Por Leonardo Godoy Drigo
O Brasil atravessa, hoje, período político controverso, cujos reflexos atingem em cheio os âmbitos social, econômico, cultural e, não por último, jurídico. A par da relação íntima e indissociável entre forma política estatal e forma jurídica que grassa no Ocidente desde as Revoluções burguesas do século XVIII, como estrutura típica do desenvolvimento da sociabilidade capitalista, tem-se que o discurso sobre o direito também experimenta momento de avivada controvérsia no seio mesmo dos debates entre especialistas da área jurídica e na mensagem que chega desde estes grupos até a sociedade em geral.
Tal controvérsia é bastante sensível no campo do direito constitucional, pelo próprio objeto de estudo precípuo a que se dedica: a fundação de nova organização jurídica da sociedade. Com efeito, a Constituição ganhou relevo no discurso jurídico desde fins do século XIX, como instrumento de organização formal do Estado e positivação das liberdades contra o Estado, mas principalmente depois da II Guerra Mundial, quando então surgem entendimentos, que se desenvolvem até hoje, quanto à força normativa da Constituição, sua função dirigente quanto aos rumos almejados para dada sociedade, sua efetividade garantista dos direitos fundamentais da pessoa humana, dentre outros. Em suma, tem-se que a Constituição, como se entende hoje, “não é um significante primeiro, mas deve ser considerada como tal na medida em que instaura um campo de ações linguísticas possíveis (…) como abertura de mundos possíveis.”[1]
Assim, nos debates que envolvem direito constitucional formulam-se discursos representativos de interpretações sobre questões primordiais da sociabilidade humana, cobertas por uma abrangência temática que vai desde (a) o papel do Estado, suas funções e órgãos (Deve o Estado desenvolver atividade econômica ou ser mínimo? O Poder Legislativo precisa de tantos suplentes e assessores? Os Ministros do STF devem ter mandatos vitalícios?), (b) os direitos mais comezinhos da pessoa humana (Tenho o direito de andar armado? Homofobia é crime? Deve o réu cumprir pena antes de sentença criminal transitada em julgado?), (c) política internacional (O Mercosul deve ser mantido? Devemos intervir em países vizinhos para garantir a democracia?), (d) garantias sociais de seguridade (Os serviços de saúde devem ser privativos de brasileiros ou permitimos estrangeiros? A previdência social deve ser enrijecida para fins de saneamento fiscal? Direitos sociais são gasto ou investimento?), dentre tantos outros heterogêneos tópicos.
O que pretendo ressaltar nesta breve análise é um dos fatores que leva à agudização das controvérsias sobre o mesmo objeto de estudos na fração social dos especialistas em direito e à decorrente pulverização das mensagens sobre o direito constitucional à sociedade brasileira em questões tão importantes.
O fator que ressalto é justamente a pretensa formação de uma elite intelectual de especialistas sobre direito que, de alguma forma, deveria ser a portadora de um saber (verdadeiro) construído de forma sistêmica e coesa sobre os mesmos objetos científicos de análise. Essa formação dos especialistas (como agora denomino os juristas, em sentido lato) é pressuposto geral da própria formação do Estado nacional, capitalista, nos moldes em que surge no século XVIII, após as Revoluções de independência das colônias inglesas da América do Norte e Francesa.
Ora, a separação entre saber e fazer, entre trabalho intelectual e trabalho manual é um pressuposto do advento e da formação dos Estados burgueses. Isso porque a hegemonia burguesa forjou-se por meio de um aparato intelectual prévio (que se lhe preparou desde o advento da filosofia política Iluminista), buscando fundamentar a legitimação do poder por meio da racionalidade que lhe seria intrínseca, rechaçando o modelo dos privilégios de nascimento e estamento pertinentes ao absolutismo monárquico derrotado. Como ressaltou Poulantzas, por exemplo, “a burguesia é a primeira classe da história que tem necessidade, para se firmar como classe dominante, de um corpo de intelectuais orgânicos. Estes, formalmente distintos dela embora arregimentados pelo Estado, não têm um papel simplesmente instrumental (como foi o caso dos padres para a feudalidade) mas um papel de organização de sua hegemonia”[2].
Logo, o grupo de especialistas do direito, em particular, formou-se para legitimar e produzir o instrumental jurídico necessário à hegemonia nascente da classe burguesa, que dava início a novas formas sociais, econômicas, ideológicas, enfim, relacionais, de sociabilidade. A lógica que permeava esse grupo era a de domínio sobre uma ciência (já conceito mistificado e atrelado a um valor inconteste de verdade) que decorria diretamente da Razão como motor do progresso e que, dessa forma, construíra um sistema jurídico fechado, coeso, heteromórfico ao Estado que pretendia regular, neutro em relação aos conflitos sociais e aos interesses dos próprios especialistas. Não foi por acaso, pois, que a burguesia, até então escorada em sistema jurídico de direitos naturais, valeu-se de nova postura jusfilosófica que levou ao extremo a formalização e abstrativização da ciência jurídica, no denominado positivismo normativista.
O Estado neutro, separado da sociedade civil e responsável pela coesão de seres individuais e individualistas em um conceito binário de povo-nação, tinha como lastro jurídico um conhecimento oriundo de um exercício puro de razão cientificista, pretensamente diverso da política e das demais relações sociais e a elas impermeável, que fornecia respostas neutras para os conflitos surgidos, cujas razões originárias eram absolutamente irrelevantes em sua aplicação.
Os especialistas, assim, não apenas preenchiam organicamente postos da burocracia estatal, difundindo, ali também, a prática do dito direito neutro e coeso, como também exerciam suas funções precípuas de cimento social dessa ideologia dominante da burguesia em diversos aparelhos ideológicos, tais como universidades, manifestações de autoridade em mídia de massa, nas famílias, na polícia e no exército, enfim, em toda a malha de relações sociais em que podiam se fazer presentes.
Essa concepção sobre o direito e sobre o próprio papel dos seus especialistas, ainda que parcialmente alterada em compreensões jusfilosóficas diversas e de “roupagem nova” ao longo do devir histórico, permanece mais ou menos sedimentada tanto no ideário social sobre o direito e os juristas quanto nos próprios especialistas (na representação que mantém sobre si e seu papel social). A ideia de que o direito é imune, em certa medida, aos influxos das demais relações sociais e que os juristas formam um corpo apto à manifestação neutra do saber sobre esse direito são aspectos que, em grande medida, ainda se observam de maneira geral pela forma em que se tratam entre si os juristas e pela qual são tratados pelos mesmos meios sociais de difusão ideológica já citados (universidades, escolas, famílias, aparelhos repressivos etc.).
Pois bem. A própria observação concreta de que há, hoje, tantas manifestações divergentes sobre os mesmos temas, principalmente de direito constitucional, no Brasil, já demonstra que o entendimento geral avençado acima não corresponde à realidade social nem do direito nem dos especialistas. E, desde logo, a causa de tais controvérsias não reside na mera questão de uma alta complexidade dos temas que envolvem o direito constitucional contemporâneo, já que, primeiro, não se pode inocentemente considerar que as questões de direito que envolveram o Estado e a Constituição eram simplesmente mais fáceis e incontroversas desde o século XIX até agora e, segundo, porque os juristas contemporâneos formaram-se já sob as questões contemporâneas, ou seja, imersos nas questões jurídicas complexas que sempre os desafiaram a respostas especializadas. Como decorrência, então, onde está o descompasso no Brasil, hoje, no que tange ao fator aqui abordado?
Dois são os elementos pertinentes à resposta que pretendo abordar: um relativo ao próprio direito e sua natureza específica e outro relativo aos juristas, enquanto fração de classe social também específica.
No tocante ao direito, sabe-se desde as primeiras décadas do séc. XX, a partir da análise de Pachukanis[3], que se trata de uma das formas sociais, ou seja, “modos relacionais constituintes das interações sociais, objetificando-as. Trata-se de um processo de mútua imbricação: as formas sociais advêm das relações sociais, mas acabam por ser suas balizas necessárias”[4]. A forma jurídica da sociabilidade capitalista, pois, segundo Pachukanis , conforma a troca de mercadorias e a exploração burguesa do trabalho por meio de categorias centrais como a de sujeito de direito (que permite que cada indivíduo, considerado livre, possa vender sua força de trabalho) e dos contratos (garantindo a segurança das relações de troca mercantil, bem como a possibilidade de obrigação estatal de seu cumprimento).
A forma jurídica, de todo modo, encontra-se estruturalmente atrelada à forma política estatal, principalmente porque o padrão de sociabilidade pautado pela troca mercantil e produção do valor pressupõe a garantia da paz e da regulação que lhe são inerentes. Ocorre que, diante da necessidade de tal garantia de paz e do cumprimento dos contratos, o Estado surge com e pelo direito, como aparato mediato de dominação da classe burguesa sobre as demais, na posição de terceiro quanto à sociedade e às relações de produção. Logo, no que tange à presente análise, as crises econômicas, as crises políticas, as crises de Estado e as crises ideológicas que advém durante o curso histórico da sociabilidade capitalista também produzem reflexos mais ou menos profundos sobre a forma jurídica dessa mesma sociabilidade.
Logo, o direito, longe de ser um conjunto de normas advindo do exercício puro da razão ou mesmo um ramo autônomo do saber científico, neutro, coeso, sistêmico, separado das demais relações sociais e heterotópico ao Estado é, na verdade, jungido estruturalmente tanto às relações da forma política estatal quanto da forma econômica da sociabilidade contemporânea, acompanhando a sorte dos períodos de crise dos mais variados matizes que tais formas sociais comportam. O discurso sobre o direito, pois, irá refletir também tais crises em graus diversos, conforme o conheçam e o sintam os juristas em âmbito ideológico.
No tocante, então, aos especialistas propriamente ditos, não se trata de casta apartada, “à frente e acima da manada”, como pretensamente se fazia crer desde os inícios da sociabilidade burguesa-capitalista. Fazem, isso sim, parte de uma fração de classe, mais especialmente de fração da classe pequeno-burguesa dita “nova”[5] e que, bem por isso, compartilha um complexo de ideologias e interesses com ou contra as demais classes e atores sociais. Essa conjuntura se explica da seguinte maneira:
Não obstante pode falar-se com todo o rigor de um efectivo subconjunto ideológico ‘pequeno-burguês’. Este subconjunto é constituído pela influência da ideologia burguesa (dominante) sobre as aspirações próprias da pequena burguesia, relativamente à sua situação específica de classe. Nesta torção-adaptação da ideologia burguesa às aspirações da pequena burguesia, esta introduz-lhe, aliás, ‘elementos’ ideológicos específicos que relevam da sua própria situação de classe. Mas há mais: numa formação capitalista, existe ao mesmo tempo uma ideologia legada à classe operária. (…) Devido à situação ambígua de classe da pequena burguesia, o subconjunto ideológico pequeno-burguês comporta igualmente, mais ainda do que a ideologia dominante, ‘importações’ da ideologia da classe operária, desviadas e adaptadas às aspirações próprias da pequena burguesia.[6]
O que se observa, então, é que os especialistas do direito formam uma fração de classe cujo subconjunto ideológico é permeado tanto por formatação vinda das classes dominantes quanto de reclamos vindos das classes mais dominadas, de ricos, por um lado, e dos mais pobres, pelo outro. Não há coesão ideológica nesse bloco e tampouco se pode identificar qualquer possível neutralidade científica nas análises que empreendem através de sua lugar de fala de especialistas sobre seu objeto de estudo, mesmo porque muitas vezes a relação entre forma jurídica, forma política estatal e forma econômica escapa a muitos desses especialistas que se encontram enviesados pela ideologia “de cima”.
Essas breves considerações, portanto, viabilizam a constatação de que, vivendo o Brasil, hoje, uma crise política e ideológica, cujo acirramento se assiste principalmente desde o “impeachment” de 2016 até a eleição do atual Presidente da República e a ascensão de divisões do país em relação aos rumos a serem adotados pela sociedade brasileira em diversos âmbitos, também o discurso sobre o direito enfrenta crises entre as interpretações dos diversos especialistas, gerando a pulverização de diversas mensagens discrepantes e mesmo completamente antagônicas que se publicam sobre os mesmos temas em mídias de alcance massivo. E tal conjuntura, como observado alhures, é deveras agudizada no âmbito do direito constitucional, pelo próprio objeto complexo e basilar do qual se ocupa para fins da sociabilidade atual.
Devem-se afastar as presunções de certeza, altitude, cientificidade dos argumentos apresentados pelos diversos especialistas, para que a primeira análise que se faça sobre o discurso jurídico-constitucional da atualidade seja o do “pertencimento” do especialista, portanto. Em outras palavras, deve-se ver o jurista, o especialista – quem é, de onde vem, com quem atua e como pensa sobre diversas questões contemporâneas -, para que se possa, depois, incorporar ou não seus argumentos jurídicos como relevantes, razoáveis ou não. O direito é parte da cristalização das relações sociais; é uma forma da sociabilidade capitalista atual e, nesse ensejo, sobre ele se formulam discursos permeados por lógicas atinentes às demais formas sociais (política estatal e econômica, principalmente), sob óticas de ideologias complexas, que ora representam interesses de dominação e exploração, ora podem representar alternativas de emancipação e fortalecimento dos mais oprimidos, explorados, pobres e alijados dessa mesma sociabilidade.
A luta pelo discurso constitucional no Brasil de hoje, então, é uma luta dentro dos quadros complexos da crise política e ideológica, tornando-se uma luta pelo próprio Brasil que será, dentro das possibilidades do que hoje se tornou. É uma luta de conjuntura e que deve partir da conjuntura, ou seja, tanto seria desejável que os especialistas tomassem a estrita consciência (de classe) sobre seu lugar e seu papel para e no todo social como seria desejável que as mensagens sobre o direito por eles perpetradas passassem pelo crivo da desmistificação dessas mesmas falas à luz da conjuntura atual na qual são produzidas e difundidas pelos diversos meios.
NOTAS:
[1] NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. Constituição é o nome de quê? In: < https://18.118.106.12/2018/07/27/constituicao-e-o-nome-de-que/>
[2] O Estado, o poder, o socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de Janeiro, São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 59.
[3] PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e marxismo. Trad. de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017.
[4] MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.
[5] Assim caracterizada por Poulantzas, que inclui os trabalhadores assalariados em geral, não envolvidos diretamente em atividade produtiva operária, tais como empregados assalariados do comércio, dos serviços, dos bancos, dos seguros, bem como funcionários públicos em geral e prestadores de serviços públicos. Conferir: POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura: a III Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense Editora, v.1, 1972.
[6] POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura: a III Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense Editora, v.2, 1972, p. 11.
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