Por Asa Cusack, via Al Jazeera, traduzido por Maria Lua
Apesar do “socialismo do século XXI” estar relacionado com o colapso da Venezuela, também estão as características do contexto do país, do capitalismo e da cultura, escreve Asa Cusack (LSE Centro Latino Americano e Caribenho).
A recente eleição presidencial da Venezuela fez nada para acabar com a profunda crise política, econômica e social do país.
A inflação está atingindo proporções incontroláveis, a produção de petróleo está despencando, ativos estrangeiros vêm sendo confiscados, existe uma séria escassez de alimentos e remédios, dezenas de milhares de pessoas estão deixando o país e o atual governo de Nicolas Maduro enfraqueceu ainda mais os instrumentos democráticos do país para agarrar-se ao poder.
A pergunta que surge de forma natural num país que se gaba por ser, comprovadamente, a maior reserva de petróleo no mundo é: como se chegou a esse ponto? Muitos têm se agarrado a uma resposta simples: socialismo. Mas é realmente tão simples assim?
Cidadãos comuns encontram-se presos a uma crise na qual eles têm pouquíssimo controle (detalhe de Alex Lanz)
Políticas e preços do petróleo.
As causas estruturais da crise de sete cabeças da Venezuela são econômicas; relacionadas especialmente ao petróleo e à moeda estrangeira que ele traz para o país.
A causa imediata dessa recente instabilidade é, sem dúvida, a queda de 70% nos preços do petróleo em 2014; mas esses problemas que vieram à tona em 2014 já haviam dado indícios cinco anos antes. Naquela altura, assim como agora, eles foram cultivados por más escolhas políticas.
Graves escassezes são em grande parte devidas à fraca produção local combinada com a falta de moeda estrangeira para importações, ambas que se relacionam com o mau gerenciamento da moeda local – o bolívar.
Basicamente, numa tentativa de prevenir a fuga de capital e o colapso da moeda, protegendo também produtores locais e reforçando direitos trabalhistas, Hugo Chávez – precedente de Maduro – introduziu controles no acesso à moeda estrangeira. Subsídios e controle de preços foram implementados para muitos produtos alimentares a fim de mantê-los acessíveis para os pobres e um subsídio extremamente generoso sobre a gasolina foi mantido.
Mas como o bolívar estava supervalorizado, produtos locais se tornaram menos competitivos no exterior, enquanto produtos estrangeiros se tornaram mais baratos no mercado nacional; causando, assim, uma redução na demanda para produtos nacionais. Esse subsídio eficaz na compra de dólares já impulsionou uma forte demanda daqueles interessados em evitar inflação ou desvalorização da moeda local.
Muitas empresas e indivíduos também estavam dispostos a pagar uma bonificação para driblar controles a fim de evitar barreiras comerciais burocráticas ou para preservar o valor do capital deles. Com isso, um mercado clandestino de moeda surgiu para suprir essa demanda. Numa situação onde os dólares provenientes do mercado clandestino se tornaram parte da estrutura de custos de bens básicos e o lucro marginal entre o custo de produção e os preços controlados pelo Estado foram limitados ou desaparecidos por completo, certamente a produção local sofreria danos no futuro.
Além de gerar enfraquecimento de negócios locais, essas medidas também criaram oportunidades e incentivos para corrupção, coisa que foi se tornando mais atraente ao lado das distorções econômicas, o que acabou por se tornar um ciclo-vicioso.
Quanto maior a diferença entre as taxas de câmbio do mercado legal e do mercado ilegal, maior o incentivo à compra de taxas oficiais – em dólar – que fossem baratas e a revenda delas no mercado clandestino (“arbitragem de divisas”). Quanto maior a diferença entre os preços de petróleo ou de alimentos da Venezuela em comparação com os de países vizinhos, maior o incentivo ao contrabando desses produtos feito entre fronteiras para revenda.
Diferenças de preços são capturadas de maneira privada à custa do Estado enquanto este produz nada, o que, por sua vez, deixa menos recursos disponíveis para a manutenção básica do país.
Quando o anterior ministro da fazenda, Jorge Giordani, renunciou em protesto à má administração da economia por Maduro, ele estimou que entre 2003 e 2012 cerca de 300 bilhões de dólares seriam perdidos devido à arbitragem da moeda única.
Em curto prazo, Chávez – diferentemente de Maduro – preveniu esse problema de fugir de seu controle desvalorizando a moeda local quando as taxas do mercado oficial e do mercado clandestino começavam a divergir consideravelmente.
Mas em longo prazo, ele colocou sua fé numa reviravolta socioeconômica. Essa transformação se pressupôs no poder de uma economia social que usaria formas alternativas de organização, como cooperativas e fábricas “auto-geridas”, a fim de reanimar a produção local e provocar uma orientação de empoderamento cultural em direção ao engajamento social ativo e à solidariedade.
Mas o investimento massivo do Estado em indústrias nacionalizadas e auto ou co-geridas deu pouco resultado. E mesmo que o número de cooperativas tenha crescido exponencialmente, na prática, elas eram tão ineficientes, corruptas, neopotistas e exploradoras quanto as do setor privado às quais elas supostamente deveriam substituir.
Como essas eram políticas estatais do socialismo do século 21, de fato, podemos afirmar que devemos culpar o socialismo. Mas tem mais coisa nessa história.
O capitalismo, a cultura e o contexto
Primeiramente é importante notar que Chávez escolheu chamar seu projeto transformativo de “Socialismo do século 21”, mas a economia venezuelana permaneceu dominada pelo mercado e pelo setor privado ao longo de seu mandato.
Foi intensamente promovido através da economia social e do setor público – também através da nacionalização – que o setor privado permaneceria o dominante e foi isso que aconteceu. Uma economia socialista planificada como a de Cuba não era nem o objetivo nem a realidade.
Segundo, parte do problema era sempre que a “grande consumista e rica em petróleo” Venezuela seria o último lugar que você esperaria o socialismo de florescer – e essas características causaram problemas sérios ao governo.
O papel crucial do petróleo no sistema capitalista internacional faz a volatilidade do preço do óleo ser um participante central no desenvolvimento venezuelano, como Maduro descobriu a custo próprio.
Mas acima de tudo, o valor absoluto do petróleo provoca a “maldição dos recursos” em economias não diversificadas como a da Venezuela. Com a explosão de lucros inesperados favorecendo deslocamentos na taxa de câmbio que fazem outras exportadoras não serem competitivas, a “petromania¹” leva ao esbanjamento dos gastos públicos, enquanto incentivos distorcidos minam a ética, o empreendedorismo e eficiência do Estado e, de forma ampliada, da sociedade.
Assim como o perspicaz documentário do Al Jazeera A batalha pela Venezuela explica: não há nada de novo nisso. Pelo contrário, a formação da Venezuela enquanto Estado e enquanto sociedade foi intimamente ligada à indústria petroleira e isso é refletido em sua política.
Clique aqui e veja o documentário
O petróleo, a oposição, e os obstáculos para o desenvolvimento
Muito antes de Chávez tomar posse em 1999, existiam duas Venezuelas: “A Venezuela que se beneficia do petróleo e a Venezuela que permanece nas sombras da indústria do petróleo” como um analista veterano da Venezuela Miguel Tinker Salas comentou.
A elite beneficiada, da qual a principal oposição da Venezuela surgiu, de forma correta, reconheceu que a promessa de Chávez de redistribuir a riqueza do petróleo para a maioria marginalizada foi sincera. Mas eles também instintivamente entenderam que Chávez queria reescrever a narrativa nacional sem essa elite ocidentalizada, rica, branca e educada como os heróis venezuelanos, desse modo, também tirando deles o status social que reproduziu e autonomizou suas riquezas materiais.
É essa ameaça cultural que explica a ferocidade e durabilidade da raiva elitista e do obstrucionismo: a encenação do golpe de 2002 apesar de haver incontestavelmente uma democracia legítima de Chávez para daí então organizar uma greve de petróleo destruidora e liderada por gestores em um tempo que a política econômica dele permaneceu mais reformista que radical.
Por conta própria, foi a intolerância e intransigência dessa elite, legada a ele pela história capitalista da Venezuela, que conduziu Chávez em direção à ideia de um socialismo do século 21 mais radical em 2005.
Como o Bolívar, a reivindicação de uma “Guerra econômica” é uma moeda ridiculamente desvalorizada sob o governo de Maduro. Porém, nada sugere que a provocação de problemas políticos através de entesouramento, produção de cortes, ou manipulação da taxa de câmbio do mercado clandestino fosse algo inesperado para atores privados que têm o poder de fazer isso.
Empresas e indivíduos ricos sempre tiveram os meios mais claros e sempre tiveram a maior quantidade de capital pra investir na arbitragem de uma moeda de larga escala que tem feito a Venezuela seca sangrar por mais de uma década.
Mas os efeitos da dependência do petróleo não se limitam a um particular grupo ou classe. Como um dos arquitetos da econômica social venezuelana menciona, a cultura universal sempre favoreceu “viver de transferências governamentais do aluguel do petróleo em vez de merecidamente aproveitar os frutos de um trabalho produtivo.”
Na Venezuela, divisões sociais são tão profundas e a confiança social é tão fraca que a ideia de um contrato social, um agrupamento nacional, ou até mesmo uma aceitação básica das regras do jogo é um sonho distante. Como diz o ditado local: “para os meus amigos, nada; para meus inimigos, a lei”.
A política deve atuar contra um pano de fundo cultural que implicitamente compreende que você deveria usar qualquer meio necessário para desviar o máximo de riqueza (advinda do petróleo) possível para você e os seus.
A trindade da fé deslocada
Chávez respondeu a essas circunstâncias difíceis colocando sua fé em três coisas: ele mesmo, as forças armadas militares e o socialismo.
Fé nele mesmo significava improvisar novas instituições e fontes de financiamento ligadas à presidência para assim ele poder implementar suas ideias de forma imediata e sem oposição interna. Fé nas forças armadas militares significava colocar seus “braços direitos”, especialmente aqueles envolvidos na sua tentativa de golpe em 1992, em posições de poder institucional e financeiro, assim como também lhes atribuir funções econômicas importantes.
E fé no socialismo significava a crença no poder transformativo da democracia participativa e na substituição de uma econômica social em vez da mentalidade “pegue o que puder” típica de Estado petroleiro. A substituição com uma mentalidade com uma ética mais social e mais baseada na solidariedade.
Infelizmente, cada salto de fé teve sérias consequências não intencionais.
Tirar o poder do Estado tradicional removeu até o monitoramento e prestação de contas deficientes que eles ofereciam que dificultavam o controle e possibilitavam corrupção.
As convicções ideológicas de tenentes de confiança do golpe de 1992 acabaram por ser muito mais fracas que os grandes incentivos para roubar recursos estatais, e nem mesmo medo de colocar seus subordinados para trabalhar em redes de contrabando eles tinham.
De forma mais ampliada, apesar de muitos cidadãos marginalizados serem absolutamente empoderados e esclarecidos pela experiência deles da Revolução Bolivariana Chavista, muitos outros relaxaram diante de uma troca clientelista de benefícios estatais por apoio político.
Chavez também começou a abusar das ferramentas da sua transformação socialista – particularmente nacionalização e acesso à moeda estrangeira – mais como um meio de disciplinar o setor privado do que pra remodular a economia
Com a morte de Chavez em 2013, esse sistema disfuncional e fortemente centralizado passou pelas mãos de Maduro, um líder com muito menos capacidade de controlar as forças poderosas que destroem o país.
Mas em vez de permitir que a política democrática seguisse seu curso, as limitações de sua administração foram expostas pela queda dos preços do petróleo, Maduro atravessou o Rubicon² anti-democrático no qual Chávez tinha apenas mergulhado os dedos dos pés.
Cancelando a revogação do referendum, prendendo oponentes políticos, invocando uma assembleia constituinte para usurpar o parlamento eleito democraticamente e criando uma ligação entre apoio político e acesso a bens essenciais, Maduro bloqueou qualquer saída para a crise da Venezuela.
O jogo da culpa
Então, devemos culpar o socialismo pelas desgraças da Venezuela?
Algumas políticas econômicas estatais associadas a um projeto chamado socialismo do século 21 estão, de fato, envolvidas em muitas das distorções econômicas e em incentivos prejudiciais que assolam a economia venezuelana.
Mas elas foram também implementadas em uma sociedade extremamente dividida, desconfiada e conflituosa na qual o estado-rico-em-petróleo é visto como um meio de assegurar a riqueza pessoal.
A resposta de Chávez para a oposição implacável e para a corrupção difusa foi se virar para aqueles que ele confiou nas forças armadas e para a promessa de transformação social através da socialização da economia. Mas sua fé em nenhum dos dois foi recompensada.
Mas assim como não devemos culpar o capitalismo por si só pela corrupção pactuada e pela repressão assassina de governos anteriores que criaram o descontentamento popular e movimentação pessoal que trouxeram Chávez ao poder, não devemos culpar o socialismo por si só pelo autoritarismo rastejante do regime de Maduro que está agora prevenindo a substituição de um governo e modelo fracassados.
De muitas formas, o jogo da culpa é um obstáculo, um exercício de escolha seletiva para promover uma maior intervenção estatal ou o “livre” mercado, em vez de ser qualquer modelo propriamente identificável. O estadista pode citar a feliz Noruega antes do Gulag, enquanto o liberal certamente preferirá a neoliberalização pacífica da Nova Zelândia durante os anos 1980 ao assassinato e tortura do Chile sob Pinochet.
A lição é que talvez não existam modelos puros de livros didáticos. A questão verdadeira é se determinada economia política está produzindo resultados desejáveis pelos seus cidadãos. O que uma vez foi o caso na Venezuela, mas que claramente não é mais assim.
NOTAS
¹faz referência ao livro “Petromania” que foi publicado em 2014 de autoria de Daniel O’Sullivan. No livro há a tentativa de se explicar o boom no preço do petróleo em 2008 e a principal argumentaçã do autor está relacionada com os novos modos de especulação financeira.
²nome do rio que Júlio César atravessou em 49 a.C.
* As visões expressas aqui são os dos autores e não refletem a posição do Centro ou do Instituto de Estudos Latino Americanos.
** Originalmente publicado por Al Jazeera e republicado com a permissão da tal.
1 comentário em “Devemos culpar o socialismo pela interminável crise da Venezuela?”
Tudo muito bom, se não fosse as constantes manobras que tem de ser feitas pelos governos venezuelanos contra o imperialismo norte-americano para assegurar uma autonomia do povo venezuelano.
O texto desconsidera totalmente o período histórico em que vive a Venezuela. Desconsidera a extrema campanha internacional, os boicotes e a guerra econômica que se faz ao país desde o início dos governos bolivarianos.