam estratégias de propaganda para conquistar o “povo”, definição esta eivada de elementos ideológicos, na busca pelo poder e de sua constante manutenção, a elaboração conceitual sobre populismo na gramática acadêmica também não se afasta da polêmica, uma vez que, como afirmou Laclau: “o impasse que a teoria política experimenta em relação ao populismo está longe de ser acidental, pois tem suas raízes fincadas na limitação dos instrumentos ontológicos atualmente disponíveis para análise política” .
Neste sentido, o populismo reaparece no centro da agenda política do século XXI, como um fenômeno social controverso e permeado por ambiguidades que se manifestam em diferentes estilos e contextos socioculturais ao redor do globo. Entre diversas características, o culto a uma personalidade política carismática ou mesmo de um partido ou movimento social aglutinador de massa tem no populismo sua marca mais acentuada. Para alguns, como o filósofo francês Pierre Rosanvallon, o populismo é visto como uma ameaça pervasiva aos ideais e procedimentos da democracia representativa, para outros entusiastas, o populismo pode ser o reforço necessário a constituição de uma democracia efetivamente comandada pelo povo.
Para estes defensores, a contribuição mais importante vem da teoria crítica marxista por meio do incontornável esforço do filósofo argentino Ernesto Laclau, que, em colaboração com a filósofa belga Chantal Mouffe, sistematizou de forma mais consistente a categoria de populismo a partir de uma análise gramsciana aplicada aos populismos de esquerda das últimas décadas na américa latina. Nessa perspectiva, o populismo não é entendido como uma anomalia ou uma exceção da história, trata-se, antes de tudo, de uma lógica política do povo que conjuga em seu núcleo mais tradicional uma ideia de política de massa, soberania popular, homogeneidade e uma forte vínculo coletivo de solidariedade que se opõe em princípio a dinâmica institucional, constitucional ou mesmo elitista da democracia liberal em favor de uma democracia mais direta e radical.
Recentemente, diferentes teóricos vêm tentando estabelecer no campo acadêmico uma genealogia deste disputado conceito desde suas manifestações históricas no populismo russo (narodnichestvo), no poujadismo na França, bem como de sua influência mais atual nos governos da América Latina (Perón e Kirchner na Argentina, Fujimori no Peru, Chávez na Venezuela, Evo Morales com seu etno-populismo na Bolívia, Correa no Equador, Lula no Brasil, entre outros) nos partidos de extrema-direita da Europa (Brexit e Farage na Inglaterra, Frente nacional e a família Le Pen na França, Movimento 5 estrelas na Itália, a FPO na Austria, Viktor Orbán na Hungria) e também nas campanhas eleitorais dos Estados Unidos (Donald Trump pelo partido republicano e Bernie Sanders pelos Democratas ou Jeremy Corbyn pelo Labour Party britânico).
Todos estes indícios mostram que este fenômeno tem ressurgido com características novas e que podem se acentuar daqui em diante. Uma de suas principais causas seria a crise econômica do capitalismo neoliberal de 2007-2008, que propalou a emergência de um novo tempo pós-político em que a democracia representativa se viu colocada em xeque por diversos movimentos sociais populistas contra o establishment, seja na forma de uma democracia radical dos 99% do povo, no campo da esquerda, ou mesmo por via de manifestações neo-fascistas, xenofóbicas, antissemitas e autoritárias no espectro político da direita ou da alt-right.
Esse deslocamento pode ser explicado, nos termos do filósofo italiano Paolo Gerbaudo, como um distanciamento das políticas de centro, sejam de esquerda ou direita, visto que a esfera pública se viu diante de uma “explosão populista”, nos anunciando uma nova era que tem chegado a seu limite, a saber a era do neoliberalismo, e dando abertura a era de um populismo, o chamado populismo 2.0, isto é, o surgimento de um cidadanismo, políticas de cidadãos, não por via de um líder personalista, mas sim a partir das ágoras e praças (virtuais por redes de colação na internet), de forças autônomas sejam por via de occupy ou mesmo institucionalmente por via de coalizões populistas na Grécia, como a Syriza, e na Espanha, como o Podemos, que combateram as políticas de austeridade impostas pela Troika (Banco central europeu e o Fundo monetário internacional).
As contribuições do presente número procuram abordar o problema do populismo a partir de diversas perspectivas teóricas (e práticas), fazendo eco à complexidade do próprio fenômeno – ao mesmo tempo em que debatem com as principais referências da área, tais como as citadas acima.
No artigo de abertura dessa edição, Populismo, política e psicanálise: considerações ontológicas, Daniel Alves Teixeira revisita a relação entre a psicanálise e política a partir da relação entre o populismo e as formas políticas institucionalizadas. O seu principal objetivo é demonstrar que a relação entre a psicanálise e política, pensada através da questão ontológica tal como abordada por filósofos como Slavoj Žižek, Alenka Zupančič e Alain Badiou, permite um passo atrás nas especulações que normalmente se fazem sobre as relações entre os campos, tentando delinear não só pontos de intersecção mas também suas respectivas autonomias.
Em Massa, Ódio e Resto: populismo como não populismo, Lucas Bertolucci Barbosa de Lima aborda o problema do populismo a partir dos conceitos de massa, ódio e resto de Peter Sloterdijk, Jacques Rancière e Giorgio Agamben, respectivamente. O artigo começa com uma análise dos conceitos de massa, diferença horizontal e diferença vertical. Em seguida, o autor relaciona o conceito de populismo ao conceito de desprezo, fazendo uma breve reflexão sobre as causas do populismo. Em seguida, o texto aborda o conceito de democracia, relacionando o conceito de ódio a uma forma específica de desprezo da massa. Na última parte, são trabalhados são os conceitos de povo e de resto, bem como a relação deste último com alguns outros conceitos de Paulo de Tarso.
No artigo Entre el comunismo hermenéutico y el populismo latinoamericano: lectura de G. Vattimo con E. Laclau, Maria José Rossi analisa a virada teórica do filósofo Gianni Vattimo do pós-modernismo para o comunismo hermenêutico, cuja realização se situa na América Latina, em particular, nos processos políticos vivenciados no início deste século pela Venezuela (Chávez), Cuba (Castro), Bolívia (Morales), Argentina (Kirchner) e Equador (Correa), indicando que o filósofo reluta em usar o termo “populismo” para caracterizar esses processos. Assim, após uma breve reconstrução da história deste termo, o artigo se concentra no modo como foi conceituado pelo filósofo argentino E. Laclau. O objetivo do artigo é mostrar que entre as posições do ‘populista’ Laclau e do ‘comunista hermenêutico’ Vattimo existem vários pontos de contato e também algumas divergências que são de interesse identificar para refletir sobre o atual cenário latino-americano marcado pelo avanço neoliberal.
Em Do Populismo Reacionário ao Exterminismo: yuppies, neggers e trolls, Moysés Pinto Neto examina as formações discursivas e modos de subjetivação que operam como máquinas de guerra na produção do exterminismo enquanto alternativa de futuro. Para tanto, apresenta a forma discursiva do cinismo tal como desenvolvida por Vladimir Safatle e o caso do negger, citado por Benjamin Noys, para pensar uma subjetivação que valida sua atitude contra o próprio eixo normativo que reconhece como legítimo. Em seguida, a partir dos ensaios de Angela Nagle e Dale Beran, utiliza o exemplo dos “nerds do 4Chan” para pensar o avanço do exterminismo a partir de um discurso cínico que, mediante um humor brutal e mencionando referências contraculturais, torce as relações entre constativo e performativo e reabre brechas para a violência permear a esfera pública.
No artigo Esgotamento do Projeto Iluminista e Des-recalcamento da Fé — uma proposta interpretativa das bases do populismo atual, Philippe Campos procura apresentar uma breve análise de dois motores no cenário político atual, quais sejam, fé e iluminismo, tais como compreendidos por Hegel. Intenta-se colocar esses operadores na teoria sobre o populismo de Laclau, no desenvolvimento do trabalho analisou-se como o campo deixou de ser hegemonizado por forças provenientes da razão e do Estado e passou à fé e o mundo ético. Contudo, o artigo ainda procura manter uma baliza pouco acomodada à teoria da hegemonia laclauliana, na medida em que o autor argentino forneceria as bases teóricas sobre a estrutura de alternância de poder — todavia, ele o faz deixando de lado a leitura sobre o ciclismo do Capital não se tratar de um movimento monótono, mas exibir um desenvolvimento no tempo cujas tendências são de concentração de renda e exclusão ou marginalização social.
Em Individualização e Populismo em Tempos de Insegurança Estrutural, Thiago Marques Leão procura discutir a relação entre o processo de individualização dos riscos socialmente produzidos e a ascensão global de governos populistas de extrema-direita na sociedade contemporânea, ou Modernidade Reflexiva. De acordo com o autor, a individualização das condições objetivas de vida e a dissolução das formas sociais moderno-industriais produzem uma individualização também subjetiva, que repercute sobre as estruturas social e política. Veríamos, assim, uma individualização da rede de referências sociossimbólicas e uma transformação profunda na forma como indivíduos relacionam-se consigo mesmos, com outros indivíduos e com a sociedade, nas esferas pública e privada. Nesse sentido, à medida que os espaços tradicionais de coletivização de riscos mostram-se crescentemente incapazes de lidar com os riscos que produzem reflexivamente, a ação política individual também seria crescentemente orientada por uma espécie de economia política da insegurança, cujo capital político é disputado entre os atores tradicionais da política nacional e atores não-territorializados da economia mundial. Na ausência de projetos societais da esquerda e com a inépcia dos governos nacionais para organizar a sociedade, a rejeição aos grandes partidos e a ceticismo quanto à capacidade do sistema político-institucional em dar respostas aos problemas reais dos indivíduos contribuiriam para a emergência de outsiders ou políticos marginalizados com discursos violentos e populistas.
Em Patologias políticas do neoliberalismo: o caso do populismo, Thor Veras procura apresentar três diagnósticos recentes no campo da Teoria Crítica da sociedade acerca do fenômeno do populismo nas democracias ocidentais do século XXI, a saber: os modelos críticos da teoria do reconhecimento e cooperação social de Axel Honneth; da contestação e julgamento político de Albena Azmanova e da crítica da participação e redistribuição de Nancy Fraser. Em comum, esses três modelos teriam a compreensão do populismo como manifestação de patologias políticas decorrentes das mudanças estruturais do neoliberalismo ocorridas na esfera pública e na cultura política na última década.
Por fim, mas não menos importante, apresentamos uma entrevista com o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle realizada por nós em maio de 2018, na cidade de Paris. Nela, o filósofo aborda o tema do populismo sob os mais diversos ângulos. A entrevista se inicia com uma confrontação com Laclau e as possibilidades do uso da psicanálise lacaniana para entender esse fenômeno populista. Sob a perspectiva brasileira, Safatle faz uma leitura do lulismo como encarnação privilegiada do populismo de esquerda. Além dessa discussão, temos ainda uma confrontação com Badiou e outros atores sobre o conceito de proletariado, uma discussão em torno da forma partido e dos afetos em política. A entrevista termina com uma longa discussão a respeito da relevância da crítica cultural e da crítica musical para a possibilidade de abertura de um horizonte político outro que não os que estão dados. Nesta discussão, menos comum do que deveria quando se fala do fenômeno populista, Safatle aponta sobretudo para os usos ideológicos da arte sonora que no Brasil são especialmente fortes e que por isso são um problema fundamental para o pensamento das diferentes esquerdas e das suas relações com o povo e a história do Brasil. Se, por um lado, alguns dos atores abordados, como o ex-presidente Michel Temer, já não estão mais presentes, por outro lado, a atualidade da entrevista não parece deixar dúvidas devido à essa multiplicidade de perspectivas.
Convidamos todos à leitura! O segundo número da revista Crise e Crítica está disponível, na íntegra, no site http://criseecritica.org/.
* Créditos da imagem: “Gigantes pela própria natureza”, Macela Cantuária